Data: 2006-10-12
Número: 211/2006
Responsáveis: Ricardo da Veiga Ferrão
Em virtude de terem surgido algumas dúvidas sobre perda de mandato, solicitámos um parecer ao Tribunal Administrativo e Fiscal, o qual nos remeteu para o, tendo este em resposta, nos informado que nos devíamos dirigir aos Serviços dessa Direcção geral ou à CCDRC.
Em face do exposto, enviamos em anexo cópia do documento enviado às entidades atrás referidas no sentido de podermos ser esclarecidos sobre alguma dúvidas relativas à perda de mandato.
É do seguinte teor esta missiva:
Somos uma freguesia de pequenas dimensões e também com poucos recursos financeiros, pelo que alguns dos serviços de pequenas obras são normalmente prestados por trabalhadores colocados pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional no âmbito de Programas Ocupacionais Carenciados ou outros Programas e por vezes a trabalhadores em regime de tarefa.
Não existindo facilidades em encontrar mão-de-obra especializada, acontece pontualmente e em trabalhos específicos (como por exemplo: rupturas de água, pequenas reparações de ruas e edifícios) de necessitarmos de trabalhadores diferenciados, existindo entre alguns dos elementos que compõem os Órgãos Autárquicos, que são capazes de executar esses trabalhos específicos, contudo deparamos com algumas dúvidas relativamente às respectivas incompatibilidades, pelo que solicitamos se digne informar-nos, o seguinte:
Se houver um membro de um órgão Autárquico que em casos pontuais em regime de tarefa e sem qualquer contrato preste um serviço remunerado para a autarquia a que pertence, isso poderá implicar perda de mandato?….
Haverá alguma Lei de excepção para que tal não aconteça?
I
1. Sobre a matéria em apreço – incompatibilidades e impedimentos – foi elaborado recente parecer(1), do qual ora se transcreve as seguintes passagens, por estabelecerem o enquadramento geral da questão que ora vem de ser colocada:
«2.1. Para garantir “o melhor” desempenho dos cargos públicos, a lei estabelece, como regra geral, que estes sejam desempenhados em regime de exclusividade.
O regime de exercício de funções dos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos encontra-se previsto na Lei nº 64/93, de 26 de Agosto(2).
O seu âmbito subjectivo de aplicação é-nos dado pelos seus artigos 1º e 2º.
Artigo 1º
(Âmbito)
1. A presente lei regula o regime do exercício de funções pelos titulares de órgãos de soberania e por titulares de outros cargos políticos.
2. Para efeitos da presente lei, são considerados titulares de cargos políticos:
a) Os ministros da República para as Regiões Autónomas;
b) Os membros dos Governos Regionais;
c) O provedor de Justiça;
d) O Governador e Secretários Adjuntos de Macau;
e) O governador e vice-governador civil;
f) O presidente e vereador a tempo inteiro das câmaras municipais;
g) Deputado ao Parlamento Europeu.
Artigo 2º
(Extensão da aplicação)
O regime constante do presente diploma é, ainda, aplicável aos titulares de altos cargos públicos.
Em relação a todos estes cargos e funções, comina esta lei, o regime de exercício exclusivo, criando uma incompatibilidade entre esse exercício e o de quaisquer outras funções profissionais remuneradas ou não, bem como com a integração em corpos sociais de quaisquer pessoas colectivas de fins lucrativos (artigo 4º, n ºs 1 e 2).
Pretende assim a lei evitar, durante o exercício de cargos de soberania ou de outros cargos políticos, o surgimento de situações de conflito de interesses(3), estabelecendo, para tal, uma regra “tendencialmente universal” de exercício exclusivo dessas funções.
Porém, a lei, ao mesmo tempo que estabelece este apertado regime, desde logo dele excepciona os deputados e os autarcas (nº 1 do artigo 4º).
E assim, quanto a estes últimos, dispõe ela que os presidentes e vereadores de câmaras municipais, mesmo em regime de permanência, a tempo inteiro ou parcial, podem exercer outras actividades, devendo comunicá-las, quando de exercício continuado, quanto à sua natureza e identificação, ao Tribunal Constitucional e à assembleia municipal, na primeira reunião desta a seguir ao início do mandato ou previamente à entrada em funções nas actividades não autárquicas (nº 1 do artigo 6º)(4).
2.1.1. Porém aquela Lei nº 64/93 nada diz quanto aos autarcas membros das juntas de freguesia.
Contudo, o artigo 12º da Lei nº 11/96, de 18 de Abril(5), manda aplicar a estes o disposto naquela lei, desde que exerçam os seus mandatos em regime de permanência a tempo inteiro(6).
Ora, nos termos do artigo 27º da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro, o regime de meio tempo ou de tempo inteiro nas juntas de freguesia é, “em princípio”, apenas aplicável aos respectivos presidentes(7).
Mas como se disse, só “em principio” é assim.
Na verdade, pode assim não ser, se se tiver em conta que o artigo 28º da Lei nº 169/99 possibilita não só que o presidente da junta de freguesia atribua a um dos restantes membros da junta o exercício das suas funções em regime de meio tempo (n º1) como, no caso do exercício em regime de tempo inteiro (o que é por dizer, em regime de permanência), possa “repartir” essa forma de exercício de funções com outro membro da junta, de acordo com as seguintes regras de partição, definidas no nº 2 daquele artigo:
a) Optar por exercer as suas funções em regime de meio tempo, atribuindo a qualquer dos restantes membros o outro meio tempo;
b) Dividir o tempo inteiro em dois meios tempos, repartindo-os por dois dos restantes membros da junta;
c) Atribuir o tempo inteiro a qualquer dos restantes membros.
Deste modo, ao nível da junta de freguesia, o exercício de funções em regime de permanência e a tempo inteiro pode ter lugar quer relativamente ao exercício de funções do respectivo presidente, nos casos em a que a lei assim disponha ou possibilite, quer, em caso de “cedência” desse regime, relativamente a qualquer outro membro da junta a quem o presidente “atribua” o “seu” regime de tempo inteiro.
Contudo esta alternativa funciona de forma excludente: o regime de permanência a tempo inteiro ou é exercido pelo presidente da junta ou é exercido, em dado momento(8), por um único vogal.
Daqui resulta que, ao nível das juntas de freguesia, o regime de incompatibilidades e impedimentos da Lei nº 64/93 é aplicável quer aos seus presidentes, quando exerçam funções em regime de tempo inteiro “por direito próprio”, quer a qualquer outro seu membro, vogal escolhido pelo presidente, quando este, podendo exercer funções em regime de tempo inteiro, lhes “ceda” ou “atribua” esse regime(9).
Neste contexto, quer o presidente quer os vogais da junta de freguesia podem ser considerados, para os efeitos da Lei nº 64/93, como titulares de cargos políticos.
3.1. Por força da excepção estabelecida no artigo 4º da Lei nº 64/93, pode verificar-se o cúmulo de funções (autárquicas e privadas) relativamente aos autarcas aí indicados – analogicamente aplicável aos fregueses autarcas.
É este exactamente o campo em que se podem verificar situações de incompatibilidade por força do surgimento de um conflitos (de interesses) entre o interesse público e os interesses privados do titular do cargo político.
Uma das formas de evitar ou dirimir esse potencial “conflito” é o recurso ao estabelecimento de “inelegibilidades”.
Ainda que cerceando um direito fundamental de participação política, de tal modo a garantia da isenção e independência no exercício dos respectivos cargos é entendida pela Constituição da República como um exigência primordial do sistema democrático, que ela mesma permite para sua salvaguarda, a existência de inelegibilidades (nº 3 do artigo 50º da CRP).
É nesse sentido que a Lei Orgânica 1/2001, de 14 de Agosto, estabelece um conjunto de diferentes situações de inelegibilidade para os órgãos das autarquias locais (artigos 6º e 7º), entre as quais se encontram situações de incompatibilidade por objectivo conflito de interesses.
3.2.1. Se aquela exigência constitucional de isenção e independência do exercício do cargo releva antes da eleição, releva também, e pelos mesmos motivos, depois da eleição.
Na verdade, as razões que levam a erigir o “exercício isento, desinteressado e imparcial dos cargos autárquicos” como condição de elegibilidade, levam também a que se mantenha essa mesma exigência durante o exercício daqueles cargos, posteriormente à eleição.
Por isso, o artigo 8º da Lei nº 27/96 (Regime Jurídico da Tutela Administrativa) comina a “sanção” de perda de mandato relativamente aos membros de órgãos autárquicos que após a eleição, sejam colocados em situação que os torne inelegíveis ou relativamente aos quais se tornem conhecidos elementos reveladores de uma situação de inelegibilidade já existente, e ainda subsistente, mas não detectada previamente à eleição [alínea b) do nº 1] ou quando no exercício das suas funções, ou por causa delas, intervenham em procedimento administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento legal, visando a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem (nº 2).
4. Resta agora referir a questão dos “impedimentos”, estabelecidos no artigo 44º do Código do Procedimento Administrativo.
Dispõe o nº 1 deste artigo que nenhum titular de órgão ou agente da Administração Pública pode intervir em procedimento administrativo ou em acto ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública quando [alínea a)] nele tenha interesse, por si, como representante ou como gestor de negócios de outra pessoa ou quando [alínea b)] por si ou como representante de outra pessoa, nele tenha interesse o seu cônjuge, algum parente ou afim em linha recta ou até ao 2º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum.
O estabelecimento destes impedimentos é, desde logo, um corolário do princípio da imparcialidade contido no artigo 266, nº 2 da Constituição, princípio que é também recebido e reafirmado no artigo 6º do CPA.
Para Vieira de Andrade(10), o princípio da imparcialidade significa que a Administração Pública deve tomar decisões determinadas exclusivamente com base em critério próprios, adequados ao cumprimento das suas funções específicas, no quando da actividade geral do Estado, e na exacta medida em que os critérios não sejam substituídos ou distorcidos por influência de interesses alheios à função, sejam estes interesses pessoais dos funcionário, interesses de indivíduos, de grupos sociais, de partidos políticos, ou mesmo interesses políticos concretos do Governo.
Aliás, este “impedimento” já era previsto no Decreto-Lei nº 370/83, de 6 de Outubro – e, bem assim, na alínea d) do n º 1 do artigo 4º do Estatuto dos Eleitos Locais – tendo transitado para o CPA como princípio geral válido para todos os níveis da administração.»
II
1. Na situação em apreço pretende-se saber se houver um membro de um órgão Autárquico que em casos pontuais em regime de tarefa e sem qualquer contrato preste um serviço remunerado para a autarquia a que pertence, isso poderá implicar perda de mandato.
2. As freguesias têm, nos termos da lei dois diferentes órgão autárquicos: a junta de freguesia e a assembleia de freguesia.
O pedido não indica, porém, qual destes dois órgãos está em causa.
3. Antes de mais cumpre referir que contrariamente ao entendimento comum e que também é referido no pedido da Junta, existe sempre um contrato quando alguém “presta um serviço” remunerado a terceiro.
O que acontece as mais das vezes é ele não ser reduzido a escrito, e por força do costume, nem sequer haver consciência de que existe um contrato. Porém existirá sempre um contrato, qualquer que seja a forma ou o tipo que assuma.
Por esta razão há sempre que ter presente o dever que impende sobre os autarcas de, no exercício das suas funções, não celebrar com a autarquia qualquer contrato, salvo de adesão [alínea e) do artigo 4º do Estatuto dos Eleitos Locais (Lei nº 29/87, de 30 de Junho)].
4. Recorramos de novo ao já dito no parecer 32/DRAL/2006, para referir que na situação em apreço o que está em causa são aquisições de serviços por “ajuste directo”, ainda que sob a aparência de “trabalhos avulsos”.
De acordo com o regime estabelecido pelo Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de Junho, há um conjunto de aquisições de bens e serviços que podem ser realizadas sem dependência de qualquer formalidade concursal – tratam-se precisamente das aquisições por “ajuste directo” (alínea f) do nº 1 do artigo 78º do Decreto-Lei nº 197/99).
A esta forma de aquisição de bens pode-se recorrer sempre que estejam em causa aquisições de valor inferior a 5.000 € (alínea a) do nº 3 do artigo 81º do Decreto-Lei nº 197/99), sendo que, neste caso, tão-pouco é exigido contrato escrito. Não obstante, estar-se-á perante uma relação contratual, o que significa que existe um contrato de compra e venda, ainda que sem exigência de formalização.
1.2.5. Porém, como fica visto, mesmo numa situação de ajuste directo existe um contrato, ainda que não formalizado ou reduzido a escrito. São partes, nesse negócio jurídico, o adquirente, ou seja o ente público, neste caso a autarquia, através do seu competente órgão, e o prestador, a entidade, pessoa singular ou colectiva, que presta o serviço.
Ainda que uma aquisição deste tipo se possa considerar como um contrato de execução instantânea, certo é que há contrato.
Nos termos da alínea e), do nº 2, do artigo 4º do Estatuto do Eleitos Locais (Lei nº 28/87), impende sobre os eleitos locais o dever de não celebrar com a autarquia qualquer contrato, salvo de adesão.
Ora, exceptuado os contratos tipo de adesão, os membros dos órgãos das autarquias locais devem abster-se, sob pena de nulidade do contrato e da perda de mandato, de intervir, por si ou por interposta pessoa, na negociação ou na outorga de contratos entre a autarquia e empresas ou entidades de que sejam proprietários, gerentes ou membros da direcção, conselho de administração ou fiscal…(11).
1.2.6. Para casos tais, dispõe a lei: incorrem, igualmente, em perda de mandato os membros dos órgãos autárquicos que, no exercício das suas funções, ou por causa delas, intervenham em procedimento administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento legal, visando a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem (nº 2 do artigo 8º da Lei nº 27/96, sublinhado nosso).
A perda de mandato funda-se, aqui, na violação de um impedimento, por conflito de interesses, a qual, no entendimento da lei, é de tal modo grave que impossibilita definitivamente a manutenção do mandato.
Contudo, a lei estabelece como que uma “cláusula de exclusão de ilicitude”, considerando que o “tipo” – a “situação–tipo” – apenas se considera preenchido caso a celebração do contrato vise a obtenção de uma vantagem patrimonial para si ou para outrem. Sem que se verifique esta situação(12), não estão reunidas as condições para ser declarada a perda de mandato.
Ora, quando a lei fala da obtenção de vantagem patrimonial, com uma conotação ou valoração negativa em termos de poder desencadear a grave sanção de perda de mandato, apenas pode querer significar que o eleito local, por via de actuação decorrente do exercício das suas funções ou por causa delas, vise obter uma situação de favor, de primazia ou de privilégio geradora de desigualdade em relação outros concretos ou eventuais concorrentes que pudessem prestar o mesmo serviço em condições iguais ou mais favoráveis. Ou ainda quando intervenha em qualquer acto ou contrato favorecendo, em termos patrimoniais, a sua própria posição ou a de terceiro(13).
5. Do que se pode depreender da situação que vem de ser colocada, a junta de freguesia pretende recorrer esporádica e pontualmente a trabalhos prestados por membros dos órgãos da freguesia em actividades da sua especialidade, trabalhos esses que pela sua dimensão (matéria e temporal) não justificam o recurso a prestadores de serviços ou entidades de fora da freguesia, sob pena de assim este ser ver confrontada com pagamentos bem mais avultados do que se recorresse a aos tais “fregueses”, também autarcas.
Porém os elementos fornecidos pela junta de freguesia não esclarecem, porém, se os autarcas em questão são os únicos – designadamente se são os únicos com as aptidões necessárias para a realização desses trabalhos – que prestam tais serviços na freguesia.
6. Caso sendo eles, na freguesia, os únicos prestadores habilitados com as necessárias aptidões para a prestação dos serviços em apreço ou os únicos que se encontrem em condições de o fazer, pode-se aí encontrar a razão para que – observadas que sejam as regras quanto à intervenção na deliberação do órgão – a junta de freguesia recorra à colaboração desses “fregueses” autarcas, prestada em condições de mercado, para a realização pontual de pequenos trabalhos, em vez de, mais onerosamente, recorrer a outros prestadores que hajam de deslocar-se para a freguesia, porventura onerando com tal o custo do seu trabalho.
Verificar-se-á, assim, aqui, uma situação de “adequação social”(14), que se não exclusora da ilicitude, sê-lo-á, ao menos, da culpa. Aliás é já isso que perpassa da ressalva contida na lei: a perda de mandato dar-se-á apenas se o contrato celebrado tiver como objectivo a obtenção de uma vantagem patrimonial, ou seja um “ganho” que assuma foros de ilegítimo, e por isso, ilícito.
Seria irrazoável e desproporcionadamente “extremo” pretender que uma junta de freguesia, agindo e sendo tratada como um qualquer outro cliente(15), se encontrasse impedida de satisfazer as suas necessidades pontuais em certo tipo de trabalhos prestado pelo único trabalhador da terra que também é seu membro, exactamente por esse facto.
Ou, dito de outra perspectiva, o dito trabalhador, sendo membro da junta de freguesia, seria compelido, por deter essa qualidade, e para não perder, “ope legis”, o seu mandato, a recusar-se a prestar qualquer serviço ou colaboração à junta de freguesia, não obstante ser ele o único habilitado para tal na freguesia.
Neste sentido, afirmou já, em caso semelhante, o STA(16): a decisão da perda de mandato há-de ser função da relevância da lesão da isenção e da imparcialidade, sob pena da subversão dos próprios desígnios expressos na Constituição da República, especialmente no Poder Local, considerando a curtíssima distância que o liga ao administrado, pelo que só um grau de culpa relativamente elevado sustentarão a suspeição ou a reprovabilidade social da conduta, de tal modo que tornem o visado indigno do cargo.
Daí que a gravidade da medida exige que seja métrica da culpa todo o circunstancialismo de espaço, tempo e modo em que os factos foram praticados, inseridos outrossim na personalidade do seu autor.
Assim, desde que não assuma contornos de contrato de execução continuada e seja feita nos mesmos termos económicos em que para a restante clientela, não se crê determinante da perda de mandato do autarca–trabalhador a aquisição esporádica a este, de trabalhos por ele realizados.
7. Porém há que ter em conta o disposto no nº 1 do artigo 44º do Código do Procedimento Administrativo. Segundo este, nenhum titular de órgão ou agente da Administração Pública pode intervir em procedimento administrativo ou em acto ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública … (a) quando nele tenha interesse, por si, como representante ou como gestor de negócios de outra pessoa ou (b) quando, por si ou como representante de outra pessoa, nele tenha interesse o seu cônjuge, algum parente ou afim em linha recta ou até ao 2º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum.
Ora, quando tal sucede, o titular ou agente fica pura e simplesmente proibido de intervir no procedimento, ou de praticar o acto administrativo que virtualmente lhe competia, sendo-lhe vedado optar por outra actuação(17).
Contudo, o órgão que ele integra não se encontra impedido de os realizar. Simplesmente aquele seu membro não pode ter qualquer intervenção nem nos actos procedimentais conducentes à realização do acto ou negócio nem, posteriormente, na celebração do próprio negócio, excepção feita no que toca a actos de mero expediente (nº 2 do artigo 44º do CPA)(18).
8. Já será duvidoso que havendo diversos prestadores de trabalho com as mesmas aptidões profissionais na freguesia, uns autarcas e outros não, a junta recorra exclusivamente à colaboração daqueles que são autarcas.
Neste caso inclinamo-nos, por uma questão de cautela interpretativa e face a divergências jurisprudências sobre a matéria, para uma resposta negativa à possibilidade atrás referida.
Designadamente, já será mais difícil sustentar (designadamente junto dos órgãos inspectivos e dos tribunais) que, numa situação como esta, haja uma justificação plausível para a freguesia recorrer unicamente à prestação de trabalhos de fregueses que sejam autarcas – e, daí, porventura, virem a incorrer numa eventual situação de perda de mandato.
9. Restará referir quem o que fica dito se aplica tanto a membros da Assembleia quanto a membros da Junta de Freguesia.
E neste último caso, mesmo que sejam considerados titulares de cargos políticos para efeitos de Lei nº 64/93, de 26 de Agosto, por exercerem as suas funções em regime de permanência e a tempo inteiro, nos termos e por força dos artigos 27º e 28º da Lei nº 169/99 e do artigo 6º da Lei nº 64/93.
III
Em conclusão:
1. Uma junta de freguesia não se encontra impedida de adquirir, de forma esporádica e pontual, prestações de serviços a um membros dos órgãos da freguesia conquanto ele seja, na freguesia, o único a tal habilitado ou o único em condições de prestá-los, sendo que as alternativas teriam que provir do exterior da freguesia, de forma mais onerosa.
2. Assim, não se verificam nesta situação os pressupostos de uma situação de perda de mandato do autarca-trabalhador, por este contratar trabalhos da sua especialidade com a autarquia, na medida em que se estará perante uma específica situação de “adequação social da conduta” que assim a retira do “quadro-tipo” de perda de mandato.
3. Este entendimento será extensível a qualquer membro de ambos os órgãos da junta de freguesia, ainda que considerados titulares de cargos políticos para efeitos da Lei nº 64/93.
(1) Parecer 32/DRAL/2006, de 25 de Janeiro.
(2) Com as alterações sucessivamente introduzidas pelas Lei nº 28/95, 18 Agosto, Lei nº 12/96, 18 Abril, Lei nº 42/96, 31 Agosto e Lei nº 12/98, 24 Fevereiro.
(3) Sobre o que seja o conflito de interesses, MARIA BENEDITA URBANO, op. cit, pag. 328: “O conflito de interesse pode manifestar-se de várias maneiras. Em termos gerais poder-se-á dizer que as pessoas que exercem funções públicas não devem, por motivos éticos e de integridade, ser portadoras de ou estar envolvidas com interesses susceptíveis de ofuscar a própria capacidade de exercer de modo imparcial, e no interesse público, os respectivos poderes. Elas não devem obter benefícios económicos pessoais baseados em informações recolhidas no exercício dessas mesmas funções e, muito menos ainda, não podem adoptar decisões que as vão favorecer pessoalmente ou a pessoas que lhe são próximas, em regra, familiares – em detrimento, obviamente, do interesse público. Está aqui em causa, como é bom de ver, o favorecimento de interesses económicos privados pessoais.”
(4) A norma deste artigo deve, presentemente, ser lida à luz do que ora se dispõe, sobre a matéria, no Estatuto dos Eleitos Locais, após as alterações nele introduzidas pela Lei nº 52-A/2005, de 10 de Outubro. Por força dessas alterações o nº 1 do artigo 3º do Estatuto pasou a ter a seguinte redacção, muito idêntica à do artigo em questão:
Os presidente e vereadores de câmaras municipais, mesmo em regime de permanência, podem exercer outras actividades, devendo comunicá-las, quando de exercício continuado, quanto à sua natureza e identificação, ao Tribunal Constitucional e à assembleia municipal, na primeira reunião desta a seguir ao início do mandato ou previamente à entrada em funções nas actividades não autárquicas.
(5) O artigo 12º da Lei nº 11/96 tem o seguinte teor:
Artigo 12.º
Incompatibilidades
Aplica-se aos membros das juntas de freguesia que exerçam o seu mandato em regime de permanência a tempo inteiro o disposto nas normas da Lei n.º 64/93, de 26 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 28/95, de 18 de Agosto.
(6) Em face da profusão (e confusão) de designações dos diferentes regimes de exercício de funções autárquicas, designadamente entre diversos diplomas legais, o Estatuto dos Eleitos Locais (Lei nº 29/87) veio estabelecer que, no que toca a membros das juntas de freguesia, os que exerçam as funções “em regime de tempo inteiro” o fazem “em regime de permanência” [alínea c), do nº 1, do artigo 2º].
(7) A possibilidade do exercício de funções em regime de tempo inteiro ou de meio tempo pelo presidente da junta depende do preenchimento, em cada caso, dos requisitos fixados nos nºs 1 e 2 do artigo 27º da Lei 169/99 bem como de uma decisão do próprio presidente, de acordo com o disposto na alínea f) do nº 1 do artigo 38º da mesma lei.
Porém às referidas situações de exercício de funções a tempo inteiro podem ainda acrescer aquelas outras previstas no nº 3 do citado artigo 27º, para o que, então, se torna necessária uma deliberação autorizadora da Assembleia de Freguesia [alínea h) do nº 2, do artigo 17º da Lei nº 169/99].
(8) Parece que nada impede que o presidente da junta atribua, sucessivamente no tempo, o exercício de funções em regime de permanência a tempo inteiro a diferentes vogais, desde que nunca se verifique exercício simultâneo de funções naquele regime.
(9) Esta é, aliás, a doutrina que resulta do Despacho, de 24 de Julho de 2002, do Presidente do Tribunal Constitucional (consultável em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/conteudo/files/legislacao030604.pdf), no qual se pode ler o seguinte:
7º) Por força do disposto no artigo 12º da Lei nº 11/96, de 18 de Abril, aos membros das juntas de freguesia que exerçam o seu mandato em regime de tempo inteiro é integralmente aplicável o referido nos anteriores nºs 2º e 3º (que estabelecem, o primeiro, a apresentação, a aquando do início do mandato, de uma declaração de onde devem contar um conjunto de indicações relativamente ao exercício da função e à detenção de participações sociais e o segundo a necessidade de apresentação de nova declaração sempre que se verifique o início ou a cessação de actividade de exercício continuado, cumulável com as funções autárquicas).
8º) Os restantes membros das juntas de freguesia (mesmo quando em regime de meio tempo) não se acham adstritos a qualquer dos deveres de declaração, relativos a matéria de incompatibilidades e impedimentos, estabelecidos pela Lei nº 64/93.
A este entendimento do Tribunal Constitucional acerca das obrigações declarativas dos membros dos órgãos executivos das freguesias, nas condições indicadas, subjaz o entendimento de que a eles é extensivamente aplicável o regime do artigo 6º daquela lei, na original e actualmente repristinada redacção em vigor, no que toca á acumulação das funções autárquicas com outras actividades, públicas ou privadas, de exercício continuado.
(10) JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A imparcialidade da Administração como princípio constitucional, separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra (XLIX, 1974), 1975, pags. 10 e 11. Também Freitas do Amaral se socorre da mesma definição a propósito da caracterização do princípio em causa; cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 4ª reimpressão da edição de 2001, pag 140.
(11) Parecer do CC da PGR nº 100/92, publicado no Diário da República, II, nº 144, 25/6/83, pags. 5339 e segs.
(12) Situação esta que se pode configurar como de “enriquecimento sem causa”.
(13) Acórdão do STA de 18/03/03, Proc. 369/03, consultável em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/4b59abd4b962533880256cf30057c359?OpenDocument
(14) Ou seja, de que comportamentos que correspondem à ordenação social historicamente desenvolvida de uma comunidade não podem constituir ilícito. Assim, MARIA PAULA RIBEIRO DE FARIA, A adequação social da conduta no direito penal, 2005, pag 31. No dizer de WELZEL (apud, op. cit. nota 1), deixam-se ainda excluir do conceito de ilícito todas as condutas que se movem funcionalmente dentro da ordenação historicamente desenvolvida da vida comunitária de um povo.
(15) E portanto sendo comercialmente satisfeita nas mesmas condições de preço e outras, ou em condições economicamente mais benéficas, que os demais clientes.
(16) Acórdão de 9/1/2002, Proc. 48349, consultável em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/174ed2b90e6a86e180256b3e0052530b?OpenDocument
(17) Parecer do Conselho Consultivo da PGR nº 11/96, consultável em http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/7fc0bd52c6f5cd5a802568c0003fb410/244d0f13a2b7bc188025661700424d7c?OpenDocument
(18) Afirma-se no Parecer do CC da PGR nº 45/90 (publicado no Diário da República, II, nº 218, 21/9/92):
Entendimento diferente do perfilhado traduzir-se-ia, com efeito, em muitas situações, numa solução demasiado violenta e excessiva para os autarcas, acarretando, do mesmo passo, reflexos profundamente negativos para a vida do próprio órgão, impedindo ou dificultando o seu normal e regular funcionamento.
Estamos a pensar, sobretudo, nas pequenas autarquias do interior do País, onde os membros dos órgãos autárquicos são, muitas vezes, proprietários de pequenos estabelecimentos comerciais e ou indústrias, de pequenas empresas de serviços, com as quais as autarquias têm, dir-se-ia necessariamente, de manter relações contratuais (será a compra de géneros para um almoço a confeccionar na autarquia, a montagem de uma instalação sonora para o dia do feriado municipal, a compra de pneus para as viaturas, etc.).
E não só.
O autarca ficaria desarmado, sem possibilidade de se opor a que fosse contra ele instaurada uma acção para perda de mandato, ainda que se tivesse abstido de intervir, nomeadamente não participando na reunião do órgão que deliberou a celebração do contrato ….
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