A Câmara Municipal de …, através do ofício n.º…, de… (que nos foi remetido pela DSGT através do protocolo n.º 7636, de 12-01-2005) questiona o seguinte:
Deve a Câmara Municipal suspender o procedimento tendente à atribuição de licença administrativa para a construção de estabelecimento comercial de dimensão relevante requerida por um munícipe tendo em consideração processo judicial a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Mira?
Da informação dos serviços retiram-se os seguintes
FACTOS:
-
O procedimento em causa reporta-se a um pedido de licenciamento de obras para a instalação de uma unidade comercial de dimensão relevante que foi instruído com certidão de registo predial que não punha em causa a legitimidade do requerente e acompanhado de parecer favorável da Comissão de Reserva Agrícola Nacional, autorização prévia de instalação da Direcção Geral do Comércio e da Concorrência e pareceres favoráveis do SNB, Delegado de saúde e Veterinário Municipal;
-
O projecto de arquitectura foi aprovado por despacho de 15 de Outubro de 2003;
-
Em 21 de Abril de 2004 foi autorizada a execução de trabalhos de escavação e contenção periférica até à profundidade do piso de menor cota;
-
Em 17 de Junho de 2004 deu entrada um ofício da mandatária de Hamílton Machado Bonifácio comunicando a interposição de uma acção junto do Tribunal Judicial de Mira, colocando em causa a legitimidade do requerente sobre o terreno objecto desta operação urbanística;
-
Segundo informação telefónica já terá havido deliberação final sobre o pedido de licenciamento, faltando apenas a emissão do respectivo alvará de licença.
Cumpre-nos assim informar o seguinte:
Importa previamente esclarecer que as licenças e autorizações urbanísticas são actos administrativos submetidos exclusivamente a regras de direito público, o que significa que a Administração municipal, na apreciação dos projectos, apenas verifica o cumprimento de normas de direito do urbanismo. Veja-se, entre outros, o Ac. Do STA de 7/02/02, Processo n.º 048295, onde se conclui que “não incumbe à Administração no acto de licenciamento de obras particulares assegurar o respeito por normas de direito civil, designadamente das que tutelam servidões de passagem de terceiros sobre o prédio onde se situa a obra licenciada”
A submissão exclusiva da licenças ou autorizações urbanísticas a regras de direito do urbanismo determina que elas sejam concedidas sob o que se designa por reserva de direitos de terceiros, isto é, conferem ao requerente da licença, apenas e só, o direito de realizar aquela operação urbanística, não retirando por isso a terceiros direitos que estes já possuíssem de acordo com o ordenamento privatístico.
Segundo a melhor Doutrina(1) daqui decorrem desde logo duas consequências. A primeira é a de que as normas de direito privado não constituem fundamento para o indeferimento do pedido e, a segunda, a de ficarem excluídas de apreciação pela Administração, para efeitos de emissão de licenças ou autorizações urbanísticas, as relações do titular da licença com terceiros não intervenientes na operação urbanística, (como sejam as relações com proprietários vizinhos ou destes entre si ou ainda as relações com pessoas afectadas por ocorrências relacionadas com a operação urbanística) e as situações especiais de responsabilidade que se verifiquem entre os intervenientes naquela operação. “Qualquer litígio que surja a este propósito não deve ser resolvido pela Administração no procedimento de licenciamento ou autorização (sob pena de usurpação de poderes) mas pelos tribunais”.
Contudo, apesar da regra da submissão exclusiva das licenças a normas de direito público, não está excluída, no procedimento de licenciamento, a necessidade de comprovação da legitimidade do requerente desde logo porque o artigo 9º nº1 o DL 555/99 exige que o requerente, no requerimento inicial, invoque e comprove a titularidade de qualquer direito que lhe confira a faculdade de realizar a operação urbanística a que se refere a pretensão, determinando o n.º1 do artigo 11.º que o presidente da câmara municipal deve decidir, na fase de saneamento e apreciação liminar, as questões de ordem formal e processual que possam obstar ao conhecimento do pedido.
Por outro lado, sendo a legitimidade do requerente, nos termos do artigo 83.º do Código do Procedimento Administrativo, um pressuposto procedimental, isto é, um elemento cuja não verificação impede uma decisão de fundo por parte da Administração, tal significa que o presidente da câmara deve verificar a existência efectiva desse pressuposto. Note-se porém que a verificação da legitimidade se restringe apenas a uma apreciação meramente formal, isto é, no sentido de verificar se o requerente apresentou o documento comprovativo da legitimidade invocada.
Assim, desde que o particular apresente tal documento (como aconteceu no caso em análise) deve a Administração dar início e prosseguir com o procedimento, cabendo exclusivamente aos tribunais esclarecer qualquer dúvida de natureza substancial que se relacione com a questão da legitimidade.
Contudo, o actual regime jurídico da urbanização e edificação, no n.º7 do artigo 11.º, veio determinar que quando a decisão final depender de uma decisão de outro órgão administrativo ou de um tribunal, o presidente da câmara deve suspender o procedimento até que o órgão ou o tribunal competentes se pronunciem, notificando disso o requerente, o que parece significar que se o direito que o requerente invoca for judicialmente contestado por terceiros, deve o presidente suspender o procedimento de licenciamento até que o tribunal se pronuncie sobre o litígio jurídico-privado sobre a questão da legitimidade.
Assim, é de concluir(2) que “a subordinação exclusiva a regras do direito do urbanismo e a sua emissão salvo direito de propriedade e sem prejuízo de direitos de terceiros não tem inteira aplicação quando está em jogo a verificação da legitimidade para formular o pedido de licenciamento, uma vez que a Administração se vê obrigada a verificar se o requerente se apresenta como titular de um direito (privado) que lhe confira legitimidade para formular o pedido, não obstante essa verificação se traduzir, em regra, numa mera verificação formal”.
Por outro lado, não obstante poder ser uma solução criticável(3) (por provocar delongas no procedimento e porque, sendo a licença emitida sob reserva de direitos de terceiros, nada impedir que os lesados possam lançar mão dos meios de defesa à sua disposição, designadamente os meios cautelares como o embargo judicial de obra nova) o certo é que, “havendo um litígio sobre a titularidade do direito que tenha de ser decidido em tribunal, a Administração deve, nos termos do n.º7 do artigo 11.º do RJUE, suspender o procedimento de atribuição da licença até que o litígio seja solucionado”(4), suspensão essa cuja manutenção depende da verificação das condições previstas na alínea b) do artigo 31.º do CPA, na redacção do DL 6/96, de 31/1, designadamente quanto à prova de ter sido intentada acção judicial no prazo de 30 dias.
Porém no caso concreto a hipótese de suspensão do procedimento de licenciamento não se coloca na medida em que já houve deliberação final, e esse é o momento até ao qual o presidente da câmara pode conhecer as questões relacionadas com a legitimidade do requerente ( cf. n.º6 do artigo 11.º do DL 555/99)
(1)Fernanda Paula Oliveira, A legitimidade nos Procedimentos urbanísticos, O Municipal n.º 265 (2)Fernanda Paula Oliveira, “As licenças de Construção e os Direitos de Natureza Privada de Terceiros”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Boletim da Faculdade de Direito, n.º 61, pag 1027 e ss) (3)Autora e obra cit, pag 1030 4)Autora e obra cit, pag 1033
A Câmara Municipal de …, através do ofício n.º…, de… (que nos foi remetido pela DSGT através do protocolo n.º 7636, de 12-01-2005) questiona o seguinte:
Deve a Câmara Municipal suspender o procedimento tendente à atribuição de licença administrativa para a construção de estabelecimento comercial de dimensão relevante requerida por um munícipe tendo em consideração processo judicial a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Mira?
Da informação dos serviços retiram-se os seguintes
FACTOS:
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O procedimento em causa reporta-se a um pedido de licenciamento de obras para a instalação de uma unidade comercial de dimensão relevante que foi instruído com certidão de registo predial que não punha em causa a legitimidade do requerente e acompanhado de parecer favorável da Comissão de Reserva Agrícola Nacional, autorização prévia de instalação da Direcção Geral do Comércio e da Concorrência e pareceres favoráveis do SNB, Delegado de saúde e Veterinário Municipal;
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O projecto de arquitectura foi aprovado por despacho de 15 de Outubro de 2003;
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Em 21 de Abril de 2004 foi autorizada a execução de trabalhos de escavação e contenção periférica até à profundidade do piso de menor cota;
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Em 17 de Junho de 2004 deu entrada um ofício da mandatária de Hamílton Machado Bonifácio comunicando a interposição de uma acção junto do Tribunal Judicial de Mira, colocando em causa a legitimidade do requerente sobre o terreno objecto desta operação urbanística;
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Segundo informação telefónica já terá havido deliberação final sobre o pedido de licenciamento, faltando apenas a emissão do respectivo alvará de licença.
Cumpre-nos assim informar o seguinte:
Importa previamente esclarecer que as licenças e autorizações urbanísticas são actos administrativos submetidos exclusivamente a regras de direito público, o que significa que a Administração municipal, na apreciação dos projectos, apenas verifica o cumprimento de normas de direito do urbanismo. Veja-se, entre outros, o Ac. Do STA de 7/02/02, Processo n.º 048295, onde se conclui que “não incumbe à Administração no acto de licenciamento de obras particulares assegurar o respeito por normas de direito civil, designadamente das que tutelam servidões de passagem de terceiros sobre o prédio onde se situa a obra licenciada”
A submissão exclusiva da licenças ou autorizações urbanísticas a regras de direito do urbanismo determina que elas sejam concedidas sob o que se designa por reserva de direitos de terceiros, isto é, conferem ao requerente da licença, apenas e só, o direito de realizar aquela operação urbanística, não retirando por isso a terceiros direitos que estes já possuíssem de acordo com o ordenamento privatístico.
Segundo a melhor Doutrina(1) daqui decorrem desde logo duas consequências. A primeira é a de que as normas de direito privado não constituem fundamento para o indeferimento do pedido e, a segunda, a de ficarem excluídas de apreciação pela Administração, para efeitos de emissão de licenças ou autorizações urbanísticas, as relações do titular da licença com terceiros não intervenientes na operação urbanística, (como sejam as relações com proprietários vizinhos ou destes entre si ou ainda as relações com pessoas afectadas por ocorrências relacionadas com a operação urbanística) e as situações especiais de responsabilidade que se verifiquem entre os intervenientes naquela operação. “Qualquer litígio que surja a este propósito não deve ser resolvido pela Administração no procedimento de licenciamento ou autorização (sob pena de usurpação de poderes) mas pelos tribunais”.
Contudo, apesar da regra da submissão exclusiva das licenças a normas de direito público, não está excluída, no procedimento de licenciamento, a necessidade de comprovação da legitimidade do requerente desde logo porque o artigo 9º nº1 o DL 555/99 exige que o requerente, no requerimento inicial, invoque e comprove a titularidade de qualquer direito que lhe confira a faculdade de realizar a operação urbanística a que se refere a pretensão, determinando o n.º1 do artigo 11.º que o presidente da câmara municipal deve decidir, na fase de saneamento e apreciação liminar, as questões de ordem formal e processual que possam obstar ao conhecimento do pedido.
Por outro lado, sendo a legitimidade do requerente, nos termos do artigo 83.º do Código do Procedimento Administrativo, um pressuposto procedimental, isto é, um elemento cuja não verificação impede uma decisão de fundo por parte da Administração, tal significa que o presidente da câmara deve verificar a existência efectiva desse pressuposto. Note-se porém que a verificação da legitimidade se restringe apenas a uma apreciação meramente formal, isto é, no sentido de verificar se o requerente apresentou o documento comprovativo da legitimidade invocada.
Assim, desde que o particular apresente tal documento (como aconteceu no caso em análise) deve a Administração dar início e prosseguir com o procedimento, cabendo exclusivamente aos tribunais esclarecer qualquer dúvida de natureza substancial que se relacione com a questão da legitimidade.
Contudo, o actual regime jurídico da urbanização e edificação, no n.º7 do artigo 11.º, veio determinar que quando a decisão final depender de uma decisão de outro órgão administrativo ou de um tribunal, o presidente da câmara deve suspender o procedimento até que o órgão ou o tribunal competentes se pronunciem, notificando disso o requerente, o que parece significar que se o direito que o requerente invoca for judicialmente contestado por terceiros, deve o presidente suspender o procedimento de licenciamento até que o tribunal se pronuncie sobre o litígio jurídico-privado sobre a questão da legitimidade.
Assim, é de concluir(2) que “a subordinação exclusiva a regras do direito do urbanismo e a sua emissão salvo direito de propriedade e sem prejuízo de direitos de terceiros não tem inteira aplicação quando está em jogo a verificação da legitimidade para formular o pedido de licenciamento, uma vez que a Administração se vê obrigada a verificar se o requerente se apresenta como titular de um direito (privado) que lhe confira legitimidade para formular o pedido, não obstante essa verificação se traduzir, em regra, numa mera verificação formal”.
Por outro lado, não obstante poder ser uma solução criticável(3) (por provocar delongas no procedimento e porque, sendo a licença emitida sob reserva de direitos de terceiros, nada impedir que os lesados possam lançar mão dos meios de defesa à sua disposição, designadamente os meios cautelares como o embargo judicial de obra nova) o certo é que, “havendo um litígio sobre a titularidade do direito que tenha de ser decidido em tribunal, a Administração deve, nos termos do n.º7 do artigo 11.º do RJUE, suspender o procedimento de atribuição da licença até que o litígio seja solucionado”(4), suspensão essa cuja manutenção depende da verificação das condições previstas na alínea b) do artigo 31.º do CPA, na redacção do DL 6/96, de 31/1, designadamente quanto à prova de ter sido intentada acção judicial no prazo de 30 dias.
Porém no caso concreto a hipótese de suspensão do procedimento de licenciamento não se coloca na medida em que já houve deliberação final, e esse é o momento até ao qual o presidente da câmara pode conhecer as questões relacionadas com a legitimidade do requerente ( cf. n.º6 do artigo 11.º do DL 555/99)
(1)Fernanda Paula Oliveira, A legitimidade nos Procedimentos urbanísticos, O Municipal n.º 265 (2)Fernanda Paula Oliveira, “As licenças de Construção e os Direitos de Natureza Privada de Terceiros”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Boletim da Faculdade de Direito, n.º 61, pag 1027 e ss) (3)Autora e obra cit, pag 1030 4)Autora e obra cit, pag 1033
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