Através do ofício nº …, de …, complementado com o ofício nº …, de …, ambos da Câmara Municipal da …, foi solicitado a esta CCDR um parecer jurídico sobre o assunto em epígrafe.
Sucintamente, foram referidos os seguintes factos:
Em 09.05.2007 deu entrada na Câmara Municipal uma exposição de Sr. … a pedir que a Câmara solicite ao Sr. … a instrução do seu processo de licenciamento nº 01-07/89 com o Alvará de Loteamento nº 10/78, a fim de proceder à rectificação da respectiva área;
Em 10.05.2007 deu entrada na Câmara Municipal dois requerimento do Sr. …, um com os projectos das especialidades do processo de licenciamento de obras e com a respectiva certidão de teor da Conservatória do registo Predial, com uma área total de 569m2, e outro, com o pedido de ocupação da via pública;
Em 21.06.2007 deu entrada na Câmara Municipal uma exposição do Sr. … a esclarecer as dúvidas suscitadas e com elementos novos a juntar ao processo, entre eles, a escritura de justificação e de compra e venda do referido terreno;
Nesta exposição é referido que o terreno foi transmitido ao requerente pela sociedade …, Lda que o adquiriu por usucapião (inscrição na CRP, de 30.04.2007), de acordo com a referida escritura;
Antes da referida operação de loteamento, o terreno encontrava-se inscrito nas finanças sob o artigo matricial ….º urbano, de 1957;
O terreno apresentado pelo Sr. …eia constitui um artigo diferente daquele que foi objecto de loteamento, sobrepondo, no entanto, um dos seus lotes de terreno com a área de 293.9m2.
A Câmara partindo do pressuposto de que os terrenos mencionados se sobrepõem, questiona sobre a legitimidade do requerente no respectivo pedido de licenciamentos de obras.
Sobre o assunto, informamos:
Importa previamente esclarecer que as licenças e autorizações urbanísticas são actos administrativos submetidos exclusivamente a regras de direito público, o que significa que a Administração municipal, na apreciação dos projectos, apenas verifica o cumprimento de normas de direito do urbanismo. Veja-se, entre outros, o Ac. Do STA de 7/02/02, Processo n.º 048295, onde se conclui que “não incumbe à Administração no acto de licenciamento de obras particulares assegurar o respeito por normas de direito civil, designadamente das que tutelam servidões de passagem de terceiros sobre o prédio onde se situa a obra licenciada”
A submissão exclusiva das licenças ou autorizações urbanísticas a regras de direito do urbanismo determina que elas sejam concedidas sob o que se designa por reserva de direitos de terceiros, isto é, conferem ao requerente da licença, apenas e só, o direito de realizar aquela operação urbanística, não retirando por isso a terceiros direitos que estes já possuíssem de acordo com o ordenamento privatístico.
Segundo a melhor Doutrina1 daqui decorrem desde logo duas consequências. A primeira é a de que as normas de direito privado não constituem fundamento para o indeferimento do pedido e, a segunda, a de ficarem excluídas de apreciação pela Administração, para efeitos de emissão de licenças ou autorizações urbanísticas, as relações do titular da licença com terceiros não intervenientes na operação urbanística, (como sejam as relações com proprietários vizinhos ou destes entre si ou ainda as relações com pessoas afectadas por ocorrências relacionadas com a operação urbanística) e as situações especiais de responsabilidade que se verifiquem entre os intervenientes naquela operação. “Qualquer litígio que surja a este propósito não deve ser resolvido pela Administração no procedimento de licenciamento ou autorização (sob pena de usurpação de poderes) mas pelos tribunais”.
Contudo, apesar da regra da submissão exclusiva das licenças a normas de direito público, não está excluída, no procedimento de licenciamento, a necessidade de comprovação da legitimidade do requerente desde logo porque o artigo 9º nº1 do DL nº 555/99 exige que o requerente, no requerimento inicial, invoque e comprove a titularidade de qualquer direito que lhe confira a faculdade de realizar a operação urbanística a que se refere a pretensão, determinando o n.º1 do artigo 11.º que o presidente da câmara municipal deve decidir, na fase de saneamento e apreciação liminar, as questões de ordem formal e processual que possam obstar ao conhecimento do pedido.
Nos termos do art. 11º da Portaria nº 1110/2001 que identifica os elementos necessários à instrução do pedido de licenciamento de obras de edificação, são exigidos na al. a) os “documentos comprovativos da qualidade de titular de qualquer direito que confira a faculdade de realização da operação” e na al. b) a “certidão da descrição e de todas as inscrições em vigor emitida pela conservatória do registo predial referente ao prédio ou prédios abrangidos”.
Assim, por força deste normativo o requerente está obrigado a instruir o seu pedido de licenciamento de obras com a referida certidão, sob pena de, nos termos do art. 11º do DL nº 555/99, o presidente da câmara proferir despacho de rejeição liminar do pedido, por falta de documento instrutório indispensável ao conhecimento da pretensão.
Por outro lado, sendo a legitimidade do requerente, nos termos do artigo 83.º do Código do Procedimento Administrativo, um pressuposto procedimental, isto é, um elemento cuja não verificação impede uma decisão de fundo por parte da Administração, tal significa que o presidente da câmara deve verificar a existência efectiva desse pressuposto. Note-se porém que a verificação da legitimidade se restringe apenas a uma apreciação meramente formal, isto é, no sentido de verificar se o requerente apresentou o documento comprovativo da legitimidade invocada.
Desta forma, desde que o particular apresente tal documento deve a Administração dar início e prosseguir com o procedimento, cabendo exclusivamente aos tribunais esclarecer qualquer dúvida de natureza substancial que se relacione com a questão da legitimidade.
Assim, é de concluir2 que “a subordinação exclusiva a regras do direito do urbanismo e a sua emissão salvo direito de propriedade e sem prejuízo de direitos de terceiros não tem inteira aplicação quando está em jogo a verificação da legitimidade para formular o pedido de licenciamento, uma vez que a Administração se vê obrigada a verificar se o requerente se apresenta como titular de um direito (privado) que lhe confira legitimidade para formular o pedido, não obstante essa verificação se traduzir, em regra, numa mera verificação formal”.
No caso concreto, parece existir um conflito de propriedade pela sobreposição do terreno onde o requerente pretende edificar e um dos lotes do loteamento mencionado. Todavia, tendo sido apresentada pelo requerente a respectiva certidão da Conservatória do Registo Predial, é feita a prova de legitimidade exigida nos termos dos artigos supra referidos.
Efectivamente, o art. 7º do Código de Registo Predial ao estabelecer uma presunção da titularidade do direito prova que o direito existe e pertence ao titular inscrito. Trata-se, na verdade, de uma presunção “juris tantum” cujo conceito decorre do arts. 349º do Código Civil e que, embora possa vir a ser elidível mediante prova em contrário, dispensa, quem dela dispõe, de fazer prova do respectivo facto constitutivo.
A presunção registral actua assim relevantemente quer quanto ao facto inscrito, quer quanto aos sujeitos e objecto da relação jurídica dele emergente, pelo que à Câmara apenas cabe observar se o teor das descrições que constam do registo conferem legitimidade ao particular para requerer o licenciamento de operação urbanística pretendida.
Não se pretende, contudo, afastar as razões que possam assistir ao reclamante. O que se pretende dizer é que existindo prova da legitimidade do requerente enquanto pressuposto para desencadear o procedimento e cumprindo a pretensão todas as normas de direito urbanístico, exigir-se-ia que o reclamante contestasse perante os tribunais essa mesma legitimidade, através da acção própria, para que a Câmara pudesse questionar a legitimidade do requerente.
Sem tal iniciativa entendemos que o presidente da Câmara não deve suspender o procedimento de licenciamento, já que não existe nenhuma questão prévia dependente de decisão dos tribunais.
A Divisão de Apoio Jurídico
(Elisabete Maria Viegas Frutuoso)
1. Fernanda Paula Oliveira, A legitimidade nos Procedimentos urbanísticos, O Municipal n.º 265
2. Fernanda Paula Oliveira, “As licenças de Construção e os Direitos de Natureza Privada de Terceiros”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Boletim da Faculdade de Direito, n.º 61, pag 1027 e ss)
Através do ofício nº …, de …, complementado com o ofício nº …, de …, ambos da Câmara Municipal da …, foi solicitado a esta CCDR um parecer jurídico sobre o assunto em epígrafe.
Sucintamente, foram referidos os seguintes factos:
Em 09.05.2007 deu entrada na Câmara Municipal uma exposição de Sr. … a pedir que a Câmara solicite ao Sr. … a instrução do seu processo de licenciamento nº 01-07/89 com o Alvará de Loteamento nº 10/78, a fim de proceder à rectificação da respectiva área;
Em 10.05.2007 deu entrada na Câmara Municipal dois requerimento do Sr. …, um com os projectos das especialidades do processo de licenciamento de obras e com a respectiva certidão de teor da Conservatória do registo Predial, com uma área total de 569m2, e outro, com o pedido de ocupação da via pública;
Em 21.06.2007 deu entrada na Câmara Municipal uma exposição do Sr. … a esclarecer as dúvidas suscitadas e com elementos novos a juntar ao processo, entre eles, a escritura de justificação e de compra e venda do referido terreno;
Nesta exposição é referido que o terreno foi transmitido ao requerente pela sociedade …, Lda que o adquiriu por usucapião (inscrição na CRP, de 30.04.2007), de acordo com a referida escritura;
Antes da referida operação de loteamento, o terreno encontrava-se inscrito nas finanças sob o artigo matricial ….º urbano, de 1957;
O terreno apresentado pelo Sr. …eia constitui um artigo diferente daquele que foi objecto de loteamento, sobrepondo, no entanto, um dos seus lotes de terreno com a área de 293.9m2.
A Câmara partindo do pressuposto de que os terrenos mencionados se sobrepõem, questiona sobre a legitimidade do requerente no respectivo pedido de licenciamentos de obras.
Sobre o assunto, informamos:
Importa previamente esclarecer que as licenças e autorizações urbanísticas são actos administrativos submetidos exclusivamente a regras de direito público, o que significa que a Administração municipal, na apreciação dos projectos, apenas verifica o cumprimento de normas de direito do urbanismo. Veja-se, entre outros, o Ac. Do STA de 7/02/02, Processo n.º 048295, onde se conclui que “não incumbe à Administração no acto de licenciamento de obras particulares assegurar o respeito por normas de direito civil, designadamente das que tutelam servidões de passagem de terceiros sobre o prédio onde se situa a obra licenciada”
A submissão exclusiva das licenças ou autorizações urbanísticas a regras de direito do urbanismo determina que elas sejam concedidas sob o que se designa por reserva de direitos de terceiros, isto é, conferem ao requerente da licença, apenas e só, o direito de realizar aquela operação urbanística, não retirando por isso a terceiros direitos que estes já possuíssem de acordo com o ordenamento privatístico.
Segundo a melhor Doutrina1 daqui decorrem desde logo duas consequências. A primeira é a de que as normas de direito privado não constituem fundamento para o indeferimento do pedido e, a segunda, a de ficarem excluídas de apreciação pela Administração, para efeitos de emissão de licenças ou autorizações urbanísticas, as relações do titular da licença com terceiros não intervenientes na operação urbanística, (como sejam as relações com proprietários vizinhos ou destes entre si ou ainda as relações com pessoas afectadas por ocorrências relacionadas com a operação urbanística) e as situações especiais de responsabilidade que se verifiquem entre os intervenientes naquela operação. “Qualquer litígio que surja a este propósito não deve ser resolvido pela Administração no procedimento de licenciamento ou autorização (sob pena de usurpação de poderes) mas pelos tribunais”.
Contudo, apesar da regra da submissão exclusiva das licenças a normas de direito público, não está excluída, no procedimento de licenciamento, a necessidade de comprovação da legitimidade do requerente desde logo porque o artigo 9º nº1 do DL nº 555/99 exige que o requerente, no requerimento inicial, invoque e comprove a titularidade de qualquer direito que lhe confira a faculdade de realizar a operação urbanística a que se refere a pretensão, determinando o n.º1 do artigo 11.º que o presidente da câmara municipal deve decidir, na fase de saneamento e apreciação liminar, as questões de ordem formal e processual que possam obstar ao conhecimento do pedido.
Nos termos do art. 11º da Portaria nº 1110/2001 que identifica os elementos necessários à instrução do pedido de licenciamento de obras de edificação, são exigidos na al. a) os “documentos comprovativos da qualidade de titular de qualquer direito que confira a faculdade de realização da operação” e na al. b) a “certidão da descrição e de todas as inscrições em vigor emitida pela conservatória do registo predial referente ao prédio ou prédios abrangidos”.
Assim, por força deste normativo o requerente está obrigado a instruir o seu pedido de licenciamento de obras com a referida certidão, sob pena de, nos termos do art. 11º do DL nº 555/99, o presidente da câmara proferir despacho de rejeição liminar do pedido, por falta de documento instrutório indispensável ao conhecimento da pretensão.
Por outro lado, sendo a legitimidade do requerente, nos termos do artigo 83.º do Código do Procedimento Administrativo, um pressuposto procedimental, isto é, um elemento cuja não verificação impede uma decisão de fundo por parte da Administração, tal significa que o presidente da câmara deve verificar a existência efectiva desse pressuposto. Note-se porém que a verificação da legitimidade se restringe apenas a uma apreciação meramente formal, isto é, no sentido de verificar se o requerente apresentou o documento comprovativo da legitimidade invocada.
Desta forma, desde que o particular apresente tal documento deve a Administração dar início e prosseguir com o procedimento, cabendo exclusivamente aos tribunais esclarecer qualquer dúvida de natureza substancial que se relacione com a questão da legitimidade.
Assim, é de concluir2 que “a subordinação exclusiva a regras do direito do urbanismo e a sua emissão salvo direito de propriedade e sem prejuízo de direitos de terceiros não tem inteira aplicação quando está em jogo a verificação da legitimidade para formular o pedido de licenciamento, uma vez que a Administração se vê obrigada a verificar se o requerente se apresenta como titular de um direito (privado) que lhe confira legitimidade para formular o pedido, não obstante essa verificação se traduzir, em regra, numa mera verificação formal”.
No caso concreto, parece existir um conflito de propriedade pela sobreposição do terreno onde o requerente pretende edificar e um dos lotes do loteamento mencionado. Todavia, tendo sido apresentada pelo requerente a respectiva certidão da Conservatória do Registo Predial, é feita a prova de legitimidade exigida nos termos dos artigos supra referidos.
Efectivamente, o art. 7º do Código de Registo Predial ao estabelecer uma presunção da titularidade do direito prova que o direito existe e pertence ao titular inscrito. Trata-se, na verdade, de uma presunção “juris tantum” cujo conceito decorre do arts. 349º do Código Civil e que, embora possa vir a ser elidível mediante prova em contrário, dispensa, quem dela dispõe, de fazer prova do respectivo facto constitutivo.
A presunção registral actua assim relevantemente quer quanto ao facto inscrito, quer quanto aos sujeitos e objecto da relação jurídica dele emergente, pelo que à Câmara apenas cabe observar se o teor das descrições que constam do registo conferem legitimidade ao particular para requerer o licenciamento de operação urbanística pretendida.
Não se pretende, contudo, afastar as razões que possam assistir ao reclamante. O que se pretende dizer é que existindo prova da legitimidade do requerente enquanto pressuposto para desencadear o procedimento e cumprindo a pretensão todas as normas de direito urbanístico, exigir-se-ia que o reclamante contestasse perante os tribunais essa mesma legitimidade, através da acção própria, para que a Câmara pudesse questionar a legitimidade do requerente.
Sem tal iniciativa entendemos que o presidente da Câmara não deve suspender o procedimento de licenciamento, já que não existe nenhuma questão prévia dependente de decisão dos tribunais.
A Divisão de Apoio Jurídico
(Elisabete Maria Viegas Frutuoso)
1. Fernanda Paula Oliveira, A legitimidade nos Procedimentos urbanísticos, O Municipal n.º 265
2. Fernanda Paula Oliveira, “As licenças de Construção e os Direitos de Natureza Privada de Terceiros”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Boletim da Faculdade de Direito, n.º 61, pag 1027 e ss)
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