Acesso às Gravações das Sessões da Assembleia Municipal.

 

O Presidente da Assembleia Municipal de … remeteu a esta CCDRC, por seu ofício de …, referência n.º …, um extracto da acta, em minuta, da reunião desse órgão de 26 de Fevereiro de 2016, relativo ao seu ponto Sétimo - Regimento da Assembleia Municipal (aprovado em 2014-02-26) – 1.ª alteração - Deliberação sobre a disponibilização das gravações das sessões da AM, bem como a moção então apresentada e aprovada por maioria, no final da qual é dito o seguinte:

Que a presente moção seja remetida à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, à Direção-Geral das Autarquias Locais, à Associação Nacional dos Municípios Portugueses e ao Provedor de Justiça, a fim de promover um debate mais alargado e, eventualmente, obter alguns contributos/pareceres que ajudem a um melhor enquadramento desta matéria complexa.

 

Apreciando

  1. Do pedido

O pedido remetido a esta CCDRC pelo Presidente da Assembleia Municipal do município supra referido – e que, ao que nele é dito, foi igualmente dirigido a um conjunto de diversas outras entidades – tem apenas como objectivo, tal como se explica na moção, a obtenção, por esse órgão, de alguns contributos/pareceres que ajudem a um melhor enquadramento [da] matéria em causa, qual seja, a relativa à temática da gravação das sessões desse órgão autárquico, do acesso e disponibilização dessas gravações bem como da sua qualificação como documento administrativo.

Transcreve-se a referida moção, subscrita pelo Presidente e pelos 1.º e 2.º Secretários da Mesa da Assembleia Municipal, para lograr maior clareza e um melhor enquadramento do pedido efectuado:

Moção - Acesso às gravações das sessões da Assembleia Municipal

Fundamento:

O Membro desta Assembleia Municipal (AM), Sr. …, Presidente da Junta de Freguesia de …, solicitou via e-mail em 2016-01-11 e em 2016-01-25, que lhe fosse disponibilizada uma cópia das gravações da sessão ordinária desta Assembleia realizada em 2015.11.27

Em 2016-01-31, o Presidente da Assembleia respondeu pela mesma via nos seguintes termos: "Exmo Membro da Assembleia Municipal, Senhor Presidente da Junta de Freguesia de …. Acuso a receção do seu pedido da gravação da última sessão da Assembleia Municipal, o qual mereceu a melhor atenção. Todavia, não colocando em causa a legitimidade do seu pedido também não poderei ignorar os seguintes aspetos: O facto das Sessões da AM serem públicas não significa, de per si, que as gravações sejam consideradas públicas; As gravações das sessões, não sendo obrigatórias por lei, julgo que terão sido implementadas pela própria Assembleia com o fim específico de auxiliar na elaboração das atas, estas sim, de elaboração e publicitação legalmente previstas; O regimento da AM nada dispõe sobre as referidas gravações; As gravações podem conter afirmações ou expressões pessoais, proferidas por qualquer membro, que se descontextualizadas poderão conduzir a interpretações erradas e dar origem a situações perigosamente sensíveis; Tenho dúvidas que a utilização das gravações para outros fins que não o da elaboração e conferência das atas não careça de autorização expressa dos membros intervenientes nas sessões. Face ao exposto, entendo que deve ser a própria Assembleia a deliberar sobre a utilização e disponibilização das gravações, pelo que desde já me comprometo a levar o assunto à próxima sessão. Neste contexto fica, para já, prejudicada a satisfação do seu pedido. Com os melhores cumprimentos. O Presidente da Assembleia …".

Em 2016-02-01 insistiu o Sr. … no seu pedido, juntando um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) e ameaçando que faria queixa àquela entidade caso não fosse deferido o seu pedido em 5 dias.

Em 2016-02-18 foi remetida a todos os Membros da AM a convocatória para a sessão ordinária a realizar em 2016-02-26. Da ordem do dia respetiva, enviada juntamente, consta uma proposta do seguinte teor: "7.º - Regimento da Assembleia Municipal (aprovado em 2014-02-26) - 1.ª alteração - Deliberação sobre a disponibilização das gravações das sessões da AM."

Considerações:

Da análise do referido parecer da CADA, identificado com o n.º 241/2015, Processo n.º 175/2015, parece inferir-se que as gravações das sessões da Assembleia Municipal devem ser disponibilizadas como se de documentos administrativos se tratasse, acautelando, no entanto, o período que decorre até à aprovação da ata. No essencial, a CADA sustenta o seu parecer em dois aspetos que são o órgão ou serviço onde se encontram arquivadas e a indiferença perante a forma do suporte da informação, encontrando a base legal na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 46/2007, de 24 de agosto, também designada por Lei de Acesso aos Documentos da Administração (LADA). Assim, afigura-se-nos que aquele parecer assenta numa perspetiva marcadamente formal e redutora.

Com efeito, uma leitura integral da LADA leva-nos a considerar também outros aspetos mais relacionados com o conteúdo e em nosso entendimento não menos importantes no que respeita à situação controvertida, capazes de conduzir a uma orientação divergente da que emana do parecer que nos foi presente e de que desconhecemos as circunstâncias e os propósitos em que o mesmo foi emitido.

Antes de mais, pela respetiva relevância, transcrevemos na íntegra o teor do artigo 3.o da Lei em apreço: "Artigo 3.º Definições 1 - Para efeitos da presente lei, considera-se: a) «Documento Administrativo» qualquer suporte de informação sob forma escrita, visual, sonora, eletrónica ou outra forma material, na posse dos órgãos e entidades referidos no artigo seguinte, ou detidos em seu nome; b) «Documento nominativo» o documento administrativo que contenha, acerca de pessoa singular, identificada ou identificável, apreciação ou juízo de valor, ou informação abrangida pela reserva da intimidade da vida privada. 2 - Não se consideram documentos administrativos, para efeitos da presente lei: a) As notas pessoais, esboços, apontamentos e outros registos de natureza semelhante; b) Os documentos cuja elaboração não releve da atividade administrativa, designadamente referentes à reunião do Conselho de Ministros e de secretários de Estado, bem como à sua preparação."

Será oportuno aqui relembrar que "À mulher de César não basta que o seja, terá também que o parecer". Neste caso, invertendo os termos, por maioria de razão poderemos afirmar que a qualquer suporte de informação não basta parecer documento administrativo, terá também que o ser para que possa, efetivamente, ser tratado como tal e sujeito a acesso livre por qualquer pessoa. Na realidade, qualquer suporte de informação para poder ser considerado documento administrativo não basta que esteja na posse de um dos órgãos ou serviços identificados no âmbito da sujeição da LADA mas, antes de mais, deverá ser classificado como tal à luz do mesmo diploma. Por outro lado, mesmo sendo considerado documento administrativo, o respetivo acesso ainda poderá ser condicionado por diversas razões, designadamente quando se tratar de documento nominativo.

Ora, acontece que a generalidade das intervenções dos deputados desta Assembleia assumem a forma de improvisos pejados de apreciações e/ou juízos de valor, emitidas pelos oradores sobre a sua própria pessoa ou sobre a pessoa de outros Membros da Assembleia, de qualquer forma perfeitamente identificáveis, pelo que as mesmas podem ser enquadradas no âmbito da al. b) do n.º 1 do artigo 3.º da LADA, devendo, nesta perspetiva, as gravações ser consideradas documentos nominativos.

Acresce que, por outro lado e em bom rigor, uma boa parte das nossas intervenções nesta Assembleia são a exposição oral das nossas notas pessoais, esboços e apontamentos, que nos permitimos partilhar com os demais Membros, podendo assim constituir, as respetivas gravações, outros registos de natureza semelhante, o que as coloca sob a proteção da alínea a) do n.º 2 do artigo citado, e não é por as mesmas serem por nós autorizadas que podem ver alterada a respetiva natureza. Noutra perspetiva ainda mais direta, temos presente que as gravações vieram substituir as notas ou apontamentos pessoais que alguém era incumbido de fazer, com o único objetivo de ajudar na elaboração das atas em momento posterior, pelo que as mesmas só podem ser entendidas como "outros registos de natureza semelhante".

Por outro lado, estamos cientes que as sessões da Assembleia Municipal são públicas, é verdade!

Mas não é menos verdade que na sua maioria não têm qualquer público a assistir e, quando têm, a maior parte das vezes trata-se de pessoas familiarizadas com o respetivo funcionamento, o que faz com que os oradores fiquem mais descontraídos e as intervenções se tornem mais informais escapando, com alguma frequência, palavras ou expressões que seguramente seriam evitadas caso houvesse a noção exata que as mesmas seriam acedíveis de forma livre e generalizada potenciando a respetiva publicitação descontextualizada, o que originaria interpretações erradas e abusivas e colocaria os respetivos autores em situações humilhantes e de chacota. Esta possibilidade levaria os Membros da Assembleia a pensar duas vezes antes de pedirem a palavra e, naturalmente, muitas vezes acabariam por deixar de o fazer ou fá-lo-iam de forma condicionada. Ou seja, a transparência levada ao limite teria como consequência um prejuízo significativo em termos de espontaneidade, de participação democrática e liberdade de expressão.

É neste enquadramento que autorizamos as gravações das nossas intervenções na Assembleia Municipal, autorizações que pretendemos manter caso o enquadramento descrito seja legitimado e respeitado pelas entidades que venham a apreciar esta moção. Caso contrário, alegando prejuízo no equilíbrio necessário entre os valores da transparência, da espontaneidade, da participação democrática, da liberdade de expressão e da boa-fé, consideraremos que as gravações das nossas intervenções jamais foram por nós autorizadas e, como tal, considerar-se-ão as mesmas ilegítimas com as consequências que daí possam advir.

Propostas/Recomendações:

Em face do exposto, mormente em benefício do equilíbrio entre os valores da transparência, da espontaneidade, da participação democrática, da liberdade de expressão e da boa-fé, somos a propor o seguinte:

  1. As sessões da Assembleia Municipal são gravadas em áudio, considerando-se tais gravações como outros registos de natureza semelhante a notas pessoais, esboços ou apontamentos e, como tal, enquadráveis na alínea a) do n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 46/2007, de 24 de agosto, também designada por Lei de Acesso aos Documentos da Administração (LADA).
  2. Qualquer Membro da Assembleia poderá solicitar a não gravação das suas intervenções.
  3. O acesso às gravações das sessões da Assembleia Municipal apenas deve ser permitido no âmbito da elaboração ou revisão das atas a que as mesmas servem de suporte, aos Técnicos da Autarquia e Membros da Mesa da Assembleia que intervenham nos referidos procedimentos.
  4. Aos restantes Membros da Assembleia Municipal também deve ser permitido o acesso às referidas gravações, mas apenas às partes que diretamente lhes respeitem, enquanto oradores ou quando citados por outros oradores. Estes acessos devem ser solicitados com uma antecedência mínima de 48 horas e após o envio do projeto da ata aos Membros da Assembleia. Os mesmos são gratuitos e concretizam-se de forma direta e assistida por Técnico da Autarquia que preste apoio à Assembleia.

No caso das presentes propostas lograrem merecer a aprovação por parte desta Assembleia Municipal, recomenda-se ainda o seguinte:

Que as mesmas sejam integradas no Regimento desta Assembleia Municipal, eventualmente aditando-se o artigo n.º 14.º-A com a epígrafe "Gravações das Sessões";

Que a presente moção seja remetida à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, à Direção-Geral das Autarquias Locais, à Associação Nacional dos Municípios Portugueses e ao Provedor de Justiça, a fim de promover um debate mais alargado e, eventualmente, obter alguns contributos/pareceres que ajudem a um melhor enquadramento desta matéria complexa.

 

  1. Análise

Como se diz no pedido, este visa apenas a obtenção de contributos para um debate alargado e para um melhor enquadramento da matéria que aí se expõe. Em função disso, elaboram apenas algumas considerações tópicas sobre a temática em apreço a respeito de alguns aspectos que nela se colocam.

2.1. A Constituição estabelece como regra que as reuniões das assembleias que funcionem como órgãos (…) do poder local são públicas, excepto nos casos previstos na lei[1]. Ao referir-se a reuniões das assembleias, a norma constitucional, em matéria de poder local, dirige-se (apenas) aos órgãos considerados assembleias: assembleia municipal e assembleia de freguesia[2]

Assim, na administração autárquica – municípios e freguesias - a regra relativa às sessões dos seus órgãos deliberativos é a de que são públicas[3].

É assim constitucional e legalmente previsto e admitido que outras pessoas que não os respectivos membros – ou seja, público em geral, e não, apenas, necessariamente munícipes - possam estar presentes e assistir aos trabalhos[4], sem necessidade de qualquer autorização, ainda que tal presença não signifique liberdade de participação ou de intervenção nos debates e nos trabalhos das assembleias[5].

A lei prevê ainda que no decurso da sessão, haja um período para intervenção e esclarecimento do público, cuja concreta disciplina cabe ser estabelecida pelo regimento do órgão[6]. Assim, o regimento do órgão deliberativo deve cuidar da possibilidade de previsão, na agenda dos trabalhos, de um período destinado a intervenções e esclarecimento do público[7], no decurso do qual este pode interpelar directamente o órgão, colocando questões, e dele obter esclarecimentos e informações[8].

O facto de, em alguns casos, ser mais ou menos comum não haver público presente às reuniões da assembleia municipal, ou de este rarear, não altera em nada a natureza pública da reunião, com todas as consequências daí advenientes.

2.2. A regra, neste contexto, é a de que as reuniões decorrem com a presença física dos seus membros[9] – e não por qualquer forma de participação remota como videoconferência. Ainda que as questões nela debatidas possam suportar-se em documentos escritos, a reunião decorre sempre de forma oral, pessoal e directa, não havendo qualquer intermediação entre os membros que nela intervenham (ou seja, “falem”) e o colégio a quem se dirigem, ressalvadas as indicações destinadas a assegurar a “boa ordem” no decurso dos trabalhos que ao presidente cabe assegurar, dirigindo-se, assim, o orador directamente ao colégio e por ele (por cada um dos seus membros) podendo ser interpelado.

Assim, tudo quanto é dito no decurso de uma reunião da assembleia releva para o seu conteúdo e para quanto nela se aprecia, discute e decide.

2.3 A memória futura de tudo quanto se passa nas reuniões dos órgãos colegiais – e o instrumento (documento) que garante a produção de efeitos jurídicos (eficácia jurídica) de tudo quanto nelas seja deliberado – é, nos termos da lei, assegurada unicamente pelas actas das reuniões.

A acta da reunião (de qualquer reunião de órgão colegial, quer no âmbito de entes públicos quer de entidades privadas, ou melhor, de direito privado[10]) é, na definição do CPA, um resumo de tudo o que nela tenha ocorrido e seja relevante para o conhecimento e a apreciação da legalidade das deliberações tomadas, designadamente a data e o local da reunião, a ordem do dia, os membros presentes, os assuntos apreciados, as deliberações tomadas, a forma e o resultado das respetivas votações e as decisões do presidente, cujo conteúdo – ou seja, o relato de tudo quanto haja ocorrido na reunião e seja relevante para o órgão - é consensualizado, aceite e aprovado pelos membros do órgão que nela estiveram presentes, tendo então tido ou não qualquer intervenção.

A lei não prevê qualquer outra forma, documento ou instrumento, que possa ter ou desempenhar a mesma função, tenha o mesmo valor e produza os iguais efeitos jurídicos.

Temos assim que só a acta, aprovada na devida forma, “relata” autenticamente o ocorrido na reunião. E quanto a esse relato, os membros do órgão não se podem opor a que nele, nominativamente, sejam citados e dele constem as suas intervenções ou resumos das mesmas – a cujo conteúdo eles, aliás, podem sugerir alterações para melhor o fazerem corresponder ao que entendam ter-se efectivamente passado, a quando do momento da leitura e aprovação da acta, ou mesmo dele dissentir, votando contra a aprovação da acta se aprovada apenas pela maioria, e fazendo declaração de voto.

2.4. A tomada de som (gravação áudio) das reuniões de órgãos colegiais, maxime, no caso que ora importa, de órgão deliberativo autárquico, não se encontra constitucional ou legislativamente prevista, nem em lugar algum a lei aborda essa questão.

Contudo nada parece impedir que a gravação das sessões dos órgãos colegiais, maxime da assembleia municipal, possa ser prevista e disciplinada, designadamente quanto às condições da sua realização e conservação, no respectivo regimento[11].

2.5. Contudo em tal circunstância não deve ser olvidado que da gravação de som passam a constar não apenas o teor das intervenções dos membros da assembleia, e de toda a demais interlocução na pendência da reunião[12], como a indicação dos assuntos e das pessoas que nesses assuntos possam ter interesse e estar em causa, e, bem assim, a indicação/identificação dos cidadãos que intervenham nas reuniões onde haja lugar à intervenção do público, o que pode colidir com matéria atinente à protecção de dados pessoais[13].

2.6. Por via da sua conservação[14], as gravações de som das reuniões, maxime das assembleias municipais, transformam-se ou “constituem-se”, ope legis, em documentos administrativos e, em consequência, livremente acessíveis e acedíveis por qualquer um, em razão do princípio da administração aberta (ou, antes, do princípio do arquivo aberto[15]) e independentemente (da titularidade) de qualquer interesse nesse acesso[16].

Por essa razão, não é legalmente admissível que o órgão cujas reuniões sejam gravadas e conservadas, estabeleça restrições ou denegações ao livre acesso a essas gravações, seja por que motivo seja (designadamente pela sua classificação como outros registos de natureza semelhante a notas pessoais, esboços ou apontamentos de modo a desconsiderá-las como documento administrativo[17]), salvo, naturalmente, pelas razões expressamente previstas na lei: informações que possam por em risco ou causar dano à segurança interna e externa do Estado[18], matérias em segredo de justiça[19], documentos nominativos[20] e segredos comerciais, industriais, ou sobre a vida interna de uma empresa[21].

2.7. Sendo o regimento de um órgão (colegial) da administração um regulamento administrativo ainda que de uma especial natureza, a sua alteração – ou seja, o procedimento formal próprio e determinante da validade substancial da mesma – deve observar o previsto na lei.

Assim qualquer intenção de alteração do regimento da Assembleia Municipal deve constar de proposta nesse sentido, apresentada pela Mesa da Assembleia[22], a apreciar e aprovar pela Assembleia[23], fazendo-se de imediato constar do regimento as alterações nele introduzidas de modo a que possa ser conhecido com a sua nova redacção.

Não parece assim que a utilização da figura (parlamentar e “política”) da moção, vocacionada para constituir tipicamente a forma de manifestação parlamentar de apoio e de rejeição[24] do executivo – e que também existe ao nível da administração local, como seja a moção de censura da Assembleia Municipal à comissão executiva metropolitana ou ao secretariado executivo intermunicipal[25] ou a moção de censura da Assembleia Intermunicipal ao secretariado executivo intermunicipal[26], determinando a sua aprovação a demissão do órgão censurado[27] - possa servir de veículo a intervenções de carácter normativo-regulamentar, designadamente alterações ao regimento.

Aliás não resulta claro (nem se assim foi entendido pela Assembleia) se com a aprovação da moção contendo uma alteração ao regimento, foi este considerado efectivamente alterado – como era proposto na agenda da reunião[28] – ou se este não foi alterado mas doravante e para todos os efeitos as gravações das reuniões da Assembleia Municipal passam a reger-se de acordo com o que nela se diz – o que de todo o modo, num caso e noutro, se afigura pouco curial.

 

 Salvo semper meliori judicio

  

Ricardo da Veiga Ferrão

(Jurista. Técnico Superior)

 

[1] Artigo 116.º, n.º 1, da Constituição da República (CRP).

[2] A CRP, ao abordar, no artigo 239.º, os órgãos do poder local, diz serem eles de dois tipos ou dupla natureza, uma assembleia eleita e um órgão executivo, que a lei posteriormente consagra nos artigos 5.º e 6.º, n.º 1, do Regime Jurídico das Autarquias Locais (RJAL), aprovado, em anexo, pela Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro.

Em sentido idêntico, vd. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4ª edição revista (reimp.), 2014, pág. 113.

[3] Artigo 49, n.º 1, do Regime Jurídico das Autarquias Locais (RJAL), aprovado, em anexo, pela Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro.

[4] A possibilidade da presença de público nas sessões das assembleias deliberativas pode-se designar, neologísticamente, de “publicalidade”, de modo a diferenciá-la da publicidade das mesmas reuniões ‑ entendendo-se por esta (publicidade) a divulgação da ocorrência ou realização da reunião ou sessão do órgão e do que nele se haja decidido e por aquela (publicalidade) como a qualidade relativa à sessão ou reunião de órgão que pode ser, ou não, assistida ou presenciada por pessoas estranhas ao mesmo (ou seja, presenciada por “público”).

[5] Sob a forma de assistência às reuniões, o artigo 49, n.º 4, do RJAL diz que a nenhum cidadão é permitido intrometer-se nas discussões, aplaudir ou reprovar as opiniões emitidas, as votações feitas ou as deliberações tomadas. O público é, portanto, considerado mero assistente, no sentido que que pode estar presente, ver e ouvir tudo quanto se debate, mas sendo-lhe vedado ter outra qualquer intervenção.

[6] Quanto aos órgãos executivos autárquicos, as reuniões destes são, por regra, reservadas. Porém, a lei dispõe que deve ser promovida, pelo menos, uma reunião pública mensal (artigo 49, n.º 2, do RJAL), a qual fica sujeita a condicionalismos idênticos aos previstos, nesta matéria, aos das reuniões dos órgãos deliberativos.

Esta mesma reserva constitui igualmente a regra geral quanto ao acesso do público (“publicalidade”) às reuniões dos órgãos da Administração, pois que também elas não são públicas - o que é por dizer que são reservadas aos seus membros – salvo no caso de previsão legal em contrário (artigo 27.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo (CPA)).

[7] Artigo 49, n.º 1, do RJAL.

[8] Diz Jorge Pação, Os órgãos colegiais no Novo Código do Procedimento Administrativo, in Carla Amado Gomes, Ana Fernandes Neves, Tiago Serrão (coord.) Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, 2.ª reimp., 2015, pág. 203, que dá-se, deste modo, efetiva aplicação aos princípios da participação e colaboração (…) aquando do funcionamento dos órgãos colegiais, sendo que quanto ao modelo de intervenção adotado, consagra-se a “tripla capacidade interventiva”(…): divulgação, colaboração e esclarecimento, permitindo que o contributo dos assistentes à reunião seja significativo e com efetiva preponderância na formação da vontade do órgão colegial.

[9] É quanto parece resultar da exigência legal de quórum de funcionamento e de deliberação dos órgãos colegiais autárquicos, que se verifica apenas quando neles esteja presente a maioria no número legal dos seus membros [sublinhado nosso] (artigo 54.º, n.º 1, da RJAL). Também o artigo 29.º do CPA acolhe idêntico princípio ao prever que os órgãos colegiais só podem, em regra, deliberar quando esteja presente a maioria do número legal dos seus membros com direito a voto (n.º 1) e, em segunda convocatória, desde que esteja presente um terço dos seus membros com direito a voto (n.º 3) [sublinhados nossos].

[10] Diz-se no artigo 37.º do Código Comercial que os livros ou as folhas das actas das sociedades servirão para neles se lançarem as actas das reuniões de sócios, de administradores e dos órgãos sociais, devendo cada uma delas expressar a data em que foi celebrada, os nomes dos participantes ou referência à lista de presenças autenticada pela mesa, os votos emitidos, as deliberações tomadas e tudo o mais que possa servir para fazer conhecer e fundamentar estas, e ser assinada pela mesa, quando a houver, e, não a havendo, pelos participantes.

[11] O facto da gravação das reuniões da assembleia não se encontrar prevista no regimento, mas ser prática corrente, aceite e do conhecimento geral (designadamente entre os membros do órgão), não altera a natureza das gravações nem concede qualquer direito ou prerrogativa aos membros do órgão de poderem dispor sobre o conteúdo ou o destino das mesmas. Na verdade, estas gravações constituem-se como documentos administrativos nos mesmos termos que as demais, estando assim fora do poder de disposição do órgão ou dos seus membros.

[12] Afigura-se que a gravação, enquanto registo sonoro da reunião de um órgão, apenas pode ser efectuada e registar som entre os momentos de abertura e encerramento da reunião, declarados por quem presida à mesma, não podendo ser gravadas conversas ou locuções prévias ou posteriores a esses momentos. Caso o sejam devem ser desgravadas, não relevando e sendo sempre desconsideradas para quaisquer efeitos, designadamente administrativos. No caso das reuniões da assembleia municipal, a gravação abrangerá, portanto, os períodos de antes da ordem do dia (artigo 52.º do RJAL) e da ordem do dia (artigo 53.º do RJAL).

Porém, para que possa ser mantida a integralidade e fidedignidade da gravação – valores maiores da mesma, como de qualquer documento administrativo – nada dela pode ser alterado ou removido (ou seja ser a gravação “retocada”) pois que isso a transforma em documento adulterado ou contrafeito e, por isso, inverídico, ficando assim despido de fé ou capacidade probatória.

[13] Em termos de tratamento de dados, caso tal questão se coloque, é de considerar que os dados recolhidos respeitantes aos membros do órgão deverão ser considerados como “manifestamente tornados públicos” e portanto, contendo uma implícita autorização para o seu tratamento, tanto mais quanto foram os mesmos a autorizar a gravação.

No que toca ao público presente já não se pode considerar que a sua presença na reunião represente uma autorização implícita para eventual tratamento dos dados pessoais que se lhes refiram, pelo que deverá ser necessária uma autorização individual.

O mesmos se diga, e neste caso ainda com mais acuidade, quanto ao tratamento dos dados pessoais das pessoas cujos assuntos venham a ser abordados, discutidos e decididos na reunião, pois que esse facto não significa qualquer autorização. Assim também aqui será necessário, para o efeito, obter o consentimento expresso e inequívoco.

[14] A Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (Lei n.º 46/2007, de 24 de Agosto, alterada pelo Decreto-Lei n.º 214‑G/2015, de 2 de Outubro) (LADA), toma por “documento administrativo” qualquer suporte de informação sob forma escrita, visual, sonora, electrónica ou outra forma material, na posse dos órgãos e entidades referidos no artigo seguinte, ou detidos em seu nome (artigo 3.º, n.º 1, al. a) da LADA) [sublinhados nossos], sendo que os órgãos das autarquias locais encontram-se incluídos no seu âmbito de aplicação (artigo 4.º, n.º 1, al. e) da LADA).

[15] O artigo 268.º, n.º 2 da Constituição, de entre os direitos e garantias dos administrados, prevê que os cidadãos têm também o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, sem prejuízo do disposto na lei em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas, princípio ou regra que o artigo 17.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo recebe e concretiza ao afirmar que todas as pessoas têm o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, mesmo quando nenhum procedimento que lhes diga diretamente respeito esteja em curso (…). Prevê-se e regula-se, assim, a informação não procedimental, forma de informação administrativa que está “fora” ou para além da informação (administrativa) relativa ao procedimento administrativo.

[16] É quanto resulta do artigo 5.º da Lei n.º 46/2007, de 24 de Agosto, alterada pelo Decreto-Lei n.º 214‑G/2015, de 2 de Outubro (LADA), ao aí dizer-se que todos, sem necessidade de enunciar qualquer interesse, têm direito de acesso aos documentos administrativos, o qual compreende os direitos de consulta, de reprodução e de informação sobre a sua existência e conteúdo.

[17] Nos termos da al. a) do n.º 2, do artigo 3.º da LADA, não se consideram documentos administrativos, para efeitos da [LADA] as notas pessoais, esboços, apontamentos e outros registos de natureza semelhante.

A este respeito, diz-se no Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 4 de Novembro de 2010 (Proc. n.º 6744/10):

A gravação sonora de uma reunião apenas para permitir a elaboração da acta respectiva consubstancia um documento administrativo, por se tratar de um suporte de informação, sob a forma sonora, produzido por uma entidade pública e que está na sua posse.

(…) A circunstância de a gravação sonora apenas se destinar à elaboração da acta, não ficando conservada em arquivo, não põe em causa o seu carácter de documento administrativo. Efectivamente, para que tenha essa qualificação basta que se trate, como sucede no caso em apreço, de um suporte de informação, sob a forma sonora, produzido por uma entidade pública e que esteja na sua posse, sendo irrelevante, para efeitos do disposto no art. 3º., nº 1, al. a), da Lei nº 46/2007, a forma da sua manutenção.

[18] Artigo 6.º, n.º 1, da LADA. O Regime do Segredo do Estado consta da Lei Orgânica n.º 2/2014, de 6 de Agosto. As regras para classificação de documentos constam da Resolução do Conselho de Ministros n.º 50/88, de 3 de Dezembro.

[19] Artigo 6.º, n.º 2, da LADA.

[20] Artigo 6.º, n.º 5, da LADA.

[21] Artigo 6.º, n.º 6, da LADA.

[22] Artigo 29.º, n.º 1, al. a), do RJAL.

[23] Artigo 26.º, n.º 1, al. a), do RJAL.

[24] Assim a moção de confiança (artigo 193.º da Constituição) cuja não aprovação determina a queda do Governo (artigo 195.º, n.º 1, al. e), da Constituição) ou a moção de censura (artigo 193.º da Constituição) cuja aprovação [por maioria absoluta] determina igualmente a queda do Governo (artigo 195.º, n.º 1, al. f), da Constituição).

[25] Artigo 25.º, n.º 5, al. b), do RJAL.

[26] Artigo 84.º, al. f), do RJAL.

[27] Artigo 102.º, n.º1, als. a) e b), do RJAL.

[28] Como consta do ponto 7.º da Ordem de Trabalhos para a reunião da Assembleia Municipal de 26 de Fevereiro de 2016 (por lapso é referido 2015), constante de Edital de 18 de Fevereiro de 2016 subscrito pelo Presidente do órgão.

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Estradas e caminhos municipais.

 

Solicita o Presidente da Câmara Municipal de …, por seu ofício de …, referência n.º …, a emissão de parecer sobre a seguinte questão:

Na sequência do despacho do Presidente da Câmara Municipal de 02/02/2016 somos a solicitar parecer quanto à seguinte situação:

-Não possui este município cadastro dos caminhos municipais;

-No Município de … têm sido apresentados pedidos de mudança de caminho, localizados no interior dos prédios do requerente, no concelho de …;

-A pretensão destes pedidos é mudar um caminho que se localiza no interior de um determinado prédio, para junto de uma linha de extrema desse mesmo prédio, mantendo-se no interior da mesma propriedade;

-Tais pedidos vêm instruídos com cópia do documento de identificação do requerente, cópia do título de propriedade do prédio onde se localiza o caminho em questão, planta de localização e levantamento topográfico com inclusão do caminho proposto e do caminho a rodear;

-Após a entrega de tal pedido é feita uma apreciação técnica de aceitação do pedido, atenta a sua instrução;

-Posteriormente, através de edital o Município informa a pretensão do munícipe, convidando todas as pessoas que se julguem lesadas a apresentar a respetiva reclamação em determinado prazo;

-Nesta sequência, sempre que não se verificou a apresentação de qualquer reclamação, a Câmara Municipal viabilizou a pretensão do requerente e quando são remetidas reclamações, após confirmação dos fatos alegados pelos reclamantes, a Câmara Municipal tem inviabilizado a pretensão do munícipe no que se refere à mudança de caminho.

Assim, e tendo em consideração a existência de um pedido concreto de mudança de caminho apresentado neste Município que foi alvo de reclamações, cujos fatos alegados foram confirmados pelos serviços, solicita-se a Va Ex" a emissão de parecer quanto ao procedimento a seguir por esta Autarquia, designadamente se deve manter o procedimento até agora seguido, isto é, se deve a Câmara Municipal inviabilizar a pretensão do requerente.

 

Apreciando

  1. Do pedido

Pretende a Câmara Municipal de …, saber se, perante as reclamações de que foi alvo um pedido de mudança de localização de um caminho apresentado na Câmara Municipal por um particular, no âmbito de um procedimento nela corrente e reiterado, utilizado para mudança de caminhos em propriedades (privadas) dos autores do pedido, e face à confirmação pelos serviços técnicos da Câmara dos factos alegados pelos reclamantes (factos esses que não são, contudo, referidos no pedido de parecer) deve (ou não) inviabilizar a pretensão do requerente.

 

  1. Notas Prévias

2.1. O primeiro ponto a ter em consideração antes de se entrar propriamente na análise do assunto proposto prende-se com a necessidade da existência de um registo (cadastro) das estradas e caminhos municipais, não só por via da exigência do POCAL de que as autarquias locais elaborem e mantenham actualizado o inventário de todos os bens, direitos e obrigações constitutivos do seu património[1], como pela incumbência cometida por lei aos presidentes das câmaras municipais de elaborar e manter actualizado o cadastro dos bens móveis e imóveis do município[2], no qual, naturalmente, serão de incluir os bens do domínio público municipal[3]|[4].

Por outro lado a Lei n.º 2110, de 19 de Agosto de 1961, que aprovou o Regulamento da Estradas e Caminhos Municipais[5], diz ser das atribuições das câmaras municipais a construção, conservação, reparação, polícia, cadastro e arborização das estradas e cominhos municipais [sublinhado nosso].

De referir ainda que o Decreto-Lei n.º 42271, de 20 de Maio de 1959 e o Decreto-Lei n.º 45552, de 30 de Janeiro de 1964, contêm os planos das estradas municipais, o primeiro, e dos caminhos municipais, o segundo[6], pelo que constituem ainda uma fonte sobre as vias de comunicação municipais que integram domínio público municipal.

Por seu lado, o PDM de … contém, na alínea g) do n.º 3 do artigo 6.º, o elenco (que se presume ser) de todas as vias presentemente consideradas como estradas e caminhos municipais.

Assim o município peticionante dispõe já de um conjunto de indicações relevantes no que toca ao levantamento das vias municipais.

2.2. Passando agora à questão colocada, há que esclarecer previamente alguns aspectos que com ela se conexionam.

2.2.1. O primeiro deles prende-se com o facto de que uma via de passagem através de terreno (prédio) de particular (ou seja, de um caminho que se encontra sobre ou em terreno privado) não pode, desde logo, ser considerada como um caminho público, porque (ou ainda que) utilizada por várias pessoas.

2.2.1.1. Um caminho privado é, em regra, um caminho cujo solo em que se encontra implantado é propriedade privada e cuja utilização é feita apenas pelo proprietário do terreno (e, portanto, também proprietário do caminho), em seu próprio benefício, ou por terceiros devidamente autorizados.

Contudo, as mais das vezes, esses caminhos apresentam-se como servidões[7] de passagem que são vias destinadas a dar acesso a prédios encravados, que não têm qualquer comunicação directa com a via pública ou a tenham insuficiente, através dos (“sobre” os) prédios rústicos vizinhos, conforme se dispõe no artigo 1550.º do Código Civil – coisa distinta dos “velhos” atravessadouros[8] que, no caso de não poderem ser considerados como servidões (por não se encontrarem estabelecidos em proveito de prédio ou prédios determinados) ou não se dirigindo a ponte ou fonte de manifesta utilidade (caso não existam vias públicas alternativas que propiciem esse acesso) (artigo 1384.º do Código Civil) ou ainda não se encontrando especialmente previstos na lei, mesmo que sendo imemoriais, se consideram abolidos com e desde a entrada em vigor do Código Civil de 1966 (artigo 1383.º do Código Civil), deixando assim de merecer tutela legal enquanto tais.

2.2.1.2. Coisa diferente é um caminho público. À luz de um critério funcional, que se pode ir buscar à definição que deles faz o artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 34593, de 11 de Maio de 1945[9], caminhos públicos são as ligações [viárias e/ou pedonais] de interesse secundário e local, sendo subcategorizados em caminhos municipais - os que se destinam a permitir o trânsito automóvel - e caminhos vicinais - os que normalmente se destinam ao trânsito rural – ficando os primeiros a cargo das câmaras municipais e os segundos das juntas de freguesia das circunscrições onde se situem (artigo 7.º, als. b) e c), do Decreto-Lei n.º 34593).

Mas para que um caminho possa ser considerado público o já referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Fevereiro de 2012 entende que se devem verificar dois requisitos para que se possa dar como provada essa dominialidade pública: o uso directo e imediato pelo público e a imemoralidade daquele uso. Mas, além disso, o mesmo aresto entende ainda como necessário que se verifique uma afectação [do caminho] à utilidade pública, o que deverá consistir no facto do uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância. Ou, dito de outro modo, agora pela voz do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7 de Outubro de 2014[10], para que um caminho de uso imemorial se possa considerar integrado no domínio público, [necessário se torna] a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objecto a satisfação de interesses colectivos de certo grau e relevância, não satisfazendo o assinalado critério a utilização há mais de 30, 40, 50 e mesmo 100 anos, de um caminho, parte em alcatrão e parte em terra batida e pedra, que se limita e limitou a permitir o acesso a diversas fazendas, cujos proprietários para esse efeito o utilizavam, assim denunciando um uso circunscrito e subordinado a interesses de carácter meramente privatístico.

2.2.2. O segundo aspecto a considerar é que havendo conflito a respeito da natureza pública (caminho público) ou privada (servidão de passagem) de um caminho é aos tribunais judiciais (comuns) que cabe decidir essa questão. Neste sentido discorre unanimemente a jurisprudência, citando-se aqui o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Junho de 1942, onde se disse que "os Tribunais comuns são os competentes para decidir sobre a natureza dos caminhos, sobre se são ou não são particulares".

2.2.3. Por fim, o terceiro aspecto a ter em conta é o de que a mudança de local de (um caminho de) servidão é efectuada (só pode ser efectuada) à luz do disposto no direito privado (Código Civil), ou seja, nos termos do artigo 1568.º do Código Civil, sendo que em caso de dissídio entre os titulares do(s) prédio(s) serviente(s) e dominante(s), cabe somente aos tribunais judicias resolvê-lo.

Uma alteração da localização de um caminho de servidão efectuado por modo diverso (diferente procedimento) ou com intervenção decisória de outra entidade que não os proprietários envolvidos (em caso de acordo) ou os tribunais (em caso de conflito) não tem validade jurídica, não tem que ser respeitada pelos titulares dos prédios dominantes ou servientes e pode ser contestada judicialmente – porque, por um lado constitui um acto (jurídico) nulo[11] pois que praticado por entidade despida de atribuição e competência (poder) para essa circunstância e efeito[12] e, por outro, porque esse facto representa uma violação do princípio da divisão ou separação de poderes, pela invasão do âmbito do poder judicial pelo administrativo, configurando uma usurpação de poder[13].

Do exposto resulta que será apenas no que diga respeito a caminhos públicos que se encontram no âmbito da dominialidade, que as entidades administrativas, conquanto detendo competência para o efeito, podem determinar alterações aos mesmos, sendo caso disso, quer desafectando-os do domínio público, quer alterando a sua implantação, quer praticando sobre eles (e a respeito deles) os actos indispensáveis e necessários para a sua conservação bem como para a preservação da sua utilidade funcional (pública). 

 

  1. Apreciação

3.1. O sentido do que se possa dizer a respeito da questão colocada no pedido do parecer depende, em primeira linha, da qualificação que se faça da natureza do caminho descrito no quadro fáctico apresentado pela câmara peticionante, e que, no caso, é assim descrito: no município (…) têm sido apresentados pedidos de mudança de caminho, localizados no interior dos prédios do requerente, no concelho (…); a pretensão destes pedidos é mudar um caminho que se localiza no interior de um determinado prédio, para junto de uma linha de extrema desse mesmo prédio, mantendo-se no interior da mesma propriedade.

Ora, como já vimos em tese geral, se o caminho ora em causa se destinar a dar acesso a prédios encravados, estar-se-á perante um caminho de passagem, uma servidão predial, portanto ainda um caminho privado, cuja disciplina legal se situa no âmbito do direito privado e, consequentemente, em cujo processo de alteração da localização não cabe à camara municipal qualquer poder (jurídico) de intervenção e, menos ainda, de decisão.

3.2. Porém, caso se trate de um caminho público que atravesse a propriedade, a sua tutela cabe à camara municipal, se ele for considerado como caminho municipal, designadamente constando ele do inventário municipal dos bens de domínio público ou sendo referido no PDM ou ainda no já citado Decreto-Lei n.º 45552. Caso se levante diferendo sobre a publicidade[14] do caminho, ele só poderá ser resolvido pela jurisdição comum dos tribunais judiciais.

3.2.1. No caso de se tratar de caminho (público) municipal, caberá à câmara municipal aprovar (tecnicamente) a alteração do seu traçado[15] e propor à assembleia municipal, para aprovação desta, a desafectação do domínio público municipal do traçado do caminho em desuso e a afectação a este do novo traçado do caminho (artigo 25.º, n.º 1, al. q), do RJAL) bem como a aprovação da permuta do solo relativo ao caminho desafecto e o da nova implantação com o(s) proprietário(s) peticionante(s), na hipótese de o seu valor ser superior ao do limiar indicado na al. i) do n.º 1 do artigo 25.º do RJAL (sendo o caso); caso contrário, a competência para essa permuta pertencerá à câmara municipal (artigo 33.º, n.º 1, al. g), do RJAL).  

3.2.2. Resta ainda referir a hipótese de se tratar de um caminho vicinal. Como já se viu antes, os caminhos vicinais são os que normalmente se destinam ao trânsito rural e se encontram a cargo das juntas de freguesia dos locais onde se situem (artigo 7.º, als. b) e c), do Decreto-Lei n.º 34593 e n.º 10 do artigo 253.º do Código Administrativo [norma que nada diz se deva entender como revogada]). Porque o Decreto-Lei n.º 34593 foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 380/85, de 25 de Setembro (2º Plano Rodoviário Nacional) e, como se diz no Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 20 de Novembro de 2014[16], porque a matéria dos caminhos vicinais se encontrava omissa no diploma revogatório, por despacho de 4-2-2002 do então Secretário de Estado da Administração Local foi entendido o seguinte:

Apesar de o Decreto-Lei nº 34593, de 11 de Maio de 1945 (cujo artigo 6º classificava os caminhos públicos em municipais e vicinais) ter sido expressamente revogado pelo D.L. nº 380/85, de 29/9, que aprovou o Plano Rodoviário Nacional (e que foi por sua vez revogado pelo D.L. nº 222/98, de 17 de Julho), resulta da aplicação do Decreto-Lei nº 42271, de 31 de Maio de 1959 (o “plano das estradas municipais”) e do Decreto-Lei nº 45552, de 30 de Janeiro de 1964 (o “plano das estradas municipais”), e através de um argumento "a contrario sensu", que deverão ser considerados vicinais, e portanto sob jurisdição das respetivas Juntas de Freguesia, todos os caminhos públicos que não forem classificados como municipais.

Temos assim, portanto, tal como se sustenta nesse acórdão, ainda que relativamente a uma situação ocorrida em 1993, mas que nem o decurso do tempo nem as posteriores alterações legislativas tornaram desactual, a actividade de administrar, dispor e desafetar (por motivos de interesse público) os caminhos públicos vicinais (…) [cabe] às freguesias e não aos municípios – pelo que qualquer alteração que a eles se refira, como aquele que ora está em causa, deverá correr seus termos não na câmara municipal mas sim na junta de freguesia e respectiva assembleia.

  

Concluindo

A resposta sobre a questão colocada depende, assim, da verificação, no caso, de uma de várias hipóteses:

  1. Se o caminho em causa se destinar a dar acesso a prédios encravados, poder-se-á estar perante um caminho de passagem, uma servidão predial, e, portanto, um caminho privado (ainda que utilizado por várias pessoas), cuja disciplina legal se situa no âmbito do direito privado e, consequentemente, em cujo processo de alteração da localização não cabe à camara municipal qualquer poder (jurídico) de intervenção e, menos ainda, de decisão, sob pena de usurpação de poder, tornando nula a decisão.
  2. No caso de se tratar de caminho (público) municipal, caberá à câmara municipal aprovar (tecnicamente) a alteração do seu traçado e propor à assembleia municipal, para aprovação desta, a desafectação do domínio público municipal do traçado do caminho em desuso e a afectação a este do novo traçado do caminho, bem como a aprovação da permuta do solo relativo ao caminho desafecto e o da nova implantação com o(s) proprietário(s) peticionante(s), na hipótese de o seu valor ser superior ao do limiar indicado na al. i) do n.º 1 do artigo 25.º do RJAL (sendo o caso); caso contrário, a competência para essa permuta pertencerá à câmara municipal.
  3. Na hipótese de se tratar de um caminho vicinal qualquer alteração que a ele se refira deverá correr seus termos não na câmara municipal mas sim na junta de freguesia e respectiva assembleia do local onde se situa.

  

Salvo semper meliori judicio

  

Ricardo da Veiga Ferrão

 (Jurista. Técnico Superior)

 

[1] Diz-se no Manual de Apoio Técnico à Aplicação do POCAL – Regime completo, CEFA, 2006, pág. 23: Segundo se dispõe no ponto 2.8.1. do POCAL, o inventário de uma autarquia local é composto por todos os bens, direitos e obrigações constitutivos do seu património. Entende-se- por bens os seguintes elementos patrimoniais: (…) Imobilizações (…) bens do domínio público geridos ou administrados pela autarquia local.

Mais se diz na mesma obra que em termos de inventário, o POCAL, no seu ponto 2.8.1., obriga a elaborar e a actualizar o inventário de todos os bens com base em fichas, não excluindo os do domínio público. Relativamente a estes últimos, compete à autarquia local responsável pela sua administração e ou controlo, a respectiva inventariação, estejam ou não os mesmos afectos à sua actividade operacional. (…) na elaboração do inventário e respectiva avaliação, as regras são as mesmas, independentemente de se tratarem de bens do domínio público ou privado (pág. 33). Prossegue ainda obra que se vem de citar: (…) pertencem ao domínio de circulação das autarquias locais as estradas municipais, os caminhos municipais e os caminhos vicinais (ruas, praças, jardins e respectivas obras de arte), existentes em áreas e espaços de que cada autarquia seja proprietária (pág. 35).

[2] Artigo 35, n.º 1, do Regime Jurídico das Autarquias Locais (RJAL), aprovado, como seu anexo, pela Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro.

[3] Ainda que o dever de (o que é por dizer a competência para a) elaboração e constante actualização do cadastro dos bens móveis e imóveis do município esteja cometido ao presidente da câmara, a administração do domínio público municipal cabe à câmara municipal (artigo 33, n.º 1, al. qq), do RJAL), competência que pode, porém, ser delegada no presidente da câmara (artigo 34.º, n.º 1, do RJAL). Contudo, o poder de administração do domínio público municipal não engloba o poder de afectação e desafectação dos bens que o integram, o qual cabe apenas à assembleia municipal, mediante proposta da câmara municipal (artigo 25.º, n.º 1, al. q), do RJAL).

[4] Tal inventariação, para além das finalidades que lhe são próprias, permite, quando conjugada com o cadastro dos caminhos vicinais (das freguesias), definir com clareza a natureza, publica ou privada, de todos os caminhos e vias de circulação no espaço municipal.

[5] A Lei n.º 2110 foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 360/77, de 1 de Setembro.

[6] Estes diplomas não obstante a sua antiguidade, não podem deixar de se considerar ainda em vigor, já que, até ao momento, não chegou a ser (ainda) editado o diploma, previsto no artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 222/98, de 17 de Julho (alterado pela Lei n.º 98/99, de 26 de Julho, e pelo Decreto-Lei n.º 182/2003, de 16 de Agosto)[6], que regulamentaria, de modo específico, as estradas municipais.

[7] Servidão predial é, nos termos do artigo 1543.º do Código Civil, o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.

[8] Na definição dada pelo Acórdão do Tribunal de Relação de Coimbra de 12 de Janeiro de 2010 (Proc. 2963/05.0TBPBL.C1), atravessadouros são caminhos de passagem de pessoas implantados em prédios de particulares que não constituem servidões ou caminhos públicos. O acórdão é acedível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/0147a7f57520b135802576c00036ac3b?OpenDocument.

Os atravessadouros são também comummente conhecidos nas zonas rurais por atalhos e têm como finalidade fazer apenas a ligação entre caminhos públicos, por prédios particulares, com vista ao encurtamento de distâncias, para maior comodidade dos utilizadores (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Fevereiro de 2012 [Proc. 295/04.OTBOFR.C1.S1], acedível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/41bd885fbd3286b4802579ab004dea72?OpenDocument).

[9] Este diploma [entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 380/85, de 26 de Setembro [(2.º plano rodoviário nacional]), aprovou o primeiro plano rodoviário, efectuado a classificação das estradas nacionais e municipais e dos caminhos públicos e fixação das respectivas características técnicas.

[10] Acedível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/793266547c54ada580257d740038787d?OpenDocument

[11] Artigo 161.º, n.º 2, al. a), do Código do Procedimento Administrativo. Por ser nulo o acto não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade (artigo 162.º, n.º 1, do CPA), nulidade essa que pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado, ser conhecida por qualquer autoridade e declarada pelos tribunais administrativos ou pelos órgãos administrativos competentes (artigo 162.º, n.º 2, do CPA).

[12] Isso continuará a ser assim ainda que os proprietários envolvidos acatem o que for decidido. Só que neste caso não é essa decisão que, verdadeiramente, se torna juridicamente relevante e eficaz mas sim (e unicamente) o acordo em que se colocam os proprietários (ainda que propiciado ou induzido por essa decisão juridicamente inexistente) bem como o seu posterior comportamento de aceitação dessa alteração.

[13] Diz Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 2ª edição, 2011, pág. 423, que a “usurpação de poder” é o vício que consiste na prática por um órgão administrativo de um acto incluído nas atribuições do poder legislativo, do poder moderador ou do poder judicial, e portanto excluído das atribuições do poder executivo.

[14] Ou, diremos nós, publicalidade, pretendendo significar com este neologismo a qualidade ou natureza do caminho de, quanto a ele, ser (juridicamente) permitido o livre acesso e trânsito de todos, ou seja, um acesso público irrestrito e incondicionado.

[15] Cabe à câmara municipal analisar e aprovar tecnicamente a alteração da implantação (localização) do caminho não só porque é da sua competência administrar o domínio público municipal (artigo 33.º, n.º 1, al. qq), do RJAL), como lhe cabe também criar, construir e gerir (…) redes de circulação (…) integrados nom património do município ou colocados, por lei, sob administração municipal (artigo 33.º, n.º 1, al. ee), do RJAL).

[16] Acedível em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/b039b585f925633480257d9c004291d3?OpenDocument

By |2023-10-26T13:32:20+00:0009/03/2016|Legal Opinions up to 2017|Comments Off on Estradas e caminhos municipais.

Dívidas de terceiros.

 

Solicita a Presidente da Câmara Municipal de …, por seu ofício de …, referência n.º …, a emissão de parecer sobre a seguinte questão:

Na sequência de um trabalho que se encontra a ser desenvolvido no Município, com o intuito de proceder à regularização das dívidas de terceiros (clientes, contribuintes, utentes e outros devedores) registada nas demonstrações financeiras, constata-se o seguinte:

L Que existe uma relação de dívidas que datam entre os anos 80 e 2001, portanto antes da entrada em vigor do Plano Oficial de Contabilidade das Autarquias Locais, e entre 2002 e 2007, para as quais não existe qualquer documento de suporte contabilístico (legal) ou, os documentos existentes, mais concretamente no caso das dívidas de água, não são fidedignos, por não se saber com precisão, se aquelas dívidas se mantém em dívida ou se já se encontram pagas.

As dívidas até 2001 foram registadas a 01/01|2002 (no balanço inicial do Município), através de uma listagem de devedores que existia no Serviço de Contabilidade. Entre 2002 e 2007, ocorreu um período transitório, em que alguns serviços, não emitiam a correspondente nota de despesa/fatura ou documento equivalente, principalmente das prestações de serviço efetuadas (o valor era solicitado através do envio de um mero ofício). Em suma, verifica-se o seguinte:

- Conforme já referido, não existe documento legal para aquelas dívidas, a acrescer o facto de apenas se conhecer a descrição que consta no quadro anexo, não se tem mais informação sobre o assunto, designadamente as datas concretas, o tipo de serviço prestado ou o local da sua prestação. De alguns devedores desconhece-se também a morada e respetivo número de contribuinte.

- Relativamente às dívidas de águas, o controlo atualmente é efetuado na contabilidade que tem o seu valor global, que é coincidente com o valor em dívida registado no Serviço Administrativo de Águas, que detém a informação, utilizador a utilizador (e por fatura), desse mesmo valor. Até 2007, esse trabalho de articulação não era devidamente concretizado, até porque, para além do Serviço Administrativo de Águas, existiam outros agentes de cobrança (o tesoureiro, após os recibos lhe serem debitados, o leitor-cobrador e o trabalhador responsável pelas execuções fiscais), o que originou a que existisse um valor global na contabilidade, que não se consegue aferir com precisão e fidedignidade a quem respeitam, apesar de existirem várias faturas/recibos (não se consegue aferir se e quais se encontram pagos).

- Por fim acresce ainda que, alguns destes devedores são empresas/entidades que já não se encontram em atividade e particulares que já faleceram.

Face ao exposto, e emitido parecer jurídico (interno), o assunto destas dívidas foi remetido ao Executivo Municipal, para efeitos de anulação, por prescrição, com base no seguinte: "... concluir-se que deve o Município anular as dívidas registados antes de 2007 em matéria de serviços prestados pela autarquia, nomeadamente, serviços de limpeza de fossos sépticas, ligações de esgotos, serviços de águas e resíduos, utilização de espaços públicos e diversas prestações de serviços, conforme listagem contabilística, (...), pelo facto dos dívidas por taxas as autarquias locais prescreverem no prozo de 8 anos a contar da dato em que o facto tributário ocorreu, nos termos do disposto no nº 1, do artigo 15º do RGTAL, aprovado pela Lei n.º 53-E/2006[m] de 29 de [De]zembro, e bem assim, nos termos do disposto do nº 7, do artigo 48º da  LGT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/99, de 17 de dezembro." (conclusão do parecer jurídico presente na reunião do Executivo).

Os membros do Executivo deliberaram favoravelmente pela anulação das dívidas em questão, considerando o constante no parecer jurídico. No entanto, e apesar do sentido do parecer, persistem dúvidas sobre a regularidade da deliberação tomada.

  1. Ainda no decurso do desenvolvimento do referido trabalho, e relativamente a dívidas mais recentes, o Município depara-se com a dificuldade em notificar alguns devedores, ou porque a morada detida pelos serviços municipais já não ser a morada atual ou os mesmos já faleceram, ocorrendo ainda situações em que o valor da dívida é reduzido, e a simples tentativa de cobrança (por exemplo um ofício registado) acarreta um custo/encargo que muitas vezes quase totaliza o valor da divida (ou é mesmo superior).

Face ao exposto, solicita-se que V/ Ex.ª se digne pronunciar sobre se o procedimento tomado e descrito no ponto 1 foi o devido, e qual se deve tomar na situação descrita no ponto 2.

 

A acompanhar o ofício, um mapa intitulado “dívidas de terceiros entre os anos 80 e 2001” elencando um conjunto de dívidas ao município de diversa tipologia, distribuídas por um período temporal que iniciando-se em 1983 atinge, afinal, o ano de 2008, sendo que, como nela se ressalva, algumas dessas dívidas (caso das referentes a “prestação de serviços da ex serração”), ainda que registadas no decurso desse lapso temporal (2001), tiveram origem em momento bem anterior, sendo afirmado ter ocorrido “até ao início dos anos 80, data em que foi encerrada a serração que prestava estes serviços”.

 

Apreciando

  1. Do pedido

Pretende, assim, a Câmara Municipal de …, saber, por um lado, se um conjunto de dívidas ao município, remontando, retrospectivamente, a um período compreendido entre 2007 (alegadamente, 31/12/2007) e mais de três dezenas de anos antes, para além de muitas delas não se encontrarem devida, suficiente ou validamente tituladas e terem sofrido diversas vicissitudes contabilísticas, se podem/devem considerar (ou não) prescritas, e por outro, o que fazer quanto a dívidas mais recentes, em relação às quais o Município [se] depara(…) com a dificuldade em notificar alguns devedores, ou porque a morada detida pelos serviços municipais já não [é] (…) a morada atual ou [por] os mesmos já [terem falecido] (…), ocorrendo ainda situações em que o valor da dívida é reduzido, e a simples tentativa de cobrança (por exemplo um ofício registado) acarreta um custo/encargo que muitas vezes quase totaliza o valor da divida (ou é mesmo superior).

 

  1. Análise

2.1. O pedido de parecer ora em causa, no qual são postas as apontadas questões, remonta à reunião da Câmara Municipal que teve lugar em 29 de Dezembro de 2015, reunião essa na qual foi abordada a situação de um conjunto de dívidas de terceiros à edilidade e dos procedimentos a tomar quanto a elas. Para melhor clareza, socorremo-nos de alguns trechos do consignado, a este respeito, na acta da referida reunião[1].

Assim, refere-se nessa acta que foi elaborada pelos Serviços Financeiros da Câmara uma listagem das dívidas de clientes, contribuintes, utentes e outros devedores, registada na contabilidade do Município de …, à data de 09.11.2015, e que, após (…) um levantamento exaustivo das mesmas e considerando tanto a sua tipologia como a data da dívida, foi definido o tipo de intervenção a realizar(…).

De entre as dívidas identificadas, encontram-se as [b)] dívidas, das quais não existem documentos contabilísticos de suporte, por se tratarem de dívidas registadas até 2007 e, no caso das dívidas relacionadas com os serviços de águas e resíduos, que estão registadas como debitadas ao tesoureiro e sem documentação fidedigna de suporte (procedimento que deixou de existir a partir do ano de 2008); (…)

(…) o que está em causa (…) são as dívidas antes referidas, enquadras na alínea b), que totalizam o valor de 26.503,21 €. (…) as dívidas em questão respeitam ao período entre 1990 e 2007, sendo que cerca de metade deste valor respeita a dívidas anteriores a 2002 (antes da entrada em vigor do Plano Oficial de Contabilidade das Autarquias Locais – POCAL -, que passou a exigir um tratamento completamente diferente relativamente às dívidas de terceiros).

(…) as mesmas não têm documento contabilístico de suporte, ou então, e no caso concreto das dívidas referentes à prestação dos serviços de águas e recolha de resíduos urbanos, a documentação não é fidedigna, uma vez que até àquela data (2007), com o procedimento em vigor relativamente a essas dívidas, não se consegue aferir com a confiança necessária se aquele valor se mantém ou não em dívida.

Face ao exposto, e ainda porque são dívidas já bastante antigas, algumas de entidades/pessoas já não existem ou faleceram, (…) foi solicitado que o consultor jurídico, Dr. …, se pronunciasse sobre o assunto, tendo sido emitido o parecer que consta em anexo à informação mencionada em epígrafe, e que propõe a anulação das dívidas por prescrição.

O município deliberou então, unanimemente, no sentido de anular as dívidas (receitas virtuais) registas antes de 2007 em matéria de serviços prestados pela autarquia, nomeadamente, serviços de limpeza de fossas sépticas, ligações de esgotos, serviços de água e resíduos, utilização de espaços públicos e diversas prestações de serviços, conforme listagem contabilística, datada de 09.11.2015, pelo facto de as dívidas por taxas às autarquias locais prescreverem no prazo de 8 anos a contar da data em que o facto tributário ocorreu, nos termos do disposto do nº 1, do artigo 15º da RGTAL, aprovado pela Lei 53-E/2006, de 29 de Dezembro, e bem assim, nos termos do disposto do nº 1 do artigo 48º da LGT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/99, de 17 de Dezembro”., sem prejuízo que sejam solicitados pareceres jurídicos a outras entidades como o Tribunal de Contas e CCDRC e que sejam esgotadas todas as tentativas de cobrança de dívidas junto das entidades/pessoas a quem ainda é possível fazer essa.

2.2. Temos assim que neste momento e relativamente ao questionado destino das dívidas em apreço, o município já tomou a devida e competente decisão – como aliás é claramente referido no ofício da Câmara - fundado em parecer jurídico (do qual, aliás, se desconhece o concreto teor) pelo que a um qualquer outro parecer jurídico posterior fenece uma evidente e útil relevância, a menos que ele se limite a coonestar o sustentado no parecer fundante da decisão.

2.3. Deste modo, e ainda que a primeira questão colocada já se encontre juridicamente tratada e administrativamente decidida de modo definitivo, sempre se dirá o seguinte.

Tomando em conta a descrição resumida das dívidas em causa e do elenco que delas é feito na lista anexa ao ofício, sempre se dirá da sua natureza que as mesmas ou são (substancialmente) qualificadas como (verdadeiras) taxas ou então, como tarifas e/ou preços. E a este respeito diz António Malheiro de Magalhães[2] (à luz da já revogada Lei das Finanças Locais, aprovada pela Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro): tanto as «taxas», como os «preços», ora identificados como receitas municipais, respectivamente, nos artigos 15.º e 16.º da Lei das Finanças Locais[3], continuam a integrar o conceito de «taxa lato sensu», enquanto «preços autoritariamente fixados pela prestação de bens semi-públicos», e, como tal, assim devem ser concebidos em sede de aplicação da Lei Geral Tributária, mais propriamente do seu artigo 4.º.

Temos portanto que seja qual for a qualificação tipológica das receitas camarária constantes da referida lista, elas terão sempre de natureza tributária e, portanto, ficarão sujeitas às normas tributárias que especificamente se lhes aplicam. É pois por isso que tanto as «taxas» (…), como os «preços» (…) gozam e partilham da mesma natureza e regimes jurídicos para efeitos de aplicação do Regime Geral da Taxas das Autarquias Locais, da Lei Geral Tributária, bem como do Código do Procedimento e Processo Tributário, pese embora, no que concerne a tal regime jurídico-legal, não sejam de descurar alguma particularidades respeitantes à titularidade e exercício das competências dos órgãos autárquicos nesta matéria (…)[4].

Ora no que toca à possibilidade de cobrança destas dívidas sempre se dirá o seguinte:

Em primeiro lugar, não só os tributos (só) podem ser liquidados e cobrados a uma entidade determinada ou determinável (e identificável) à qual haja sido fornecido o (ou beneficiado do) bem cuja disponibilização e acesso está condicionado à aplicação de uma taxa (ou tarifa) - o sujeito passivo do tributo –, como o documento de liquidação e cobrança dessa taxa deve conter todos os demais elementos identificativos quer do sujeito passivo quer da obrigação tributária em questão, necessários e exigíveis para o efeito, em especial todos aqueles que concorrem para a identificação precisa quer do sujeito quer do local onde ocorre o “facto tributário”, ou seja, a prestação do bem, bem como o cálculo do montante total da taxa a pagar além dos respectivos fundamentos legais e/ou regulamentares (fundamentação).

Ora, se a Câmara Municipal desconhece ou não consegue determinar, com meridiana certeza, quem são os sujeitos passivos da relação tributária, ou seja, os beneficiários das prestações ou dos serviços cujo fornecimento municipal deu origem aos montantes ora em dívida, porque destes apenas existe um registo financeiro, não nominativo, inexistindo ou desconhecendo-se o respectivo documento de cobrança, verifica-se, então, uma impossibilidade material de proceder à cobrança e/ou execução dessas dívidas[5], pois que estas não podem correr contra incertos. Na verdade, dispõe o CPPT que, entre outros, são requisitos essenciais dos títulos executivos (…) o nome e domicílio do ou dos devedores (bem como a natureza e proveniência da dívida e indicação do seu montante)[6].

Por outro lado, se de entre os montantes em dívida (de que se desconhece a exacta tipologia ou natureza) se encontrarem alguns relativos à prestação de serviços públicos essenciais elencados no artigo 1.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho[7], então relativamente às dívidas que a eles respeitem deve considerar-se aplicável a prescrição de seis meses após a sua prestação, prevista no n.º 1 do artigo 10.º da mesma Lei.

Resta considerar, concordando com o sustentado no parecer jurídico que baseou a deliberação camarária, que às dívidas em apreço é aplicável o prazo de prescrição geral das dívidas tributárias que é de oito anos (artigo 48.º, n.º 1, da LGT).

Há finalmente que referir ainda um aspecto que no caso se afigura relevante. Em matéria de prescrição, a regra geral (civil) é a de que a prescrição carece sempre de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por quem dela beneficia, para que dela possa aproveitar, não podendo, sequer, ser suprida ex officio pelo tribunal (artigo 303.º do Código Civil).

Ora, se esta fosse a única regra na matéria, também aplicável às dívidas fiscais, então seria duvidoso, para não dizer inadmissível, que o ente público a quem incumbe a cobrança das taxas (ou tarifas) em dívida, verificasse a sua prescrição e as declarasse prescritas ex officio, sem que, para o efeito, os sujeitos passivos devedores a tivessem devidamente invocado para dela poderem vir a aproveitar. Tal significaria, no caso, que a câmara municipal teria sempre que demandar os devedores para pagamento (sendo isso possível) para que então fosse por eles invocada a prescrição (caso assim o entendessem, pois sempre poderiam saldar a dívida) e a mesma pudesse então ser considerada como verificada pela câmara.

Contudo, em matéria fiscal, o conhecimento e declaração da prescrição de dívidas tributárias reveste natureza oficiosa, quer judicial, pelo juiz, quer administrativamente, pela entidade a quem caiba a execução da dívida (artigo 175.º do CPPT). Assim pode a câmara municipal, legitimamente, verificar e declarar prescritas as dívidas relativamente às quais ela se verifique, de acordo com as prescrições e prazos legais aplicáveis.

2.3. Relativamente à segunda das questões colocadas - ­ o que fazer quanto a dívidas mais recentes, em relação às quais o Município [se] depara(…) com a dificuldade em notificar alguns devedores, ou porque a morada detida pelos serviços municipais já não [é] (…) a morada atual ou [por] os mesmos já [terem falecido] (…), ocorrendo ainda situações em que o valor da dívida é reduzido, e a simples tentativa de cobrança (por exemplo um ofício registado) acarreta um custo/encargo que muitas vezes quase totaliza o valor da divida (ou é mesmo superior) – merece diferentes respostas consoante as diferentes hipóteses colocadas.

Em primeiro lugar sempre haverá sempre que verificar se relativamente às dívidas em questão não se encontra decorrido o respetivo prazo prescricional - que pode ser um prazo especial - caso em que elas devem ser declaradas prescritas.

Outro aspecto a ter em conta é verificar se os elementos em posse da autarquia são, relativamente a cada dívida e devedor, os exigidos na lei para que possa haver lugar à cobrança coerciva da dívida. Como vimos antes, para que um documento possa ser considerado um título executivo (tributário) é necessário que dele conste o nome e o domicilio do ou dos devedores, bem como a natureza e proveniência da dívida e indicação do seu montante[8]. Porém o facto de a câmara municipal ter nos seus registos apenas a morada antiga do devedor, tal não significa que fique impossibilitada de averiguar (oficialmente) qual a morada actual do devedor - maxime se for dentro do concelho – a fim de para aí passar a dirigir os contactos e as notificações a que haja lugar.

Por outro lado o falecimento de devedor na pendência da execução fiscal ou antes desta não impede que a mesma prossiga contra a herança ou seja instaurada contra os seus sucessores ou herdeiros, nos termos dos artigo 153.º a 155.º do CPPT.

Por fim, há que referir que as obrigações fiscais são de natureza indisponível e irrenunciável, o que quer dizer que ao credor não cabem, em princípio, quaisquer poderes para conceder moratórias, admitir o pagamento em prestações ou conceder o perdão da dívida[9]. É quanto resulta do disposto no n.º 2 do artigo 30.º da LGT[10] e do n.º 3 do artigo 85.º do CPPT[11].

Temos assim que em matéria de cobrança dos créditos fiscais do Estado, onde se inclui a administração local, a menos que tal seja previsto na lei, não podem as entidades públicas credoras eximir-se à cobrança de todos os créditos de que sejam titulares, perdoando dívidas, devendo-se socorrer para o efeito de todos os meios que a lei põe à sua disposição.

Não pode assim um órgão da administração, sem sustento legal e por seu livre alvedrio, entender que cobra ou não cobra (perdoa) determinada dívida, porque considera que isso “dá prejuízo”.

É certo que relativamente a alguns impostos se encontra previsto nos respectivos códigos a possibilidade de não haver lugar à sua cobrança quando o montante de imposto apurado em liquidação, ainda que adicional, seja inferior a determinado valor[12].

Também em matéria de reposição de dinheiros públicos indevidamente abonados, a lei estabelece a regra de que não haverá lugar ao processamento da reposição quando esta seja um valor inferior ao fixado (anualmente) no decreto-lei de execução orçamental[13]

Não há, porém, nenhuma regra legal, de âmbito geral, que defina um (qualquer) valor abaixo do qual poderá não haver lugar à cobrança coerciva de dívidas ao Estado, maxime, de dívidas tributárias, o qual se possa dizer ser igualmente aplicável às taxas das autarquias locais – como também não há regra específica, aplicável unicamente às taxas autárquicas.

Porém, ainda que algumas dívidas sejam de montante tão baixo que se afigure falho de lógica e economicidade tentar proceder à sua cobrança, designadamente por meios coercivos, pois que os custos envolvidos em tais procedimentos, v .g. em contactos e correspondência, ultrapassam em muito o valor que venha a ser obtido, certo é, porém, que as obrigações fiscais são de natureza indisponível e irrenunciável, não havendo previsão legal de qualquer limiar abaixo do qual seja dispensada essa sua cobrança, maxime por meios coercivos.

De referir, porém, que o atraso no pagamento de dívidas fiscais (seja, o incumprimento dos prazos de pagamento das dividas) dá lugar à aplicação de juros de mora, nos termos do disposto no artigo 44.º da LGT. 

 

Concluindo

I - Quanto à primeira questão:

  1. Se, relativamente às dividas em causa, a Câmara Municipal desconhece ou não consegue determinar, com meridiana certeza, quem são os sujeitos passivos da relação tributária, beneficiários das prestações ou dos serviços cujo fornecimento municipal deu origem aos montantes ora em dívida, porque destes apenas existe um registo financeiro, não nominativo, inexistindo ou desconhecendo-se o respectivo documento de cobrança, verifica-se, então, uma impossibilidade material de proceder à cobrança e/ou execução dessas dívidas pois que estas não podem correr contra incertos, sendo requisitos essenciais dos títulos executivos (…) o nome e domicílio do ou dos devedores (bem como a natureza e proveniência da dívida e indicação do seu montante).
  2. Caso alguns dos montantes em dívida se refiram à prestação de serviços públicos essenciais elencados no artigo 1.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, então relativamente às dívidas que a eles respeitem deve considerar-se aplicável a prescrição de seis meses após a sua prestação, prevista no n.º 1 do artigo 10.º da mesma Lei.
  3. Tal como sustentado no parecer jurídico que baseou a deliberação camarária, às dívidas em apreço é aplicável em geral o prazo de prescrição geral das dívidas tributárias que é de oito anos (artigo 48.º, n.º 1, da LGT).
  4. Ainda que em matéria de prescrição, a regra geral (civil) seja a de que a prescrição carece sempre de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por quem dela beneficia, para que dela possa aproveitar, não podendo, sequer, ser suprida ex officio pelo tribunal (artigo 303.º do Código Civil), contudo, no âmbito tributário o conhecimento e declaração da prescrição de dívidas tributárias reveste natureza oficiosa, quer no quadro judicial, pelo juiz, quer administrativamente, pela entidade a quem caiba a execução da dívida (artigo 175.º do CPPT) pelo que pode a câmara municipal, legitimamente, verificar e declarar prescritas as dívidas relativamente às quais ela se verifique, de acordo com as regras e prazos legais aplicáveis.

II - Quanto à segunda questão:

  1. Para que um documento possa ser considerado um título executivo (tributário) é necessário que dele conste o nome e o domicilio do ou dos devedores, bem como a natureza e proveniência da dívida e indicação do seu montante. Porém o facto de a câmara municipal ter nos seus registos apenas a morada antiga do devedor, tal não significa que fique impossibilitada de averiguar (oficialmente) qual a morada actual do devedor - maxime se for dentro do concelho – a fim de para aí passar a dirigir os contactos e as notificações a que haja lugar.
  2. O falecimento de devedor na pendência da execução fiscal ou antes desta não impede que a mesma prossiga contra a herança ou seja instaurada contra os seus sucessores ou herdeiros, nos termos dos artigo 153.º a 155.º do CPPT.
  3. As obrigações fiscais são de natureza indisponível e irrenunciável, o que quer dizer que ao credor não cabem, em princípio, quaisquer poderes para conceder moratórias, admitir o pagamento em prestações ou conceder o perdão da dívida.
  4. Não há actualmente na lei qualquer previsão de um limiar monetário abaixo do qual seja dispensada a cobrança de créditos de natureza tributárias como o são as taxas e as tarifas municipais, maxime por meios coercivos.

 

 Salvo semper meliori judicio

  

Ricardo da Veiga Ferrão

(Jurista. Técnico Superior)

 

[1] Acedível em http://www.cm-gois.pt/files/6295.pdf. Último acesso em 15/2/2015.

[2] António Malheiro de Magalhães, O Regime Jurídico dos Preços Municipais, 2012, pág. 41.

[3] Aos referidos artigos 15.º e 16.º da já revogada Lei da Finanças Locais correspondem actualmente os artigos 20.º e 21.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais (RFAL), aprovado pela Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro.

O artigo 21.º do novo RFAL “regressou”, contudo à utilização da designação “tarifa”, relativamente aos preços de um conjunto de bens semi-públicos, disponibilizados pelas Câmaras Municipais, a maioria deles com a natureza de serviços públicos essenciais, à luz da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho.

[4] António Malheiro de Magalhães, O Regime… cit., pág. 45.

[5] Aliás desta alegada inexistência (ou indeterminabilidade da existência) de um documento de cobrança válido que não permite ter certezas quanto à eficaz notificação da taxa/tarifa em dívida ao respectivo sujeito passivo/devedor, pode resultar, no limite, poder ser considerada verificada a caducidade do direito à liquidação e cobrança da dívida por falta de notificação válida no prazo (legal) de quatro anos a contar do facto tributário (fornecimento) (artigo 45.º da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/99, de 17 de Dezembro, e alterada pela Lei n.º 100/99, de 26 de Julho, Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril, Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, Lei n.º 16-A/2002, de 31 de Maio, Decreto-Lei n.º 229/2002, de 31 de Outubro, Decreto-Lei n.º 320-A/2002, de 30 de Dezembro, Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 160/2003, de 19 de Julho, Lei n.º 107-B/2003, de 31 de Dezembro, Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro, Lei n.º 50/2005, de 30 de Agosto, Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 238/2006, de 20 de Dezembro, Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, Lei n.º 19/2008, de 21 de Abril, Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, Lei n.º 94/2009, de 1 de Setembro, Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, Lei n.º 37/2010, de 2 de Setembro, Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 29-A/2011, de 1 de Março, Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 32/2012, de 13 de Fevereiro, Lei n.º 20/2012, de 14 de Maio, Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, DL n.º 6/2013, de 17 de Janeiro, Decreto-Lei n.º 71/2013, de 30 de Maio, Decreto-Lei n.º 82/2013, de 17 de Junho, Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, e Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro).  

[6] Artigo 163.º, n.º 1, al. d), do Código do Procedimento e Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, aperado pela Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril, Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, Decreto-Lei n.º 160/2003, de 19 de Julho, Lei n.º 55‑B/2004, de 30 de Dezembro, Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, Decreto-Lei n.º 238/2006, de 20 de Dezembro, Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, Lei n.º 40/2008, de 11 de Agosto, Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, Lei n.º 55‑A/2010, de 31 de Dezembro, Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 6/2013, de 17 de Janeiro, Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, Lei n.º 82‑B/2014, de 31 de Dezembro, e Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro.

[7] Designadamente fornecimento de água e recolha e tratamento de águas residuais - artigo 1.º, n.º 2, als. a) e f), da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho.

[8] Vd. nota 6, supra.

[9] Cfr. José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 6.ª edição, 2010, pag. 249 (edição acedida. A edição mais recente é a 8ª edição, de 2015).

[10] O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.

[11] A concessão da moratória ou a suspensão da execução fiscal fora dos casos previstos na lei, quando dolosas, são fundamento de responsabilidade tributária subsidiária.

[12] Relativamente a alguns impostos, é previsto nos respectivos códigos (mas de forma independente entre eles) um montante abaixo do qual o Fisco deixa de estar obrigado a cobrar o imposto.

Assim no caso do IRS (artigo 95º do CIRS), IRC (artigo 111º do CIRC) e IVA (artigo 94º, nº 4 do CIVA), não haverá lugar à cobrança de imposto quando, em virtude da existência de uma liquidação de imposto, mesmo que adicional (ou de reforma ou revogação da liquidação) caso a importância a cobrar seja inferior a 25 €.

Já quanto ao IMI, mantendo-se a regra, o valor é diferente: 10 € (artigo 113º, nº 6 do CIMI). Porém, a lei tem aqui uma formulação assás curiosa (para não dizer errática) ao dizer que não há lugar a qualquer liquidação sempre que o montante do imposto a cobrar seja inferior a 10 €. Ora, de acordo com os cânones, só se conhece o imposto a cobrar depois de efectuada a sua prévia liquidação.

Por fim, no caso do IMT, não há lugar ao seu pagamento sempre que o montante de imposto liquidado seja inferior a 10 € por cada documento de cobrança, passando esse limite a 25 € quando se trate de liquidação adicional (artigo 32º do CIMT).

Do exposto resulta que para além de não existir uma uniformidade relativamente ao valor do limiar de não cobrança, apesar da tendência para o valor de 25 €, tais regras valem apenas para o respectivo imposto.

[13] Artigo 37.º do Regime da Administração Financeira do Estado, Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho, alterado pelos Decreto-Lei n.º 275-A/93, de 9 de Agosto, Decreto-Lei n.º 113/95, de 25 de Maio, Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, Decreto-Lei n.º 190/96, de 9 de Outubro, Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro e pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro.

Dispõe este artigo que não haverá lugar ao processamento de reposições quando o total das quantias que devam reentrar nos cofres do Estado, relativamente a cada reposição, seja inferior a um montante a estabelecer no decreto-lei de execução orçamental. A norma do decreto-lei de execução orçamental para 2015 (artigo 25.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 36/2015, de 9 de Março) que estabelece esse limite, dispõe que (…) o montante mínimo de reposição nos cofres do Estado a apurar em conta corrente e por acumulação para o ano de 2015 é de € 20 (…).

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Emprego público. Necessidade de inscrição em Ordem Profissional.


Tendo presente o conteúdo do fax do Presidente da Câmara Municipal de ..., ref. 94/2015, e informação a ele anexa, recebido a 17 de Dezembro corrente, cumpre informar, a respeito de quanto nele é solicitado, que a avaliação da necessidade de inscrição em Ordem profissional de técnico superior camarário por via do exercício de funções na edilidade1, depende do conteúdo das funções para as quais se encontra contratado ou efectivamente exerce ou seja, dos elementos constantes das várias alíneas do n.º 2 do artigo 29.º da LTFP2, que caracterizam o posto de trabalho por ele ocupado no mapa de pessoal da câmara municipal, em especial da atribuição, competência ou atividade que o seu ocupante se destina a cumprir ou a executar, da área de formação académica ou profissional de que o seu ocupante deva ser titular e do perfil de competências transversais da respetiva carreira ou categoria, (…) e complementado com as competências associadas à especificidade do posto de trabalho3.
A este respeito cabe referir que a LTFP prevê que o exercício de funções públicas pode ser condicionado à titularidade de (…) título profissional, nos termos definidos nas normas reguladoras das carreiras4.
Portanto, e em primeira linha, é perante as concretas funções desempenhadas pelo técnico superior na edilidade, enquanto trabalhador em funções públicas contratado para ocupar um determinado posto de trabalho no mapa de pessoal ao qual correspondem determinadas atribuições, competências ou actividades, que se pode fazer a aferição da necessidade de inscrição, ou não, na ordem profissional do respectivo mester.
Por outro lado, certo é que o novo regime jurídico de criação organização e funcionamento das associações públicas profissionais5, parece querer ir além da regulação do exercício de profissões em regime (de actividade) liberal6 e cometer às ordens e câmaras profissionais a regulação do acesso e do exercício da profissão7 bem como a concessão, em exclusivo, dos títulos profissionais das profissões que representam8, quer a respectiva actividade seja desenvolvida em regime de profissão liberal, quer seja prestada como trabalhador por contra de outrem, no sector privado ou público, ou como sócio de sociedade de profissionais ou outra, podendo mesmo ser estendida a todos os profissionais a obrigatoriedade de inscrição na respectiva ordem desde que a lei (ou seja, os estatutos de cada ordem profissional) assim o venha a determinar9.
Será portanto face à atribuição, competência ou atividade que o (…) ocupante de determinado lugar do mapa de pessoal de uma autarquia local se destina a cumprir ou a executar e do que se dispõe nos Estatutos de cada ordem profissional e das regras e exigências neles estabelecidas quanto à inscrição dos profissionais da arte que melhor se poderá aferir da indispensabilidade de inscrição na respectiva ordem de todos, ou apenas certos profissionais, bem como das situações profissionais em tal haja de ocorrer, designadamente para efeitos de se considerar a inscrição nessa agremiação como condição indispensável para o exercício legítimo da respectiva profissão ou actividade – considerando especialmente, como é o caso, a circunstância desse exercício profissional se efectuar no âmbito da administração pública autárquica, em regime de trabalho dependente – pois que a necessidade de inscrição poderá ser dependente do concreto exercício de (apenas) determinadas funções ou actividades e não generalizada por via do “título” concedido por regra “social” ou de “cortesia” a determinado agente que possua certas habilitações académicas.
Relativamente às Ordens Profissionais indicadas na informação anexa ao fax supra referido, encontram-se nos respectivos Estatutos as seguintes disposições:
a) ADVOGADOS
Estatuto da Ordem dos Advogados10
Artigo 66.º
Exercício da advocacia em território nacional
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 205.º, só os advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados podem, em todo o território nacional, praticar atos próprios da advocacia, nos termos definidos na Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto.
Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto - Actos próprios dos advogados e dos solicitadores
Artigo 1.º
Actos próprios dos advogados e dos solicitadores
1 - Apenas os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados e os solicitadores inscritos na Câmara dos Solicitadores podem praticar os actos próprios dos advogados e dos solicitadores.
(…)
5 - Sem prejuízo do disposto nas leis de processo, são actos próprios dos advogados e dos solicitadores:
a) O exercício do mandato forense;
b) A consulta jurídica.
6 - São ainda actos próprios dos advogados e dos solicitadores os seguintes:
a) A elaboração de contratos e a prática dos actos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais;
b) A negociação tendente à cobrança de créditos;
c) O exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de actos administrativos ou tributários.
7 - Consideram-se actos próprios dos advogados e dos solicitadores os actos que, nos termos dos números anteriores, forem exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, sem prejuízo das competências próprias atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso ou exercício é regulado por lei.
(…)
9 - São também actos próprios dos advogados todos aqueles que resultem do exercício do direito dos cidadãos a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
Contudo o n.º 8 deste mesmo artigo 1º dispõe que para os efeitos do disposto no número anterior [n.º 7], não se consideram praticados no interesse de terceiros os actos praticados pelos representantes legais, empregados, funcionários ou agentes de pessoas singulares ou colectivas, públicas ou privadas, nessa qualidade, salvo se, no caso da cobrança de dívidas, esta constituir o objecto ou actividade principal destas pessoas – exclusão esta que parece assim abranger os juristas dessa câmara.
A isto acresce o facto de, sendo incompatíveis com o exercício da advocacia (…)11 [as] funções [de] trabalhador com vínculo de emprego público ou contratado de quaisquer serviços ou entidades que possuam natureza pública ou prossigam finalidades de interesse público, de natureza central, regional ou local12, estes trabalhadores (quer o sejam em regime de contrato de trabalho em funções públicas quer em regime de comissão de serviço13), não poderem ser inscritos na Ordem dos Advogados em razão de se encontrarem numa situação de incompatibilidade14.
Assim, porque na caracterização das atribuições, competências ou atividades dos postos de trabalho ocupados pelos técnicos superiores licenciados em Direito, feita no mapa de pessoal da câmara municipal, se presume não caber a prática de actos próprios dos advogados, conforme definidos na lei, os trabalhadores que os ocupem não carecem, assim, de se encontrar inscritos na Ordem dos Advogados. De referir, contudo, que nos casos previstos na n.º 3 do artigo 82.º dos Estatutos da AO15, o exercício de advocacia nele previsto implica, naturalmente, a inscrição como advogado.
b) ARQUITECTOS, ENGENHEIROS E ENGENHEIROS TÉCNICOS
1. ARQUITECTOS
Estatuto da Ordem dos Arquitectos16
Artigo 44.º
Exercício da profissão
1 — Independentemente do modo de exercício da profissão, ou das atividades exercidas, e sem prejuízo do disposto no artigo 7.º, só os arquitetos inscritos na Ordem podem, no território nacional, praticar os atos próprios da profissão.
2 — São atos próprios dos arquitetos a elaboração ou apreciação dos estudos, projetos e planos de arquitetura, bem como os demais atos previstos em legislação especial.
2. ENGENHEIROS
Estatuto da Ordem dos Engenheiros17
Artigo 6.º
Inscrição
(..) a atribuição do título, o seu uso e o exercício da profissão de engenheiro dependem de inscrição como membro efetivo da Ordem, seja de forma liberal ou por conta de outrem, e independentemente do setor público, privado, cooperativo ou social em que a atividade seja exercida.
Artigo 7.º
Título de engenheiro e exercício da profissão
(…)
2 — São atos próprios dos que exercem a atividade de engenharia os constantes da Lei n.º 31/2009, de 3 de julho, e de outras leis que especialmente os consagrem.
(…)
5 — Os trabalhadores dos serviços e organismos da administração direta e indireta do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais e das demais pessoas coletivas públicas, que pratiquem, no exercício das suas funções, atos próprios da profissão de engenheiro, e realizem ações de verificação, aprovação, auditoria ou fiscalização sobre atos anteriores, devem estar validamente inscritos como membros efetivos da Ordem.
3. ENGENHEIROS TÉCNICOS
Estatuto da Ordem dos Engenheiros Técnicos18
Artigo 6.º
Inscrição
(..) a atribuição do título de engenheiro técnico, o seu uso e o exercício da profissão de engenheiro técnico em território nacional, seja de forma liberal ou por conta de outrem, e independentemente do setor, público, privado, cooperativo ou social, em que a atividade seja exercida, dependem de inscrição como membro efetivo da Ordem.
Artigo 7.º
Título de engenheiro e exercício da profissão
(…)
3 — São atos próprios dos que exerçam a atividade de engenheiro técnico os constantes da Lei n.º 31/2009, de 3 de julho, alterada pela Lei n.º 40/2015, de 1 de julho, e de outras leis e regulamentos que especialmente os consagrem.
(…)
4 — Os trabalhadores dos serviços e organismos da administração direta e indireta do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais e das demais pessoas coletivas públicas, que pratiquem, no exercício das suas funções, atos próprios da profissão de engenheiro técnico, e realizem ações de verificação, aprovação, auditoria ou fiscalização sobre atos anteriores, devem estar validamente inscritos como membros efetivos da Ordem.
De referir que, como aliás já o fazem alguns dos estatutos antes referidos, a Lei n.º 31/2009, de 3 de Julho19, diploma que estabelece as qualificações profissionais exigíveis aos técnicos responsáveis por actividades de elaboração e subscrição de projetos, coordenação de projetos, direção de obra pública ou particular, condução da execução dos trabalhos das diferentes especialidades nas obras de classe 6 ou superior, direção de fiscalização de obras públicas ou particulares para a qual esteja prevista a subscrição de termo de responsabilidade, sempre que estejam em causa operações de loteamento, obras de urbanização, trabalhos de remodelação de solos para fins urbanísticos ou paisagísticos, obras de demolição e a todas as obras de edificação bem como obras públicas definidas no Código dos Contratos Públicos considera que aquelas actividades constituem atos próprios dos técnicos titulares das qualificações nela previstas20, técnicos esses aos quais aquele dispositivo legal se aplica ainda que (…) exerçam as suas funções integrados ou no âmbito da atuação de quaisquer empresas ou entidades21.
Idêntico objectivo é prosseguido pelo Decreto-Lei n.º 292/95, de 14 de Novembro22, no que toca a planos de urbanização, planos de pormenor e projectos de operações urbanísticas.
Entende-se assim que no caso dos profissionais ora aqui em causa desenvolverem, no âmbito da autarquia, qualquer actividade das que são consideradas como “actos próprios” da respectiva profissão, deverão, para o efeito, encontrar-se inscritos na respectiva ordem.
c) ECONOMISTAS
Estatuto da Ordem dos Economistas23
Artigo 4.º
Títulos profissionais e designação de sociedade de economista
1 — A inscrição na Ordem dos que exercem profissão na área das ciências económicas é facultativa.
2 — Aos profissionais da área das ciências económicas inscritos na Ordem, como seus membros efetivos, é conferido o título profissional de economista, que lhes é reservado.
No que toca aos habilitados com grau académico na área das ciências económicas – pois que o Estatutos consideram como estando inseridas na área da ciência económica os cursos superiores cuja área principal corresponda, na classificação nacional de áreas de educação e formação, às áreas de economia, de ciências empresariais e de gestão e administração e cujas áreas secundárias, a existirem, se situam nas áreas de (…) finanças, banca e seguros, (…) contabilidade e fiscalidade, (…) marketing e publicidade e (…) matemática e estatística – a inscrição na respectiva Ordem é facultativa, pelo que um técnico superior de câmara municipal licenciado em Economia não carece de se encontrar inscrito na Ordem para desenvolver trabalho no âmbito da edilidade, em áreas das ciências económicas.
d) MÉDICOS VETERINÁRIOS
Estatuto da Ordem dos Médicos Veterinários24
Artigo 59.º
Exercício da profissão
1 — Sem prejuízo do disposto nos artigos 61.º e 62.º, só os médicos veterinários com inscrição em vigor na Ordem podem exercer, no território nacional, a profissão de médico veterinário.
2 — O exercício da profissão de médico veterinário em infração ao disposto no número anterior constitui crime de usurpação de funções, punido nos termos do disposto na alínea b) do artigo 358.º do Código Penal.
Artigo 60.º
Modos de exercício da profissão
A profissão de médico veterinário pode ser exercida:
(...)
c) Como trabalhador em funções públicas, independentemente da natureza do seu vínculo;
(…)
À luz das transcritas normas do Estatuto da Ordem dos Médicos Veterinários, estes carecem de se encontrar validamente inscritos na sua Ordem para poderem desenvolver a sua actividade enquanto tais, mesmo que, por via de contrato de trabalho em funções púbicas, tenham a qualidade de técnico superior camarário.
e) PSICÓLOGOS
Estatuto da Ordem dos Psicólogos25
Artigo 5.º
Profissões abrangidas
1 — A Ordem abrange os profissionais de psicologia que, em conformidade com o presente Estatuto e as disposições legais aplicáveis, exercem a profissão de psicólogo.
2 — Sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 63.º, estão obrigados a inscrição todos os que exercem a profissão de psicólogo, seja de forma liberal ou por conta de outrem, e independentemente do setor, público, privado, cooperativo e social, em que exerçam a atividade.
(…)
À luz destas normas os Psicólogos carecem de se encontrar validamente inscritos na sua Ordem para desenvolver a sua actividade enquanto tais, mesmo que, por via de contrato de trabalho em funções púbicas, tenham a qualidade de técnico superior camarário.
f) CONTABILISTAS
Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados26
Artigo 9.º
Título profissional e exercício da profissão
1 — Designam -se por contabilistas certificados os profissionais inscritos na Ordem, nos termos do presente Estatuto, sendo -lhes atribuído, em exclusividade, o uso desse título profissional, bem como o exercício da respetiva profissão.
Artigo 10.º
Atividade profissional
1 — A inscrição na Ordem permite o exercício, em exclusivo, das seguintes atividades:
a) Planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade das entidades, públicas ou privadas, que possuam ou que devam possuir contabilidade organizada segundo os planos de contas oficialmente aplicáveis ou o sistema de normalização contabilística, conforme o caso, respeitando as normas legais, os princípios contabilísticos vigentes e as orientações das entidades com competências em matéria de normalização contabilística;
b) Assumir a responsabilidade pela regularidade técnica, nas áreas contabilística e fiscal, das entidades referidas na alínea anterior;
c) Assinar, conjuntamente com o representante legal das entidades referidas na alínea a), as respetivas demonstrações financeiras e declarações fiscais, fazendo prova da sua qualidade, nos termos e condições definidos pela Ordem, sem prejuízo da competência e das responsabilidades cometidas pela lei comercial e fiscal aos respetivos órgãos.
(…)
3 — Entende -se por regularidade técnica, para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1, a execução da contabilidade nos termos das disposições previstas nos normativos aplicáveis, tendo por suporte os documentos e as informações fornecidos pelo órgão de gestão ou pelo empresário, e as decisões do profissional no âmbito contabilístico, com vista à obtenção de uma imagem fiel e verdadeira da realidade patrimonial da empresa, bem como o envio para as entidades públicas competentes, nos termos legalmente definidos, da informação contabilística e fiscal definida na legislação em vigor.
Artigo 11.º
Modos de exercício da atividade
1 — Os contabilistas certificados podem exercer a sua atividade:
(…)
c) No âmbito de uma relação jurídica de emprego público, como trabalhadores que exercem funções públicas, desde que exerçam a profissão de contabilista certificado na administração direta e indireta do Estado ou na administração regional ou local;
(…)
Relativamente aos agora denominados Contabilistas Certificados, convirá ter presente a doutrina contida em Nota Explicativa da DGAL27, emitida ainda na vigência da designação de Técnico Oficial de Contas, onde se refere:
Não obstante a referência ao preconizado nos estatutos da OTOC, onde se encontra definido que “ as entidades que possuam ou devam possuir contabilidade organizada, segundo planos oficialmente aplicáveis ou sistema de normalização contabilística, conforme o caso, são obrigadas a dispor de técnico oficial de contas”, deverá ser feito o devido enquadramento, uma vez que, estando em causa uma autarquia local (freguesias e municípios) deverá atentar-se às competências específicas atribuídas a estas entidades por via da legislação que regula as suas atribuições e competências. A inferir-se outro entendimento que não este, presumir-se-ia que seria, então, uma obrigação inerente também a municípios. O referido documento preconiza ainda que se enquadra ainda nas funções do TOC “Planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade das entidades que possuam, ou que devam possuir, contabilidade regularmente organizada segundo os planos de contas oficialmente aplicáveis ou o sistema de normalização contabilística, conforme o caso, respeitando as normas legais, os princípios contabilísticos vigentes e as orientações das entidades com competências em matéria de normalização contabilística”, e “Assumir a responsabilidade pela regularidade técnica, nas áreas contabilística e fiscal, das entidades referidas (…)”. Desta última aferíamos ainda que contraria, de certo modo, as competências que a Lei n.º75/2013 atribui aos órgãos autárquicos.
Face ao exposto, atendendo ao que se encontra expressamente disposto na legislação que regula a atividade autárquica, que exige que as entidades referidas no n.º1 do artigo 76.º do RFALEI, enquadradas no regime completo, tenham as contas certificadas por um Revisor Oficial de Contas, entende-se que o procedimento a manter nesta matéria será atribuir ao órgão executivo a responsabilidade na elaboração e aprovação dos documentos de prestação de contas, podendo, ou não, as mesmas serem elaboradas por um TOC, devendo submete-los posteriormente à apreciação do órgão deliberativo, nos prazos legalmente previstos.


Ricardo da Veiga Ferrão
(Jurista. Técnico Superior)


1. Não se considera assim a necessidade de inscrição em ordem profissional por via do exercício de outras actividades profissionais, maxime, de actividade privada em regime de acumulação.

2. A Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP) foi aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho.

3. Artigo 29.º, n.º 2, als. a), c) e d), da LTFP.

4. Artigo 18.º, n.º 1, da LTFP.

5. Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro.

6. Artigo 21.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2008, de 13 de Fevereiro - Regime das Associações Públicas Profissionais.

7. Artigo 5.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 2/2013.

8. Artigo 5.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 2/2013.

9. Artigo 24.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 2/2013.
É o fenómeno a que CARLOS FILIPE FERNANDES DE ANDRADE COSTA (Ordens Profissionais: Associações de Empresas? (O caso particular da Ordem dos Advogados)), in e-pública – Revista Eletrónica de Direito Público, n.º 4, Março 2015, acessível em http://www.e-publica.pt/ordens-profissionais.html) alude quando refere: (…) sociedades de profissionais liberais (rectius sociedades de profissões reguladas, na medida em que a “moda” da colegialidade motivou o aparecimento de corporações profissionais relativas a atividades em que a larga maioria dos trabalhadores as desempenha por conta de outrem) [pág. 7], denominando esse fenómeno de «deriva neocorporativista pós-25 de Abril», parafraseando VITAL MOREIRA [pág. 7, nota 19].

10. Aprovados pela Lei n.º 145/2015, de 9 de Setembro.

11. Deve entender-se aqui que o exercício da advocacia a que a norma aqui se refere é o efectuado em regime de actividade liberal.

12. Artigo 82.º, n.º 1, al. i), dos Estatutos da OA.

13. Artigo 6.º, n.ºs 1 e 3 da LTFP.

14. Artigo 188.º, n.º 1, al. d), dos Estatutos da OA.

15. Diz essa norma:
É permitido o exercício da advocacia às pessoas indicadas nas alíneas i) e j) do n.º 1 [do artigo 82.º], quando esta seja prestada em regime de subordinação e em exclusividade, ao serviço de quaisquer das entidades previstas nas referidas alíneas, sem prejuízo do disposto no artigo 86.º

16. Na redacção conferida pela Lei n.º 113/2015, de 28 de Agosto.

17. Na redacção conferida pela Lei n.º 123/2015, de 2 de Setembro.

18. Na redacção conferida pela Lei n.º 157/2015, de 17 de Setembro.

19. Alterado pela Lei n.º 40/2015, de 1 de Junho.

20. Artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 3/2009.

21. Artigo 1.º, n.º 4, da Lei n.º 3/2009.

22. Alterado pela Lei n.º 31/2009, de 3 de Julho.

23. Na redacção conferida pela Lei n.º 101/2015, de 20 de Agosto.

24. Na redacção conferida pela Lei n.º 125/2015, de 3 de Setembro.

25. Na redacção conferida pela Lei n.º 138/2015, de 7 de Setembro.

26. Na redacção conferida pela Lei n.º 139/2015, de 7 de Setembro, que transformou a Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas em Ordem dos Contabilistas Certificados.

27. Consultável no Portal Autárquico AQUI.

 

 

 

By |2023-10-23T11:01:09+00:0028/01/2016|Legal Opinions up to 2017|Comments Off on Emprego público. Necessidade de inscrição em Ordem Profissional.

Amamentação; período de duração.

 

Tendo em atenção o exposto no ofício n.º …, de …, da Junta de Freguesia de …, remetido em anexo ao mail de …, sobre a matéria referenciada em epígrafe, cumpre tecer as seguintes considerações:

 

Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 4.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas – abreviadamente, LTFP – aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, “é aplicável ao vínculo de emprego público, sem prejuízo do disposto na presente lei e com as necessárias adaptações, o disposto no Código do Trabalho e respetiva legislação complementar com as exceções legalmente previstas, nomeadamente em matéria de … parentalidade” [alínea d)].

 

Consequentemente, não podemos eximir-nos de chamar à colação o disposto nos artigos 47.º e 48.º do Código do Trabalho, normas que, respetivamente, contêm o regime regulador das dispensas para amamentação ou aleitação bem como dos procedimentos que devem ser adotados em tal matéria.

 

E, no que à questão concretamente formulada diz respeito, assumirá particular relevância o disposto no n.º 1 do artigo 47.º quando, sem margem para qualquer equívoco, estabelece que a mãe que amamenta o filho tem direito a dispensa de trabalho para o efeito (intercalamos nós, nos termos previstos nas restantes normas daquele dispositivo legal, nomeadamente, nos seus n.ºs 3, 4 e 5), durante o tempo que durar a amamentação.

 

Atente-se, a propósito, que, ao contrário da dispensa para amamentação, as dispensas para aleitação só podem ser concedidas até o filho perfazer 1 ano de idade (cfr., n.º 2 do preceito).

 

Aqui chegados, pertinente será referir o regime constante do n.º 1 artigo 48.º, quando prescreve que “para efeito de dispensa para amamentação, a trabalhadora comunica ao empregador, com a antecedência de 10 dias relativamente ao início da dispensa, que amamenta o filho, devendo apresentar atestado médico se a dispensa se prolongar para além do primeiro ano de vida do filho (salientámos).

 

Em face do exposto, importará concluir não existir norma que imponha um limite máximo de duração para as dispensas ao trabalho por motivo de amamentação, conquanto seja feita a respetiva prova, para além do primeiro ano de vida do filho, mediante apresentação de atestado médico.

  

O técnico superior

 

(José Manuel Martins Lima)

By |2023-10-26T13:32:20+00:0027/01/2016|Legal Opinions up to 2017|Comments Off on Amamentação; período de duração.

Boletim de freguesia. Apoio financeiro. Publicidade. Legalidade.


O Presidente da Junta de Freguesia de ..., dirigiu a esta CCDRC, por ofício de 07/12/2015, ref. A 846/2015, enviado em anexo a mail de 7/12/2015, 14:32, o seguinte pedido:
A Freguesia de ... edita trimestralmente um Boletim Informativo onde relata as principais atividades desenvolvidas e durante o referido espaço de tempo.
Esse instrumento é distribuído pelos diversos locais públicos e privados do espaço da Freguesia e sem custos para os leitores.
Para suportar a sua execução e edição, o executivo formalizou algumas parcerias com habituais fornecedores, que nos pagam uma quantia simbólica (50.00€ / trimestre) para verem afixado, na última página do referido boletim o seu logotipo.
Questionamos Vas Exas, se tal prática, à luz da nossa legislação pode ou não ser concretizada.

RESPONDENDO
Do modo como é apresentada – diz o ofício: para suportar a sua execução e edição, o executivo formalizou algumas parcerias com habituais fornecedores, que nos pagam uma quantia simbólica (50.00€ / trimestre) para verem afixado, na última página do referido boletim o seu logotipo [sublinhados nosso] - a questão em apreço carece de ser abordada de diversos prismas.
O primeiro deles é o que resulta, desde logo, da possibilidade de este procedimento poder ser considerado como “venda de publicidade” ou mais precisamente como “venda de espaço em suporte publicitário”1. E, sobre este aspecto, há que dizer, desde já, que o Código da Publicidade2 dispõe que não podem constituir suporte publicitário as publicações periódicas informativas editadas pelos órgãos das autarquias locais, salvo se o anunciante for uma empresa municipal de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos.
Assim, não pode haver lugar à inserção de publicidade3 no Boletim Informativo da Freguesia – situação que não se pode considerar, no caso, como completamente afastada perante a afirmação de que a junta de freguesia, para suportar a execução e edição, do Boletim Informativo, formalizou algumas parcerias com habituais fornecedores, que pagam uma quantia ainda que simbólica (50.00€/trimestre) para verem afixado o seu logotipo na última página do boletim.
Pode contudo entender-se que, na situação ora em causa, se estará perante um apoio mecenático, materializado através de contribuições financeiras de natureza altruística ou desinteressado ou seja, de entregas em dinheiro ou em espécie, concedidos, sem contrapartidas que configurem obrigações de carácter pecuniário ou comercial, às entidades públicas ou privadas, …, cuja actividade consista predominantemente na realização de iniciativas nas áreas social, cultural, ambiental, desportiva ou educacional (artigo 61.º do EBF4).
Contudo, para que assim seja, é necessário que sejam observadas algumas condições referidas na Circular 2/2004, de 20 de Janeiro, da DSIRC5. Nela se diz o seguinte:
…estão abrangidos pelo Estatuto do Mecenato os donativos, ou seja, as prestações de carácter gratuito em que impera o espírito de liberalidade do doador.
À realização de donativos aparece, todavia, frequentemente associada a atribuição ao doador de determinadas regalias em espécie, como sejam a atribuição de convites ou bilhetes de ingresso para eventos, a disponibilização das instalações do beneficiário ao doador ou a associação do nome do doador a certa obra ou iniciativa promovida pelo donatário.
A questão que se coloca é a de saber em que medida as mesmas constituem contrapartidas de carácter comercial, inviabilizadoras do enquadramento do custo no âmbito do Estatuto do Mecenato. Ora, nestas situações, poderemos ainda estar no domínio dos negócios gratuitos à luz das regras do direito privado comum. De facto, para o efeito de recusar à prestação a natureza de gratuitidade não basta que a regalia que lhe esteja associada seja desejada pelo doador, é necessário averiguar se aquela regalia foi desejada como correspectivo patrimonial do donativo de tal modo que se possa dizer ferido o espírito de liberalidade do doador.
É neste quadro que importa interpretar o disposto no nº 2 do artº 1º do Dec-Lei nº 74/99, buscando a ratio do preceito. Assim, não deverão ser excluídas do âmbito do Estatuto do Mecenato situações que nele devam manifestamente ser incluídas, por serem insignificantes as contrapartidas recebidas pelo doador e, quando esteja em causa a associação do respectivo nome a um evento promovido pelo beneficiário, por subsistir o espírito de liberalidade do doador.
Ora, a este respeito, diz-se na referida circular:
Nos casos em que a regalia se traduza numa associação pública do nome do doador a determinada iniciativa, deve atender-se também ao modo como essa associação se produz, admitindo-se que aos donativos concedidos no âmbito da legislação do mecenato esteja associada a regalia da divulgação do nome do mecenas, desde que a mesma não apresente "natureza comercial" mas meramente institucional.
Critérios de distinção
Assim, poder-se-ão estabelecer as seguintes linhas de orientação:
a) Se a regalia consistir na associação do nome do doador a certa iniciativa, tendo como fito a busca de uma imagem pessoal ou institucional de responsabilidade cívica, que o identifique junto do público em geral, porque o espírito de liberalidade do doador é preponderante, estar-se-á perante donativos enquadráveis no Estatuto do Mecenato;
Para efeitos da concretização da orientação estabelecida nesta alínea deverão ter-se em atenção os Seguintes critérios:
i) Na associação do nome do doador a determinadas iniciativas ou eventos promovidos pelo beneficiário não deverá ser feita qualquer referência a marcas, produtos ou serviços do mecenas, permitindo-se, apenas, a referência ao respectivo nome ou designação social e logotipo;
ii) A divulgação do nome ou designação social do mecenas deve fazer-se de modo idêntico e uniforme em relação a todos os mecenas, não podendo a mesma variar em função do valor do donativo concedido;
iii) A identificação pública do mecenas não deve revestir a natureza de mensagem publicitária, devendo, pois, efectuar-se de forma discreta, num plano secundário relativamente ao evento ou obra aos quais aparece associada, em suportes destinados a divulgar ou enquadrar a própria iniciativa - se existentes - de acordo com os usos aceites neste domínio e sempre com alusão à qualidade de mecenas.
b) Se, em vez disso, a regalia consistir na associação a certa iniciativa dos produtos comercializados pelo doador, ou mesmo do seu nome mas tendo como fito a sua promoção junto dos respectivos consumidores, o que se considera verificado quando não seja observado algum dos critérios estabelecidos para efeitos da alínea a), porque o espírito de liberalidade do doador é secundarizado, estar-se-á perante um patrocínio, não contemplado no Estatuto do Mecenato.


Temos portanto que, no caso em análise, ou as referidas ajudas ou contribuições podem ser enquadradas nos critérios apontados e, assim, consideradas como donativos mecenáticos, à luz do que anteriormente ficou dito - o que permite considerar que a inclusão da referência aos mecenas não se considera publicidade paga - ou, caso assim não seja, estar-se-á perante um patrocínio comercial - o que é considerado como publicidade paga e, por tal vedado às autarquias locais, pela Lei da Publicidade, no que toca a publicações periódicas informativas editadas pelos seus órgãos.
Por fim, apenas uma breve e sucinta alusão à necessidade de separação e independência que deve existir entre as qualidades de mecenas e a de habitual fornecedor, que, naturalmente, estes também podem ser, para que não possa ser posta em causa a transparência, legalidade, imparcialidade e igualdade que deve estar sempre presente nestas relações.


Ricardo da Veiga Ferrão
(Jurista. Técnico Superior)


1. O Código da Publicidade define suporte publicitário como o veículo utilizado para a transmissão da mensagem publicitária (artigo 5.º, n.º 1, al. c)).

2. O Código da Publicidade foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 330/90, de 23 de Outubro, posteriormente alterado pelos Decreto-Lei n.º 74/93, de 10 de Março, Decreto-Lei n.º 6/95, de 17 de Janeiro, Decreto-Lei n.º 61/97, de 25 de Março, Lei n.º 31-A/98, de 14 de Julho, Decreto-Lei n.º 275/98, de 09 de Setembro, Decreto-Lei n.º 51/2001, de 15 de Fevereiro, Decreto-Lei n.º 332/2001, de 24 de Dezembro, Lei n.º 32/2003, de 22 de Agosto, Decreto-Lei n.º 224/2004, de 04 de Dezembro, Lei n.º 37/2007, de 14 de Agosto, Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de Março, Lei n.º 8/2011, de 11 de Abril, e Decreto-Lei n.º 66/2015, de 29 de Abril

3. O Código da Publicidade define esta, para efeitos do que nele se dispõe, como qualquer forma de comunicação feita por entidades de natureza pública ou privada, no âmbito de uma actividade comercial, industrial, artesanal ou liberal, com o objectivo directo ou indirecto de: a) Promover, com vista à sua comercialização ou alienação, quaisquer bens ou serviços; b) Promover ideias, princípios, iniciativas ou instituições (artigo 3.º, n.º 1).

4. Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de Julho, com posteriores alterações.

5. Consultável em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/NR/rdonlyres/28B8B5C4-76E8-4411-83F8-C55C2CAB7D4D/0/circular_2-2004_de_20_de_janeiro_da_dsirc.pdf

 

 

 

 

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LTFP; suspensão do contrato; direito a férias.


Tendo em atenção o exposto no ofício n.º ..., de ..., da Câmara Municipal de ..., sobre a matéria referenciada em epígrafe, cumpre tecer as seguintes considerações:

Reportando-nos ao solicitado, acerca do assunto referido em epígrafe, cumpre informar de que, compulsada a informação anexa ao pedido de parecer, se constata ter sido, a 2.ª questão controvertida, bem enquadrada e corretamente fundamentada, de facto e de direito, nada nos ocorrendo que possa contribuir para infirmar ou reforçar o entendimento ali perfilhado.

Na verdade, analisada cuidada e pormenorizadamente a informação referida, afigura-se-nos nada haver a acrescentar ao respetivo conteúdo que possa contribuir para um reforço da legalidade administrativa, quer quanto ao enquadramento jurídico-factual quer quanto ao procedimento adotado, pelo que é merecedora da nossa plena concordância,

No que à outra questão diz respeito, cumpre dizer que, tendo-se suscitado dúvidas quanto aos efeitos da suspensão do contrato, em matéria de férias e subsídio de férias, conforme o início e o termo da suspensão do contrato ocorressem no mesmo ano civil ou em anos civis diferentes, atenta a conhecida regra legal da aquisição do direito a férias em 1 de janeiro de cada ano, foi produzido, na sequência da Reunião de Coordenação Jurídica de 15 de maio de 2014, pela rede interministerial de trabalho colaborativo constituída entre a DGAL e a DGAEP, o entendimento que, pela sua pertinência e oportunidade, seguidamente se transcreve:
“Quando a suspensão do contrato de trabalho em funções públicas se inicia e termina no mesmo ano civil, não produz quaisquer efeitos no direito a férias do ano em curso ou do ano seguinte, como se vê do n.º 4 do artigo 171.º do RCTFP. Quando a suspensão se inicia em determinado ano e termina no ano civil seguinte, o trabalhador, no ano da cessação do impedimento prolongado, tem direito a férias nos termos do n.º 2 do artigo 179.º do diploma citado. No ano seguinte a este bem como no ano do início da suspensão esta não se repercute no direito a férias.
Na LTFP o regime é semelhante e consta das disposições conjugadas dos artigos 278.º, 129.º e 127.º” (destacámos).


O técnico superior

(José Manuel Martins Lima)

By |2023-10-23T11:07:25+00:0030/12/2015|Legal Opinions up to 2017|Comments Off on LTFP; suspensão do contrato; direito a férias.

Sino de igreja; licença especial de ruído.


Solicita o Presidente da Câmara Municipal de ..., por seu ofício de ..., referência n.º ..., a emissão de parecer sobre a seguinte questão:
Qual o enquadramento jurídico em matéria de poluição sonora de sinos de igrejas [acompanhados de uma melodia religiosa] e respetivos amplificadores sonoros, maxime da hipotética necessidade de estes terem licença especial de ruído, nos termos do art.º 30.º e do n.º 2 do art.º 32.º, ambos do Decreto-Lei n.º 310/2002, de 18 de Dezembro, que regula o regime jurídico do licenciamento e fiscalização de atividades pelas câmaras municipais.
No caso decidendum a factologia é o seguinte:
a) No cimo da torre da igreja encontram-se quatro amplificadores sonoros, que a cada 15 minutos emitem sinais horários que consistem numa melodia religiosa.
b) Tais emissões decorrem entre as 07h00 e as 22h00, cessando no período noturno;
c) Entende a GNR que não tendo a fábrica da igreja de ... requerido a correspondente licença especial de ruído para a emissão sonoro dos sinais horários supra aludidos, esta praticou facto subsumível em contraordenação, por força da conjugação do art.º 30.º e do n.º 2 do art.º 32.º e da al. i), do n.º 1, do art.º 47.º, todas do já supra aludido Decreto-Lei n.º 310/2002, de 18 de dezembro.
De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 30.º do Decreto-Lei 310/2002, de 18 de dezembro, na sua atual redação, "O funcionamento de emissores, amplificadores e outros aparelhos sonoros que projectem sons para as vias e demais lugares públicos, incluindo sinais horários2, só poderá ocorrer entre as 8 e as 22 horas e mediante a autorização referida no artigo 32.º", estabelecendo por sua vez o artigo 32.º do mesmo diploma que "1 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, a realização de festividades, de divertimentos públicos e de espectáculos ruidosos nas vias púbicas e demais lugares públicos nas proximidades de edifícios de habitação, escolares durante o horário de funcionamento, hospitalares ou similares, bem como estabelecimentos hoteleiros e meios complementares de alojamento só é permitida quando, cumulativamente:
a) Circunstâncias excepcionais o justifiquem;
b) Seja emitida, pelo presidente da câmara municipal, licença especial de ruído;
c) Respeite o disposto no n.º 5 do artigo 15.º do Regulamento Geral do Ruído, quando a licença é concedida por período superior a um mês.
2 - Não é permitido o funcionamento ou o exercício contínuo dos espectáculos ou actividades ruidosas nas vias púbicas e demais lugares púbicos na proximidade de edifícios hospitalares ou similares ou na de edifícios escolares durante o respectivo horário de funcionamento.
3 - Das licenças emitidas nos termos do presente capítulo deve constar a referência ao seu objecto, a fixação dos respectivos limites horários e as demais condições julgadas necessárias para preservar a tranquilidade das populações."
Ora, atenta a letra da lei, parece-nos que os sinais horários [mormente os produzidos pelos sinos de igrejas e respetivos amplificadores sonoros] estão sujeitos a licença especial de ruído.
No entanto tal não nos parece inteiramente líquido. Vejamos,
O exercício do direito constitucional à liberdade do culto religioso, garantido pelo n.º 4 do art.º 41.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP), não tem natureza de direito absoluto, antes tendo de sofrer as restrições necessárias para assegurar a satisfação de outros direitos ou interesses também constitucionalmente garantidos, como expressamente dispõe o n.º 2, do art.º 18.º da CRP.
Com efeito, são também constitucionalmente garantidos o direito à habitação «(…) em condições de higiene e conforto que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar (…)», nos termos do n.º 1 do art.º 65.º da CRP e o direito «(...) a um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado (...)», conforme dispõe o n.º 1, do art.º 66.º, da CRP.
Está, portanto, «afastada a possibilidade de o princípio da liberdade de culto servir de suporte para isentar a recorrente das obrigações ou deveres que são impostos à generalidade dos cidadãos, designadamente da observância das regras do ordenamento urbanístico e das que visam satisfazer interesses ambientais» - cfr. acórdão do STA de 31/10/2002, proferido no âmbito do Proc. n.º 01102/02.
Concludentemente, da necessária ponderação que aqui impera efetuar, atendendo aos bens jusconstitucionais em presença, resulta que, salvaguardando o direito e o dever que assiste no quadro da liberdade religiosa às igrejas e demais comunidades religiosas de fidelidade à sua missão, onde o uso dos sinos assume um cariz especial de convocação e anúncio pastoral (os sinos assinalam o passar das horas, convocam à oração), não menos deve ser igualmente ressalvado o respeito pela qualidade do ambiente e vida das populações.
Nessa medida, e concretamente em matéria da sistematização da problemática dos sinos dos locais de culto enquanto hipotéticos instrumentos potenciadores de poluição sonora, cumpre ter presente, atendendo à factologia supra referida, o teor de dois diplomas legislativos: o Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de janeiro, que regula o regulamento geral do ruído, e o supra citado Decreto-Lei n.º 310/2002, de 18 de dezembro, que regula o regime jurídico do licenciamento e fiscalização de atividades pelas câmaras municipais, sendo que estes, como bem decorre do preambulo do primeiro, se encontram articulados.
O primeiro consubstancia o regime geral disciplinador da prevenção do ruído e o controlo da poluição sonora, assim, visando a salvaguarda da saúde humana e o bem-estar das populações, enquanto o segundo, maxime nos seus artigos 29.º a 34.º regula o licenciamento do exercício da atividade de realização de espetáculos de natureza desportiva e de divertimentos públicos, nomeadamente, o funcionamento de emissores, amplificadores e outros aparelhos sonoros que projetem sons para as vias e demais lugares públicos (incluindo sinais horários).
Numa primeira leitura - sobretudo atendendo ao facto de que in casu o sino se encontra interligado com quatro amplificadores sonoros - parece-nos que o caso recai diretamente no âmbito de aplicação dos supra citados artigos 29.º a 34.º e que, como tal, será exigível, nos termos dos artigos 30.º, n.º 2 e 32.º a solicitação prévia de licença especial de ruído.
Todavia, no quadro da ponderação supra mencionada dos bens jusconstitucionais ora em presença, cumpre ter igualmente presente que a lei de liberdade religiosa - Lei n.º 16/2001, de 22 de junho - determina que os locais de culto não devem ser alvo de constrangimentos administrativos - cfr. acórdão de 25/02/2011, proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte no âmbito do proc. n.º 00189/06.5BEMDL.
Assim, subsistem dúvidas relativamente ao enquadramento dos referidos sinais horários/melodia nos artigos 29.º a 34.º do Decreto-Lei n.º 310/2002, de 18 de dezembro, na sua atual redação, pois estes artigos, aliás como todo o capítulo, disciplinam o "Licenciamento do exercício da actividade de realização de espectáculos de natureza desportiva e de divertimentos públicos." [e como tal fazem depender de prévia licença] tão-somente divertimentos públicos de diversa natureza, organizados nas vias, jardins e demais lugares públicos ao ar livre, tais como, arraiais, romarias, bailes, provas desportivas e outros divertimentos públicos, pelo que, imputar aos sinais horários - mesmo quando a sonoridade destes se encontra mecanicamente amplificada idêntico enquadramento poderá consubstanciar um constrangimento administrativo, dado que, o sino, com os toques dos sinais horários/melodias, surge intimamente interligado com o relógio da torre da igreja, acabando por ter a função social [cuja génese apresenta uma dimensão religiosa] de enunciar diariamente as horas, atividade intemporal, estranha e independente de quaisquer festividades.
É nosso entendimento, como acima melhor explanado, que deverá ser emitida uma licença especial de ruído [que foi, aliás, já requerida pela entidade responsável pela Igreja] ao abrigo das normas supra referidas, no entanto subsistindo dúvidas, solicitamos a V Exa a emissão de parecer jurídico quanto à questão colocada.

APRECIANDO
1. DO PEDIDO
A questão que se coloca no presente pedido é a de (se) saber se o funcionamento de (quatro) amplificadores sonoros (que se presume serem aquilo que tecnicamente é designado por altifalantes de corneta) colocados na torre sineira de uma igreja (que se presume ser a de ...) e que entre as 07h00 e as 22h00 emitem, a cada quarto de hora, sinais horários que consistem numa melodia religiosa, carece de ser autorizado por licença especial de ruído1 camarária, por, no caso, se estar perante o funcionamento de emissor[es], amplificador[es] e outro[s] aparelho[s] sonoro[s] que projecte[m] sons para as vias e demais lugares públicos, incluindo sinais horários , na falta de cuja referida licença se estará perante facto infraccional de natureza contraordenacional, sancionado com coima3 (entendimento em que se louva a estrita legalidade cartesiana da GNR) – ou seja, incluir e tratar esta situação (de toque [horário] de sinos, ainda que de forma electrónica e amplificada e já não no ancestral modo mecânico de percussão) no âmbito do licenciamento do exercício da actividade de realização de espectáculos de natureza desportiva e de divertimentos públicos, como, implicitamente, pretende e resulta da actuação da GNR – ou se esta questão deve ser vista e apreciada noutro âmbito, qual seja, o do princípio da liberdade religiosa, constitucionalmente consagrado, regulado na Lei da Liberdade Religiosa e detalhado na Concordata de 2004, celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa.

2. ANÁLISE
2.1. UMA BREVE NOTA HISTÓRICO-POLÍTICO-SOCIAL DOS (TOQUES DOS) SINOS
Para que melhor se possa situar e analisar a questão colocada convirá, antes, fazer um breve excurso sobre a história dos sinos ao longo dos tempos na civilização ocidental e, mais precisamente no nosso país, vista à luz do prisma não só religioso como temporal e social.
2.1.1. Pode dizer-se que a produção de sons através da percussão dos objectos é tão velha quanto o homem, sons esse que serviam para as mais diversas finalidade mas que tinham sempre um objectivo central: comunicar com os demais. Assim, desde sempre, a percussão de troncos, pedaços de madeira (escavada para produzir diferentes sons) e, com os advir da idade dos metais, de (pedaços de) metal, tambores e outros objectos percutíveis, serviu para transmitir mensagens através da produção de sons típicos (identificados) com as mais diversas finalidades, quase sempre comunitárias: anunciar a guerra e a paz, dar a conhecer a outras comunidades acontecimentos felizes ou infelizes, chamar ou pedir auxílio, pedir chuva ou afastar tempestades, esconjurar o mal e o demónio, invocar os deuses ou chamar à oração.
As campainhas e os sinos, (também eles) instrumentos de percussão e idiofones, assumiram, em todas as civilizações e desde tempos imemoriais, um lugar central na vida social, quer como modo de comunicação entre os homens quer em rituais sagrados como forma de ligação e invocação do divino4.
A Igreja Católica cedo acolheu as campainhas e sinos quer na sua prática religiosa5, quer na vivência dos clérigos e monges e no chamamento à oração da comunidade cristã.
Porém os sinos, para além da matriz religiosa e de chamamento à oração e invocação do divino6, foram assumindo uma eminente função social7, tanto nas cidades e burgos como nas aldeias e nos campos, seja como modo de informação da comunidade sobre certos acontecimentos sociais (que, aliás, eram igualmente religiosos, como batizados, casamentos e decessos), seja como meio de chamamento da comunidade a actividades seculares, como convocar comunidade a reunir-se ou tocar a rebate em caso de incêndio ou calamidade, seja, ainda, como meio de informação comunitário sobre o decurso do tempo, através do toque das horas.
Ora terão sido as necessidades da vida religiosa que impulsionaram, na Idade Média, a invenção do relógio mecânico, já que os processos de medição do tempo através de relógios de sol, relógios de água ou clepsidras e de areia ou ampulhetas eram limitados e erráticos para quem se regia diariamente por sete tempos de oração8.
Inventado no final do século X, diz-se pelo Beneditino Gerbert d'Aurillac, depois Papa Silvestre II, os relógios mecânicos (a mais importante invenção europeia em plena Idade Média), ainda que apenas dotados de um único ponteiro a indicar (imprecisamente) as (doze) horas, saíram dos mosteiros e começaram a ser também instalados nas torres das igrejas, passando as servir não apenas as comunidades religiosas como as populações9.
O século XV foi acentuando a importância do tempo público, marcado primeiro a partir de relógios de torre de mosteiros, com mecanismos que accionavam os sinos, passando a pouco e pouco a estar instalados nas torres municipais10. Situação que originava, não poucas vezes, conflitos entre os poderes religioso e secular11.
2.1.2. Pode pois ter-se por assente que os sinos têm uma ancestral ligação com o homem que remonta a muitos milénios atrás e teve origem em distantes civilizações, de onde foi irradiando para outros locais e outras gentes. Essa ligação foi importada também para o ocidente e introduzida na sua cultura e civilização, tendo-se divulgado e ritualizado com o catolicismo, que fez dos sinos um dos seus símbolos12. A partir do momento em que a religião católica (e também, as suas dissidências: ortodoxos e protestantes [anglicanos, luteranos, presbiterianos, etc.]), fizeram do sino um elemento central da prática religiosa, ele e o seus toques passaram a assumir um papel fundamental nas diversas comunidades, congregadas à volta da torre da sua igreja, capela ou templo, quer em matéria estritamente religiosa quer, de modo muito sensível e sentido, como elemento congregador e informador dessa comunidade, através dos códigos sob a forma de símbolos sonoros com que informavam a comunidade dos principais factos que nela ocorriam. E um desses factos era precisamente o decurso do tempo, marcado por determinados toques, tocados pelo sineiro ou sacristão, e mais tarde, quando as torres sineiras passaram a ter um relógio que marcava as horas, por badaladas accionadas mecanicamente por mecanismos de relojoaria – porque o tempo, ou seja a vida, e o conhecimento do seu decurso (isto é, a sua medição) foi sempre um momento central da vivência humana desde que o homem dele tomou consciência, passando a medi-lo com gnómones e relógios de sol até chegar ao generalizado e, por isso, agora banal, relógio dos dias de hoje que pode já não ser o objecto mecânico ou electrónico, cheio de mistério, dedicado à medição do tempo mas constituir apenas umas das (múltiplas) funções do computador, tablet ou telemóvel.
E se a torre foi sempre um elemento transversal na história da arquitetura humana, a torre do sino ou campanário e, mais tarde, a torre do relógio, constituíam o elemento central e mais visível da povoação, onde todos, para além de buscar o aconchego espiritual, podiam “ver as horas” no mostrador do relógio ou ouvir as badaladas do sino que “batiam” as horas que este “marcava”. Era o tempo em que (ainda) havia tempo mas (ainda) não havia relógios (de bolso e, menos ainda, de pulso).
2.1.3. Porém, o (não) toque dos sinos foi, em certas épocas e pelas mais diversas razões, sociais, religiosas, mas também políticas, uma questão central e candente do quotidiano e da vida das comunidades. Portugal não foi excepção.
Para além da intrínseca ligação à Igreja, aos seus rituais e ritmos da religião católica e, mesmo da própria vida, e não obstante a sua óbvia utilidade pública, designadamente no que tangia às informações que veiculava para as populações das comunidades, certo é que o toque dos sinos já causava incómodo em tempos idos, quando se estava bem longe não só de (se) pensar em ambiente ou em poluição sonora como nos moldes actuais, mas também da necessidade de medir e conter o ruído em limites aceitáveis e previamente definidos, para assim se garantir a saúde e bem-estar das populações13.
Com a implantação da República14 e a separação da Igreja do Estado ditada pela Lei da Separação de 20 de Abril de 191115, esta passa a determinar que os toques dos sinos serão regulados pela autoridade administrativa municipal de acordo com os usos e costumes de cada localidade, contanto que não causem incómodo aos habitantes, e se restrinjam, quando muito, aos casos previstos no decreto de 6 de Agosto de 1833. De noite, os toques de sinos só podem ser autorizados para fins civis e em casos de perigo comum, como incêndios e outros. Interrompia-se assim o controlo dos sinos e da sua simbologia sonora (e do poder que isso significava) pela Igreja Católica e passava-se tal controlo para o poder secular. Ressalvado era ainda que o seu toque não causasse incómodo aos habitantes – mesmo que esse “incómodo” pudesse ser menos por razões sonoras do que por razões (anti)religiosas e de acérrimo republicanismo.
Esta proibição dos toques tradicionais dos sinos de acordo com as regras da Igreja Católica era corolário das fortes restrições – ou, mais precisamente, da perseguição16 – que a República moveu à Igreja e suas instituições, limitando a prática religiosa e proibindo cerimónias, procissões e outras manifestações exteriores de culto17.
A partir de então os sinos emudeceram e viram drasticamente contida a sua função de chamamento às obrigações religiosas, designadamente em termos de intensidade e tempo de toque.
Anos transcorridos abrir-se-ia nova crise política (e religiosa) ainda por causa (do toque) dos sinos em razão de uma Portaria – a designada Portaria dos Sinos18 – que partindo da consideração de que o toque dos sinos constituía um acto de culto público19, e que por essa razão podia ser realizado, independentemente de autorização ou participação, a qualquer hora, determinava que não se ponham embaraços ao toque de sinos a qualquer hora, … competindo à autoridade administrativa regular-lhe a duração em condições que não inutilizem o fim a que visa20.
Certo é que não obstante estas vicissitudes “sineiras” era e continuou a ser entendimento que o toque dos sinos convocando ou anunciando cerimónias, procissões ou quaisquer manifestações de culto religiosas, como acto litúrgico que era, fazia intrínseca parte da prática religiosa, pelo que se deveria considerar abrangido pela liberdade de culto21.

2.2. O TOQUE DOS SINOS À LUZ DO QUADRO JURÍDICO-LEGAL VIGENTE
O entendimento de que o toque dos sinos constitui um acto litúrgico intrinsecamente ligado à prática religiosa e, por isso, abrangido pela liberdade de culto, não foi tratado pela lei da Lei da Liberdade Religiosa22 nem abordado na Concorda da 200423 - o que há-de significar que a sua natureza e o entendimento sobre ela se mantém como o que tem sempre sido até então e agora.
2.2.1. CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA, LEI DA LIBERDADE RELIGIOSA E CONCORDATA DE 2004
De entre os direitos, liberdades e garantias considerados como direitos fundamentais, a Constituição da República Portuguesa consagra a inviolabilidade da liberdade de consciência de religião e de culto (artigo 41.º, n.º 1, CRP) como um deles. Tendo uma matriz primordialmente individual (pessoal), este direito é também, em algumas das suas vertentes, um direito usufruível colectivamente (ou por pessoas colectivas) - ou seja tem também a natureza de direito colectivo. E, nessa dimensão, a Constituição dispõe que as igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto27 (artigo 41.º, n.º 4, CRP) ou seja, pode dizer-se, como o faz MANUEL BRAGA DA CRUZ, que o Estado tem, em relação à religião, uma autonomia própria. O Estado não é competente em matéria religiosa e o inverso também é válido: as religiões também não são competentes em matéria politica24.
… [O]s direitos colectivos de liberdade religiosa, cujos titulares são as igrejas e outras confissões religiosas (e ainda as pessoas colectivas por elas criadas) incluem o direito à auto-organização (…) e o direito à autodeterminação (…) e o direito à organização do culto e à assistência religiosa dos crentes (templos e locais de culto, recrutamento e formação dos ministros, organização de cerimónia religiosas)25.
A Lei da Liberdade Religiosa consagrando a liberdade de culto26, estabelece, por um lado, o princípio da separação entre o Estado e as igrejas, por via do qual estas são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto , ao mesmo tempo que determina a não confessionalidade do Estado, em via do que este não se pronuncia sobre questões religiosas28.
A esta liberdade a lei concede uma verdadeira força jurídica vinculativa que leva a que, sobre ela, apenas sejam admitidas as restrições necessárias para salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos29.
Na parte reservada aos direitos colectivos de liberdade religiosa a Lei da Liberdade Religiosa garante, de modo expresso, às igrejas - que caracteriza como comunidades sociais organizadas e duradouras em que os crentes podem realizar todos os fins religiosos que lhes são propostos pela respectiva confissão30 e, portanto, garante também à Igreja Católica, a liberdade no exercício das suas funções e do culto, podendo, nomeadamente, sem interferência do Estado ou de terceiros … exercer os actos de culto, privado ou público, sem prejuízo das exigências de polícia e trânsito31.
Pode pois dizer-se que à luz da Lei da Liberdade Religiosa e à partida nenhuma limitação se coloca à prática religiosa e ao culto rectius, no caso, à prática religiosa e culto da Igreja Católica – nem, em circunstância alguma, estes dependem de prévia autorização ou licença administrativa.
Por seu lado, por via da Concordata de 2004, a República Portuguesa reconhece à Igreja Católica o direito de exercer a sua missão apostólica e garante o exercício público e livre das suas actividades, nomeadamente as de culto, magistério e ministério, bem como a jurisdição em matéria eclesiástica32 ao mesmo tempo que é reconhecida à Igreja Católica, aos seus fiéis e às pessoas jurídicas que se constituam nos termos do direito canónico a liberdade religiosa, nomeadamente nos domínios da consciência, culto, reunião, associação, expressão pública, ensino e acção caritativa33.
Limitação (ou seja, compressão, mas nunca ablação) a estas liberdades apenas as que resultem da Constituição – designadamente da necessidade de tutela de e compatibilização com outros direitos fundamentais – ou que sejam expressamente previstas na lei ou resultem de exigências de polícia administrativa, quando para tutela de bens ou valores de idêntica natureza e valia.
2.2.2. AS NORMAS LEGAIS INVOCADAS
2.2.2.1. O DECRETO-LEI N.º 310/2002
A questão ora em apreço apresenta-se colocada no âmbito da disciplina estabelecida pelo Decreto Lei n.º 310//2002, e, mais concretamente, do que nele se dispõe na norma do n.º 2 do artigo 30.º, onde se afirma que o funcionamento de emissores, amplificadores e outros aparelhos sonoros que projetem sons para as vias e demais lugares públicos, incluindo sinais horários, só poderá ocorrer entre as 9 e as 22 horas e mediante a autorização referida no artigo 32.º (sublinhado nosso).
Antes de sobre o problema se adiantarem outras razões, analise-se do objecto do diploma em questão e da inserção sistemática desta norma.
Em primeiro lugar o diploma em causa visa(va) regula[r] o regime jurídico de acesso, exercício e fiscalização de certas actividades34, algumas das quais de livre acesso35, outras carecendo para o seu exercício de licenciamento municipal36.
De entre as actividades que careciam de licenciamento municipal encontrava-se a de realização de espectáculos desportivos e de divertimentos públicos nas vias, jardins e demais lugares públicos ao ar livre, que era depois especialmente disciplinada no capítulo VII do mesmo diploma, epigrafado Licenciamento do exercício de actividades de realização de espectáculos de natureza desportiva e de divertimentos públicos capítulo esse no qual se encontra integrado o artigo 30.º ora em questão.
Ora terá que ser nesse quadro de realização de espectáculos de natureza desportiva e de divertimentos públicos que tem que ser lida e interpretada a norma do n.º 2 do artigo 30.º.
Dispunha o n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 310/2002, anteriormente à alteração introduzida pela Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro37, que os arraiais, romarias, bailes, provas desportivas e outros divertimentos públicos organizados nas vias, jardins e demais lugares públicos ao ar livre dependem de licenciamento da câmara municipal. Entretanto, o artigo 16.º, n.º 3, al. c), do RJAL, veio cometer às juntas de freguesia a competência para o licenciamento, entre outras, das actividades ruidosas de caráter temporário que respeitem a festas populares, romarias, feiras, arraiais e bailes deixando agora no âmbito municipal apenas o licenciamento de provas desportivas e de outros divertimentos públicos que não os atrás apontados.
Por seu lado, o artigo 30.º, epigrafado de espectáculos e actividades ruidosas, ao mesmo tempo que, no âmbito da matéria da sua epígrafe, veda a actuação de bandas de música, grupos filarmónicos, tunas e outros agrupamentos musicais … nas vias e demais lugares públicos dos aglomerados urbanos desde as 0 até às 9 horas (n.º 1), limita, ainda no mesmo âmbito, o funcionamento de emissores, amplificadores e outros aparelhos sonoros que projetem sons para as vias e demais lugares públicos, incluindo sinais horários, circunscrevendo-o ao período entre as 9 e as 22 horas e condicionando-o a autorização referida no artigo 32.º (n.º 2), ao que acresce o facto de o “funcionamento” das actividades ruidosas referidas neste último número só poder ser consentido, diz-se no n.º 3 do mesmo artigo, por ocasião de festas tradicionais, espetáculos ao ar livre ou em outros casos análogos devidamente justificados (al. a)) e desde que cumpridos os limites estabelecidos no n.º 5 do artigo 15.º do Regulamento Geral do Ruído, quando a licença é concedida por período superior a um mês (al. b))38. Ora pretender enquadrar o toque dos sinos no âmbito desta licença ou é dizer que estes apenas poderão tocar esporadicamente por ocasião de festas tradicionais, espetáculos ao ar livre ou em outros casos análogos devidamente justificados e que, no demais tempo, deverão permanecer silenciosos ou então é usar esta norma opara abranger situações que não recaem na sua previsão e no seu âmbito de aplicação.
2.2.2.1. O REGULAMENTO GERAL DO RUÍDO
Por outro lado, também não se afigura que a licença especial de ruído de que trata o artigo 15.º do Regulamento Geral do Ruído seja aplicável no caso pois que esta é/pode ser concedida quando esteja em causa unicamente uma «actividade ruidosa temporária», ou seja, a actividade que, não constituindo um acto isolado, tenha carácter não permanente e que produza ruído nocivo ou incomodativo para quem habite ou permaneça em locais onde se fazem sentir os efeitos dessa fonte de ruído tais como obras de construção civil, competições desportivas, espectáculos, festas ou outros divertimentos, feiras e mercados, pois que o toque dos sinos (nas suas diversas funções, litúrgicas, laicas ou comunitárias) além da sua ancestralidade e de sua continuidade ou permanência, não se enquadra também em qualquer das situações apontadas, pois que não ocorre apenas e por ocasião de qualquer delas.
Para além disso, e em termos comparativos, há que notar que o exercício de uma actividade ruidosa temporária promovida pelo município, não carece de qualquer licenciamento ainda que também fique sujeita aos valores limites fixados no n.º 5 do artigo 15.º do Regulamento Geral do Ruido (artigo 15.º, n.º 7, al. a), do Regulamento Geral do Ruido).

2.3. Ora não se afigura que a prática religiosa e de culto da Igreja Católica, prática e culto esses onde o toque dos sinos assume um profundo e relevante significado litúrgico, possa ser considerada como um divertimento público e, menos ainda, como um espectáculo de natureza desportiva. E menos ainda que se encontre sujeita a licenciamento administrativo ou a qualquer prática autorizatória das entidades administrativas.
Como antes já se referiu, a Lei da Liberdade Religiosa garante às igrejas e demais comunidades religiosas a liberdade no exercício das suas funções e do culto, podendo, nomeadamente, sem interferência do Estado ou de terceiros … exercer os actos de culto, privado ou público, sem prejuízo das exigências de polícia e trânsito. Por seu lado, como também se disse, pela Concordata de 2004 a República Portuguesa reconhece à Igreja Católica o direito de exercer a sua missão apostólica e garante o exercício público e livre das suas actividades, nomeadamente as de culto e reconhece à Igreja Católica, aos seus fiéis e às pessoas jurídicas que se constituam nos termos do direito canónico a liberdade religiosa, nomeadamente nos domínios da consciência, culto, reunião, associação, expressão pública.
A este respeito diz-se no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 25 de Fevereiro de 201139:
A lei de liberdade religiosa – Lei nº 16/2001 de 22/6 – não contém qualquer norma a prever o prévio licenciamento ou autorização para o exercício de culto (…). Bem pelo contrário, no que respeita aos locais de culto, dá indicação de que não deve haver constrangimentos administrativos. A alínea b) do artigo 23º preceitua que «as igrejas de demais comunidades religiosas são livres no exercício das suas funções e do culto, podendo, nomeadamente, sem interferências do Estado ou de terceiros, estabelecer lugares de culto ou de reunião para fins religiosos» (…).
Isto não significa que a liberdade de culto prevista no nº 1 do artigo 41º da CRP não possa ser limitada em função de outras direitos fundamentais, tal como a saúde e o ambiente. Com qualquer outro direito fundamental, a lei pode estabelecer as restrições necessárias para assegurar a satisfação de outros direitos ou interesses também constitucionalmente garantidos, como expressamente se prevê no nº 2 do artigo 18º da CRP. Como se diz no acórdão do STA de 23/10/2002 (proc. nº 01102/02, in www. dgsi.pt) «está afastada a possibilidade de o princípio da liberdade de culto servir de suporte para isentar a recorrente das obrigações ou deveres que são impostos à generalidade dos cidadãos, designadamente da observância das regras do ordenamento urbanístico e das que visam satisfazer interesses ambientais». Só que não há norma que, para controlo das condições de segurança e de saúde, exija que os locais de culto sejam previamente autorizados.
Temo assim por óbvio e evidente que a prática e ritual litúrgico da Igreja Católica, do qual faz parte integrante o ancestral toque dos sinos nas torres sineiras suas catedrais, basílicas, igrejas, capelas, mosteiros, cenóbios e todos os demais lugares de culto, em razão desse mesmo culto, não está sujeita a qualquer licenciamento administrativo, porque a tal se opõe o princípio da liberdade religiosa que se assume como direito liberdade e garantia com a natureza de direito fundamental, consagrado na Constituição, densificado na Lei da Liberdade Religiosa e garantido à Igreja Católica pela Concordata de 2004.
O mesmo deve ser entendido quanto ao toque das horas. Em boa verdade, se as horas que os sinos começaram a “dar” eram as horas litúrgicas, horas de oração, primeiro para dentro do mosteiro e depois também para a comunidade circundante, como uma função eminentemente congregadora e de ligação telúrica40, essa horas acabaram por ir servindo igualmente para regular um tempo paulatinamente transmudado em tempo civil, na medida que as horas do livro deixaram de ter uma função eminentemente litúrgica e foram passando a regular o quotidiano do trabalho e da vida. E, por isso, também não se vê que o toque das horas, regulado pelo “relógio da torre” e “vistas” no seu mostrador, careça de ser licenciado, não apenas pelas suas origens e função - que ainda hoje se mantêm – como também pela sua prática secular, eminentemente social em benefício da comunidade. Razões estas a que acresce uma outra, de identidade de tratamento, pois caso (o relógio e) o sino esteja(m) numa torre municipal, marcando um tempo laico ou civil, não carecerá de licenciamento, em função da isenção que nesta matéria gozam os municípios.
É evidente que como se disse há pouco, em cima, isto não significa que a liberdade de culto prevista no nº 1 do artigo 41º da CRP não possa ser limitada em função de outras direitos fundamentais, tal como a saúde e o ambiente. Como [com] qualquer outro direito fundamental, a lei pode estabelecer as restrições necessárias para assegurar a satisfação de outros direitos ou interesses também constitucionalmente garantidos. E é por isso que já desde a Concordata de 1940 o Estado assegurava à Igreja Católica o livre exercício de todos os actos de culto, privado ou público, sem prejuízo das exigências de polícia e de trânsito.
Ora, é pois no âmbito dessa polícia administrativa41 que em caso de ruído provocado pelas actividade de culto religioso, o presidente da câmara municipal dispõe de poderes de fiscalização e poderes cautelares que evitam a ocorrência de danos à saúde e sossego dos moradores, designadamente o poder de suspender ou encerrar preventivamente a actividade ou o local de culto42. Mas, se até esse limite vigora o princípio da liberdade religiosa, a sua compressão por razões ambientais e de “ruído” no caso do toque dos sinos, deve também ter presente e atender à função social dos mesmos. Na verdade, se bem que hoje exista um sistema de protecção civil, com cobertura nacional, que providencia meios de auxílio em caso de catástrofe ou acidente, convém lembrar que em algumas comunidades o sino poderá ser (ainda) um elemento essencial e congregador da protecção civil, tocando a rebate em caso de desastre – pelo que o seu toque audível é condição da emergência do socorro.
A questão “pós-moderna” que agora se coloca com a utilização de aparelhagens sonoras amplificadoras para, eletronicamente, reproduzir o som e toques dos sinos, não retira a questão do ponto onde foi analisada (salvo, eventualmente, o eventual mau gosto dos som dos toques): Na verdade, a utilização de aparelhagens para reproduzir o som dos sinos nos toques litúrgicos deixa a questão no ponto onde tem que ser colocada: a da liberdade religiosa, designadamente da liberdade de práticas religiosas. Isto sem prejuízo dos já referidos poderes de polícia administrativa que cabem às autarquias locais dirigidos ao controlo dos excessos e abusos (de som), de modo a que não sejam postos em causa direitos, designadamente direitos fundamentais de terceiros, e acautelando as questões em matéria de ruído.


CONCLUINDO
a) A prática e ritual litúrgico da Igreja Católica, do qual faz parte integrante o ancestral toque dos sinos nas torres sineiras suas catedrais, basílicas, igrejas, capelas, mosteiros, cenóbios e todos os demais lugares de culto, em razão desse mesmo culto, não está sujeita a qualquer licenciamento administrativo, porque a tal se opõe o princípio da liberdade religiosa que se assume como direito liberdade e garantia com a natureza de direito fundamental, consagrado na Constituição, densificado na Lei da Liberdade Religiosa e garantido à Igreja Católica pela Concordata de 2004.
b) O mesmo deve ser entendido quanto ao toque das horas nos sinos das torres das igrejas.
c) Isto não significa que a liberdade de culto prevista no nº 1 do artigo 41º da CRP não possa ser limitada em função de outras direitos fundamentais, tal como a saúde e o ambiente. Como [com] qualquer outro direito fundamental, a lei pode estabelecer as restrições necessárias para assegurar a satisfação de outros direitos ou interesses também constitucionalmente garantidos.
d) No âmbito dos poderes de polícia administrativa, em caso de ruído provocado pelas actividades de culto religioso, o presidente da câmara municipal dispõe de poderes de fiscalização e poderes cautelares que evitam a ocorrência de danos à saúde e sossego dos moradores, designadamente o poder de suspender ou encerrar preventivamente a actividade ou o local de culto.
e) A utilização de aparelhagens para reproduzir o som dos sinos nos toques litúrgicos deixa a questão no ponto onde tem que ser colocada: a da liberdade religiosa, designadamente da liberdade de práticas religiosas, sem prejuízo dos já referidos poderes de polícia administrativa que cabem às autarquias locais dirigidos ao controlo dos excessos e abusos (de som), de modo a que não sejam postos em causa direitos, designadamente direitos fundamentais de terceiros, e acautelando as questões em matéria de ruído.

Salvo semper meliori judicio

 

 Ricardo da Veiga Ferrão

(Jurista. Técnico Superior)

 

1. Licença essa que, ainda que não exactamente a mesma, pode ser assimilada à licença especial de ruído prevista no artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro.

2. Artigo 30.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 310/2002, de 18 de Dezembro.

3. Infracção prevista e punida pela al. i) do n.º 1 do artigo 47.º do Decreto-Lei n.º 310/2002.

4. Os sinos e as campainhas acompanham o homem desde tempos imemoriais, assumindo várias e distintas funções, mas sempre tendo estado presentes nos momentos mais importantes da sua vida. De facto, para além de se destinarem a produzir determinados sons, com determinados usos e funções, trata-se de instrumentos de todo indissociáveis dos ciclos vitais dos homens, não raro assumindo funções rituais e usos mágicos.
Os sinos integram o conjunto dos chamados idiofones percutidos (porventura os de mais antigas e primitivas origens) na medida em que os sons são obtidos graças à acção de um batimento sobre o corpo vibrante com um objecto estranho ao mesmo.
Com o advento do Cristianismo, aliou-se à sua função primordial de reunião e de comunicação um carácter intrinsecamente sagrado, tornando-se autênticos porta-vozes de uma linguagem universal cuja vigência se manteve até ao presente (Joaquín Diaz). O que implicou, naturalmente, a criação de todo um processo de significados e de significantes de modo a operar a respectiva sacralização. Cfr. MÁRIO CORREIA, Toque de Sinos na Terra de Miranda, ed. do Centro de Musica Tradicional Sons da Terra, 2005, pag. 5. Desta obra há 2.ª edição, Editora Âncora, 2012.

5. O uso dos sinos nas práticas do culto cristão pode filiar-se numa continuidade de utilização de instrumentos musicais, como os cornos de carneiro e as trompetas de prata que são citadas no Antigo Testamento para o anúncio de um festim, ou as campainhas de ouro que são mencionados no livro do Êxodo (28; 31-35). Cfr. MÁRIO CORREIA, Toque de Sinos… cit, pag. 10. Porém, importa ter bem presente o facto de os sinos não terem sido inicialmente aceites como símbolos do Cristianismo, sobretudo devido ao facto de, quer na Grécia quer em Roma, estarem profundamente associados a rituais pagãos e a práticas seculares. Cfr. MÁRIO CORREIA, Toque de Sinos… cit, pag. 6.

6. Aos sinos foi atribuída pela Igreja Católica uma relevante carga simbólica …, sobretudo numa altura em que era de todo imperativo congregar as comunidades em torno das respectivas igrejas e templos, bem como manter permanentemente informadas as pessoas sobre os seus deveres e obrigações religiosas (sobretudo no que se refere aos tempos/momentos dedicados à oração). Cfr. MÁRIO CORREIA, Toque de Sinos… cit, pag. 6.

7. Com o decurso dos tempos, este simbolismo cristão foi diminuindo, mantendo-se, porém, a sua importância como um sinal da comunidade (Schafer, 1997:89):
O sinal sonoro mais significativo da comunidade cristã é o sino da igreja. Num sentido bem verdadeiro, ele define a comunidade, pois a paróquia é um espaço acústico circunscrito pela sua abrangência.
O sino é um som centrípeto; atrai e une a comunidade num sentido social, do mesmo modo que une homem e Deus. Cfr. MÁRIO CORREIA, Toque de Sinos… cit, pag. 7.
…na literatura abund[a]m as referências ao … uso e funções dos tipos de toques de sinos, sinetas e campainhas, integrando as “paisagens sonoras" das comunidades… Cfr. MÁRIO CORREIA, Toque de Sinos… cit, pag. 34.
São muitos e variados os toques de sinos, com distintas funções e diferentes significados…
O sino pode soar, dobrar, repicar, tocar, bater, voltear... Eram tantos os toques diferentes que quase em cada momento o podíamos designar de forma distinta. Havia três momentos do dia que eram recordados através do som dos bronzes: o amanhecer, toque que recebia o nome de Ave-Maria, ao meio-dia, que correspondia ao Ângelus, e o anoitecer quando o sino tocava para a oração. Juntamente com estes três toques fixos quotidianos soavam toques para recordar os actos litúrgicos, como as missas, os terços, as procissões, os casamentos, os funerais e os toques de defuntos, E misturados com eles, convocatórias para acontecimentos civis ou religiosos como o podiam ser o toque para a reunião do conselho, irmandade ou confraria, os toques para a vezeira, a fogo ou inclusivamente contra o enevoado que ameaçava as colheitas.
Quando o tempo não tinha o valor que hoje lhe é atribuído, quando esse tempo era só marcado pelo nascer e pôr-do-sol, pelas nove badaladas do toque de Trindades, caídas das torres das igrejas das aldeias ou das capelinhas dispersas pelos outeiros, ao meio-dia ou aos crepúsculos do seu começo e findar, quando os trabalhos eram marcados pelas festas do ano ou pelos dias dos Santos de maior devoção, quando não era ainda considerada a velocidade do tempo, a vida, nos meio s rurais, era bastante diferente. Cfr. MÁRIO CORREIA, Toque de Sinos… cit, pags. 39-40.
… três momentos muito importantes na vida das comunidades, com os sinos a desempenharem um papel relevante de aviso: o toque da manhã era também designado de toque das Avé Marias; o toque do meio-dia correspondia ao Angelus; e o toque do fim da tarde, que recomendava um tempo consagrado à oração, era designado o toque das Trindades…
O toque das Trindades era religiosamente respeitado pelas gentes das comunidades rurais: cessava o trabalho e todos recolhiam a suas casas… Cfr. MÁRIO CORREIA, Toque de Sinos… cit, pag. 41.

8. Cfr. FERNANDO CORREIA DE OLIVEIRA, História do Tempo em Portugal – Elementos para uma história do tempo, da relojoaria e das mentalidades em Portugal, edição do autor, 2003, pag. 30.
A prática das orações comunitárias diárias adveio ao cristianismo da prática judaica de récita de orações em horas fixas do dia, prática essa que passou para os Apóstolos e depois se generalizou e padronizou com a expansão da vida monástica na Europa. S. Bento de Núrsia estabeleceu sete horas canónicas: Matinas, Prima, Terça. Sexta, Noa, Vésperas e Completa, ainda que os momentos de oração (horas) pudessem chegar a ser oito diurnos e três ou quatro nocturnos.

9. Cfr. FERNANDO CORREIA DE OLIVEIRA, História do Tempo… cit., pag. 31. Relata este autor que de 1377 há notícia de ter sido instalado na Sé de Lisboa um “relógio de torre, batendo sinos”.

10. FERNANDO CORREIA DE OLIVEIRA, História do Tempo… cit., pag. 31.

11. Caso de um desses conflitos foi a disputa, nos tempo de D. João I, entre o Bispo do Porto e a Câmara dessa cidade, sobre o pagamento da manutenção de um relógio e toque do sino a ele adstrito, que estando na Porta do Olival, marcando assim um tempo leigo e municipal, passou para uma torre da Sé, marcando agora um tempo clerical acima desse tempo laico. Cfr. FERNANDO CORREIA DE OLIVEIRA, História do Tempo… cit., pag. 33.

12. A chegada dos sinos à Europa registou-se através de Bizâncio e a primeira notícia da sua utilização refere-se a Nola, cidade situada na província de Campania, na Itália.
De facto, a instalação de sinos nos templos cristãos tem vindo a ser atribuída a S. Paulino (353-431), bispo de Nola, que justamente no ano da sua morte assinou uma disposição nesse mesmo sentido, depois de ter mandado instalar um conjunto de vários sinos, designados tintinabula, feitos a partir de folhas de cobre e de estanho, com diferentes dimensões e com a função de comunicar aos fiéis o distinto conteúdo das ecclesiae.
A partir do século V, os sinos surgem referenciados nos mais diversos textos, sendo o mais antigo que se conhece sobre os seus vários usos litúrgicos da autoria do Bispo de Tours, S. Gregório (576-595), sendo então considerada primordial a função de chamamento por eles desempenhada.
… a colocação de sinos nos templos cristãos foi decisivamente incrementada graças à acção nesse sentido desenvolvida pelo Papa Sabiniano que, por bula datada de 604, referenciada por Polidoro Virgílio (na sua obra De inventionibus rerum) chegou mesmo a instituir o toque de sinos nas horas canónicas (Díaz, 1997:19). Nesta bula decretava-se expressamente que os sinos dos mosteiros … deviam ser tangidos sete oito vezes ao dia, ficando tais momentos a ser conhecidos como sendo as horas canónicas … .
Terá sido a partir do século XIII que se passou a colocar os sinos no alto de torres instaladas nas igrejas com esse fim (e designadas de campanários). De facto, embora o uso dos sinos nos templos cristão tenha sido sancionado pelo Papa Sabiniano nos inícios do século VII (com a cerimónia ritual da respectiva bênção a ser instituída um pouco mais tarde), só por volta do século XI é que se começaram a construir torres sineiras. Num livro datado do século VIII, o Liber Pontificalis, refere-se expressamente o facto de o Papa Estêvão II (752-757) ter mandado erigir um campanário com três sinos na Basílica Velha de S. Pedro, em Roma, sendo nessa época as torres sineiras já consideradas como um elemento essencial dos templos consagrados ao culto católico.
Enquanto as igrejas só tiveram um sino de mediana grandeza, limitaram-se os fiéis a fazer no cume, por cima do coro, ume espécie de nicho de madeira onde colocavam o sino.
Mas apenas as igrejas possuíam sinos maiores, edificavam-lhes torres; colocou-se sobre a maior parte delas uma pirâmide terminada por um globo, em cima do qual se arvorou a cruz; sobre a cruz se pôs um galo, emblema popular que indica o uso dos sinos na Igreja. Cfr. MÁRIO CORREIA, Toque de Sinos… cit, pag. 10 e segs.

13. Desse incómodo e do que ele já representava para as populações, é claro e expressivo exemplo o ofício dirigido pelo Secretário de Estado dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça ao Cardeal Patriarca de Lisboa, a 19 de Junho de 1837, com o seguinte teor:
Em.mo e Rev.mo Sr.
Constando a Sua Magestade a RAINHA que a despeito de reiteradas ordens, expedidas por este Ministerio, continúa a praticar-se um intolerável abuso no toque dos sinos, com grave incómmodo dos habitantes desta Capital: Quer Sua Magestade que V. Em.ª se sirva de remetter a esta Secretaria d’Estado as instrucções que sobre tal objecto lhe foram pedidas em Aviso de 28 d’Abril ultimo, a fim de poder-se definitivamente regular o toque dos mesmos sinos, e a duração deles. Quer outro sim Sua Magestade que V. Em.ª expeça desde já as ordens mais terminantes para que esses toques sejam promptamente reduzidos aos que annuciam a saudação angelica, aos que chamam os Fieis á Missa, e aos que dão signal de incendio: devendo V. Em.ª fazer saber ao Conego que serve de Thesoureiro Mór da Cathedral de Lisboa, e aos Parochos da Capital, que ficam responsáveis por qualquer abuso que se cometta neste negocio, e que em tal caso o Governo os fará inexoravelmente castigar pelos meios que tem á sua disposição.
Deus guarde a V. Em.ª
Este documento é consultável em http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/18/15/p354.
Também um edital de 18 de Fevereiro de 1892 do governador civil interino do distrito do Porto, Joaquim Traibner de Morais, … regulava [o toque dos sinos] …: só o bispo, o pároco ou os capelães têm o direito de mandar tocar os sinos das igrejas, capelas e ermidas para os ofícios, orações públicas e outros actos religiosos, mas estes toques não poderão durar mais de cinco minutos cada um, excepto para finados, pois nesse caso poderá haver três toques de cinco minutos cada um dom intervalo ao menos de um quarto de hora; era proibido qualquer toque de sinos antes do amanhecer e depois das 9 horas da noite desde a Páscoa até 31 de Outubro, e antes do amanhecer e depois das 8 horas da noite desde 1 de Novembro até à Páscoa, com excepção da noite de Natal. A 12 de Julho de 1892, um ofício do mesmo governador civil, permitia que o toque dos sinos não se limitasse ao número de três, mas que fossem os necessários. Cfr. RITA MARIA CRISTOVAM CIPRIANO ALMEIDA DE CARVALHO, A Concordata De Salazar, Portugal-Santa Sé 1940, Tese de Doutoramento, FCSH – UNL. 2009, pag. 12, nota 64, consultável em http://run.unl.pt/handle/10362/5685. Há edição em livro: RITA ALMEIDA DE CARVALHO, A Concordata de Salazar, Temas e Debates, 2013.

14. A Constituição de 1911 acompanhou, nestas matérias, o espirito revolucionário da época: laicista e anticatólico. Ainda que garantindo formalmente a liberdade de consciência e de crença e a igualdade política e civil de todos os cultros mantinha a legislação em vigor que extinguiu e dissolveu em Portugal a Companhia de Jesus, as sociedades nela filiadas e todas as congregações religiosas e ordens monásticas (artigo 3.º, n.º 12). Cfr. JORGE MIRANDA, Liberdade Religioso, Igrejas e Estado em Portugal, in Nação e Defesa, n.º 39, Julho-Setembro 1986, pag. 120-121.

15. Decreto com força de lei de 20 de abril, separando o Estado das igrejas, publicado no Diário do Governo n.º 91, de 21 de Abril de 1911.

16. Nesse sentido, JORGE MIRANDA, Estado, Liberdade Religiosa e Laicidade, in Gaudium Sciendi, n.º 4, Julho de 2013, pag. 31-32. O artigo, em formato de revista electrónica, pode ser acedido em http://tinyurl.com/h6jgb4k

17. Nesse sentido, vd. os artigos 43.º e seguintes da Lei da Separação, em especial os artigos 55.º a 57.º. Sobre as limitações impostas vd. também, RITA ALMEIDA DE CARVALHO, A Concordata … cit, pag. 11.

18. Portaria n.º 6259, de 26 de Junho, publicada no Diário do Governo, n.º 146, 1º suplemento, de 19 de Junho de 1929.

19. Nos termos do artigo 2.º do Decreto n.º 3856, de 22 de Fevereiro de 1918, publicado no Diário do Governo de 23 de Fevereiro do mesmo ano, o culto público de qualquer religião passava a poder exercer se a qualquer hora, sem dependência de licença da autoridade pública.

20. A este respeito dizem RITA ALMEIDA DE CARVALHO E ANTÓNIO DE ARAÚJO, A Voz dos Sinos: o «diário» de Mário de Figueiredo sobre a crise política de 1929, in ESTUDOS, Revista do Centro Académico de Democracia Cristã, Nova Série, n.º 5 - Coimbra 2005, pag. 460: A «portaria dos sinos» suscitou a oposição de alguns membros do Governo de Vicente de Freitas, os quais entendiam que ela revogava a Lei da Separação do Estado e das Igrejas, pelo que acabaria por ser anulada na reunião do Conselho de Ministros que teve lugar no dia 2 de Julho de 1929. Na sequência desta deliberação, Mário de Figueiredo demite-se e no dia 3 de Julho Oliveira Salazar, então Ministro das Finanças, pede a sua exoneração ao Presidente do Ministério.
Para o efeito, alegou que durante o período em que fora titular da pasta das Finanças nunca procurara «melhorar a situação legal dos católicos», porque a sua acção estava confinada aos problemas financeiros, mas, considerando que a portaria se limitava a interpretar disposições legais anteriores, «seria faltar a um compromisso tomado comigo, adoptar o Governo qualquer medida que violasse direitos já concedidos por leis ou governos anteriores aos católicos ou à Igreja em Portugal». Ora, a revogação da portaria fazia-o.

21. Nesse sentido, a propósito da preparação da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa de 1940, vd. RITA ALMEIDA DE CARVALHO, A Concordata … cit, pag. 217.
O texto da Concordata de 1940, assinada na Cidade do Vaticano em 7 de Maio de 1940, aprovada por resolução da Assembleia Nacional promulgado pela Lei n.º 1984 (DG, I, n.º 125, de 30 de Maio de 1940), e ratificada pela Carta de Confirmação e Ratificação do Presidente da República de 1 de Junho de 1940, encontra-se publicado no Diário do Governo, I série, n.º 158, de 10 de Julho de 1940. A Concordata foi alterada pelo Protocolo Adicional celebrado a 15 de Fevereiro de 1975, aprovado para ratificação pelo Decreto n.º 187/75, de 4 de Abril, tendo sido substituída pela Concordata celebrada a 18 de Maio de 2004.

22. Lei n.º 16/2001, de 22 de Junho, alterada pela Lei n.º 91/2009, de 31 de Agosto, Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro e Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro.

23. A Concordata de 2004, assinada a 18 de Maio de 2004, foi aprovada para ratificação pela Resolução da AR n.º 74/2004 de 16 de Novembro e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 80/2004, de 16 de Novembro.

24. MANUEL BRAGA DA CRUZ, A liberdade religiosa – dos direitos individuais aos direitos sociais, in Revista Portuguesa de Ciência das Religiões, ano I, 2002, n.º 1, pag. 145.

25. GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição, 2007, pág. 611.

26. Diz o artigo 1.º da Lei da Liberdade Religiosa que a liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável e garantida a todos em conformidade com a Constituição, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o direito internacional aplicável e a presente lei.

27. Artigo 3.º da Lei da Liberdade Religiosa.

28. Artigo 4.º, n.º 1, da Lei da Liberdade Religiosa.

29. Artigo 6.º, n.º 1, da Lei da Liberdade Religiosa.

30. Artigo 20.º da Lei da Liberdade Religiosa.

31. Artigo 23.º, al. a), da Lei da Liberdade Religiosa. Não deixa de ser curioso que parte da redacção (e previsão legal) desta norma seja idêntica à do Artigo XVI da Concordata de 1940.

32. Artigo 2.º, n.º 1, da Concordata de 2004.

33. Artigo 2.º, n.º 4, da Concordata de 2004.

34. Artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 310/2002.

35. Era o caso da exploração de máquinas automáticas, mecânicas, elétricas e eletrónicas de diversão e da venda de bilhetes para espetáculos ou divertimentos públicos em agência ou postos de venda – artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 310/2002.

36. De entre as que careceriam de licenciamento municipal para poderem ser exercidas incluíam-se as actividades de guarda-nocturno, venda ambulante de lotarias, arrumador de automóveis, realização de acampamentos ocasionais, realização de espectáculos desportivos e de divertimentos públicos nas vias, jardins e demais lugares públicos ao ar livre, e realização de fogueiras e queimadas – artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 310/2002.

37. A Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, que aprovou, em anexo, o Regime Jurídico das Autarquias Locais (RJAL), ao mesmo tempo que dispunha, na alínea e), do n.º 1, do seu artigo 3.º, que é revogado … o n.º 1 do artigo 2.º do Decreto Lei n.º 310/2002, de 18 de dezembro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 156/2004, de 30 de junho, 9/2007, de 17 de janeiro, 114/2008, de 1 de julho, 48/2011, de 1 de abril, e 204/2012, de 29 de agosto, na parte em que refere as alíneas b), c) e f) do artigo 1.º do mesmo diploma, bem como as suas subsequentes disposições relativas à titularidade da competência para o licenciamento das atividades de venda ambulante de lotarias, de arrumador de automóveis e atividades ruidosas de caráter temporário que respeitem a festas populares, romarias, feiras, arraiais e bailes, passou a cometer (artigo 16.º, n.º 3, al. c), do RJAL) às juntas de freguesia a competência para o licenciamento de, entre outras, actividades ruidosas de caráter temporário que respeitem a festas populares, romarias, feiras, arraiais e bailes.

38. De acordo com o n.º 5 do artigo 15.º do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro, a licença especial de ruído, quando emitida por um período superior a um mês, fica condicionada ao respeito nos receptores sensíveis do valor limite do indicador LAeq do ruído ambiente exterior de 60 dB(A) no período do entardecer e de 55 dB(A) no período nocturno.
Curiosa e problemática é a incongruência que passou a existir em matéria de licenciamento de actividades ruidosas (temporárias) face ao que hoje se dispõe na lei, quer por via das alterações introduzidas no Decreto-Lei n.º 310/2002 pela Lei n.º 75/2013 quer pelo que ora o RJAL dispõe, pois que passou a haver um conflito legal sobre a entidade competente para licenciar actividades ruidosas, designadamente quando esteja em causa ruído proveniente ou gerado por causa ou no contexto de festas populares, romarias, feiras, arraiais e bailes, pois que o licenciamento dessas “actividades ruidosas” (como se diz expressamente na lei) se encontra presentemente cometido às juntas de freguesia (artigo 16.º, n.º 3, al. c), do RJAL) mas a atribuição de licença especial de ruído (actividade ruidosa temporária) continua a caber ao município (artigo 15, n.º 1, do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro).
Existe, assim, uma evidente colisão legal quanto à entidade licenciante em matéria de ruído nestas situações, consideradas as competências para o efeito atribuídas pelos diversos regimes legais aplicáveis.

39. Consultável em http://tinyurl.com/zoffnux

40. É a isso que se refere Pessoa quando escreve: Ó sino da minha aldeia,/Dolente na tarde calma,/Cada tua badalada/Soa dentro da minha alma.
(Ó sino da minha aldeia in Renascença, Fevereiro de 1924).

41. MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, 10.ª ed., 3.º reimp. 2004, vol. II, p. 1150 considera polícia administrativa como o modo de actuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das atividades individuais susceptíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objecto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que as leis procuram prevenir.

42. É quanto se diz no sumário do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 25 de Fevereiro de 2011, já antes citado.

 

 

 

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Representante do Municipio da Assembleia Geral de Empresa Local.

 

Na sequência do pedido formulado pelo Município de ..., referente ao assunto em epígrafe, cumpre informar o seguinte:

Da análise dos Estatutos aprovados em sessão da Assembleia Municipal de 23 de abril de 2013, resulta que:
1. A Ribeirapera, Sociedade para o Desenvolvimento de Castanheira de Pera, E.M., SA, é uma empresa local constituída sob a forma de sociedade anónima regendo-se pelo regime da atividade empresarial local e pela lei comercial;
2. São órgãos sociais da mesma empresa: o Conselho de Administração, o Fiscal Único e a Assembleia Geral;
3. A Mesa da Assembleia Geral é constituída por 1 presidente, 1 vice-presidente e 1 secretário eleitos por esta de entre os seus elementos, por períodos de 4 anos;
4. O Município faz-se representar na Assembleia Geral por um elemento designado pela Câmara Municipal;
5. O mandato dos titulares dos órgãos sociais é coincidente com o dos titulares dos órgãos autárquicos, sem prejuízo dos atos de exoneração e da continuidade de funções até à efetiva substituição. (sublinhado nosso)
6. A fiscalização da Ribeiradepera compete ao Fiscal Único o qual é obrigatoriamente Revisor Oficial de Contas ou uma sociedade de revisores oficiais de contas.
Por deliberação, tomada por maioria, da Câmara Municipal, foi designado um vereador para a Assembleia Geral da empresa que veio a ser eleito Presidente da Mesa deste órgão;
Decorridos cerca de 2 anos após o início daquelas funções, o vereador apresentou à Câmara Municipal um pedido de ‘’demissão’’ como representante do Município na Assembleia Geral da empresa municipal colocando-se a questão de saber como deverá operar-se a cessação de funções.
Por se tratar de cessação de funções na empresa municipal, a questão deve ser enquadrada no âmbito da empresa municipal e não do executivo camarário.
De acordo com o art.º 21.º do Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local e das Participações Locais, aprovado pela Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto e alterada pelas Leis n.º 43/2014, de 25 de agosto e 69/2015, de 16 de julho, as empresas locais regem-se pela referida lei, pela lei comercial, pelos respetivos estatutos, pelo regime do setor empresarial do Estado.
Verifica-se, no entanto, que qualquer um daqueles regimes é omisso no que respeita à cessação de funções do Presidente da Assembleia Geral.
No enquadramento descrito o que estará em causa é a renúncia ao mandato, por parte do Presidente da Assembleia Geral, que deve ser apresentada ao órgão a que preside.
De acordo com o regime-regra a renúncia ao mandato é um ato unilateral receptício que produz efeitos logo que seja conhecido pelo/s destinatário/s (só não será assim se na própria comunicação for indicada uma data diferente).
A Assembleia Geral seguinte será convocada pelo Fiscal Único e terá como primeiro ponto a eleição do Presidente do órgão e, estando este presente, assume, de imediato a condução dos trabalhos.
Finalmente, quanto à representação do Município na empresa local, poderá a mesma ser assegurada, de acordo com o n.º 1, alínea oo), do art.º 33.º da Lei n.º 75/2012, de 13 de setembro, por qualquer pessoa que o órgão executivo entenda designar.`

 


À Consideração Superior

 


A Chefe de Divisão de Apoio Jurídico


(Graça Aleixo)

By |2023-10-23T11:10:17+00:0022/12/2015|Legal Opinions up to 2017|Comments Off on Representante do Municipio da Assembleia Geral de Empresa Local.

Estrada Nacional desclassificada; artº 15º, D.L. 13/94; servidão; Lei 13/71; muro de vedação; duplo licenciamento; Lei nº 34/2015.


A Câmara Municipal de ..., em seu ofício refª ..., de ..., solicita parecer jurídico que esclareça como decidir no caso que se segue.

Em 15 de junho de 2015, verificou a sua fiscalização que se encontrava em construção um muro de vedação, confinante, e citamos, com a “Estrada Nacional 234 desclassificada”, sem a respetiva licença municipal, exigida por força do artigo 4º, nº1, alínea c), do D.L. 555/99, de 16.12, na redação atual, que aprova o regime jurídico da urbanização e edificação (RJUE), pelo que foi lavrado o respetivo auto de notícia de contraordenação.

Em sua defesa, alegou o arguido que tinha já obtido um alvará de licença emitido pela EP, Estradas de Portugal, S.A, para construção de muro de vedação e acesso, estando convencido de que não necessitaria de licenciamento municipal para a obra.

Pergunta o município, e citamos, “(…) se é necessário o respetivo licenciamento municipal para a construção de um muro de vedação confinante com estrada nacional, da jurisdição da EP, Estradas de Portugal, SA”.


Sobre o assunto, começaremos por informar que à data da prática dos factos relatados pelo município, bem como à data do auto de notícia, encontrava-se ainda em vigor os D.L. 13/71, de 23.01, e D.L. 13/94, de 15.01, que regulavam a matéria em causa e que entretanto foram revogados pela Lei nº 34/2015, de 27.04, que aprova o Estatuto das Estradas da Rede Rodoviária Nacional,

O D.L. 13/71, de 23.01, em particular, no seu artigo 11º, alínea c), exigia, para as obras aí previstas, licença da Junta Autónoma das Estradas (ou entidade que lhe sucedeu).

Esta licença, contudo, não dispensava a competente licença de obras da câmara municipal respetiva, situação esta que configura o que se pode designar por duplo licenciamento, pelo que não era bastante, para o efeito, um alvará de licença emitido pela EP, Estradas de Portugal, ao contrário do que alega o arguido na defesa apresentada no processo de contraordenação.

O diploma que atualmente regula a matéria, no entanto, é o Estatuto das Estradas da Rede Rodoviária Nacional, aprovado pela Lei nº 34/2015, de 27.04, que revoga, entre outros, como dissemos, os D.L. 13/71, de 23.01, e D.L. 13/94, de 15.01, mas que, na sua essência, não se diferencia do anterior regime legal enunciado, quanto à intervenção dos municípios.

Este novo regime é aplicável, nos termos do seu artigo 2º, também “Às estradas nacionais (EN) desclassificadas, ainda não entregues aos municípios”, abrangendo, desta forma, o caso em apreço.

Tratando-se de um muro de vedação, aplica-se o artigo 55º, que trata de “edificações, vedações e obras de contenção”, dispondo que,
“1 – As servidões estabelecidas nos termos do presente Estatuto não prejudicam a possibilidade de, nas respetivas zonas, construir ou implantar:
a)…
b) Vedações de carácter definitivo e obras de contenção a uma distância mínima de 7 m do limite da zona da estrada, no caso dos IP e dos OC, e de 5 m, no caso das EN, ou fora da servidão de visibilidade e da área de proteção ao utilizador, desde que as mesmas não excedam a altura de 2,5 m, contada da conformação natural do solo;
(…)”
2 – A edificação ou implantação das vedações de carácter definitivo e as obras de contenção carecem de autorização da administrativa rodoviária”.
(sublinhados nossos)

Note-se que nos termos do artigo 3º do diploma, alínea a), entende-se por “Administração rodoviária”, a EP - Estradas de Portugal, S.A., ou a entidade pública que legalmente lhe venha a suceder.”, devendo acrescentar-se que, na sequência da publicação do D.L. 91/2015, de 29.05, esta entidade, EP - Estradas de Portugal, S.A., é incorporada, por fusão, na Rede Ferroviária Nacional – REFER, E.P.E. (REFER, E.P.E.), que é transformada em sociedade anónima, passando a denominar-se Infraestruturas de Portugal, S.A. (IP, S.A.).

Em conclusão, tanto no regime legal aplicável à data da ocorrência dos factos, como no atualmente vigente, a obra, nos termos atrás expostos, carecia sempre de licença administrativa camarária, nos termos do RJUE, designadamente o seu artigo 4º, nº2, alínea c), que estabelece que estão sujeitas a licença administrativa “as obras de construção, de alteração ou de ampliação em área não abrangida por operação de loteamento ou por plano de pormenor”. (sublinhado nosso), pelo que é legalmente incontestável quer o auto de notícia, quer o processo de contraordenação subsequente.


Divisão de Apoio Jurídico


(António Ramos)

 

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Fiscalização; trabalhadores municipais.

 

Em referência ao ofício ..., de ..., sobre o assunto mencionado em epígrafe, temos a informar:

Solicitou-nos O Senhor Presidente da Câmara um pedido de parecer quanto à compatibilização das funções de técnico superior com as de fiscal municipal, na sequência de informação, que anexaram, do serviço de recursos humanos da vossa Câmara Municipal.

Ora, se bem entendemos, a informação dos serviços humanos que nos remeteram não refere que os técnicos superiores que integrem equipas de fiscalização municipal passem a deter o conteúdo funcional inerente à carreira de fiscal municipal (carreira não revista1) mas sim que possam integrar enquanto técnicos superiores as equipas de fiscalização, nos termos do n º 3 do artigo 94 º do RJUE ( «no exercício da atividade de fiscalização, o presidente da Câmara Municipal é auxiliado por funcionários municipais com formação adequada, a quem incube preparar e executar as suas decisões»).
Tal significa que as operações de fiscalização propriamente ditas são levadas a cabo por trabalhadores municipais com formação adequada, isto é, principalmente pelos fiscais municipais. Tal não impede, no entanto, que os técnicos superiores possam igualmente colaborar em operações de fiscalização quando as exigências em concreto de determinadas ações de fiscalização (inspeções, vistorias, etc.) exijam que as mesmas sejam realizadas com a colaboração deste tipo de trabalhadores2.
Além do mais este tipo de atividades está, quanto a nós, também incluído no conteúdo funcional dos técnicos superiores.
De facto, se o n º 3 do artigo 94 º aqui em análise determina que os trabalhadores com formação adequada devem auxiliar o Presidente de Câmara nas suas competências de fiscalização, preparando e executando as suas decisões devemos lembrar que faz parte do conteúdo funcional dos técnicos superiores a execução de atividades de apoio geral ou especializado nas áreas de atuação comuns, instrumentais e operativas dos órgãos e serviços (anexo à lei 35/2014, de 20/06).
Além do mais, o artigo 81 º desta mesma lei 35/2014 prescreve, ainda, que a descrição do conteúdo funcional não prejudica a atribuição ao trabalhador de funções que lhe sejam afins ou funcionalmente ligadas, para os quais o trabalhador detenha a qualificação profissional adequada e que não impliquem desvalorização profissional.

Em conclusão, os técnicos superiores podem integrar e colaborar nas equipas de fiscalização, quando as exigências em concreto de determinadas ações de fiscalização (inspeções, vistorias, etc.) exijam que as mesmas sejam realizadas com a colaboração deste tipo de trabalhadores.
Estas atividades podem-se considerar integradas no seu conteúdo funcional, sendo sempre, pelo menos, funções afins ou funcionalmente ligadas ao conteúdo funcional que os técnicos superiores deverão executar.

 

Maria José L. Castanheira Neves


(Diretora de Serviços de Apoio Jurídico e à Administração Local)


1. De facto, prescreve o n.º 2 do art.º 1.º do Decreto-lei n.º 121/2008, de 11 de julho, que “o presente decreto-lei identifica, ainda, as carreiras e categorias que subsistem por impossibilidade de se efetuar a transição dos trabalhadores nelas integrados ou delas titulares para as carreiras gerais, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 106.º da lei” (salientado nosso).
E, mais adiante, dispõe o art.º 8.º do diploma o seguinte:
“1 - Subsistem, nos termos do artigo 106.º da lei, as carreiras e categorias identificadas no mapa vii anexo ao presente decreto-lei e que dele faz parte integrante.
2 - Os trabalhadores integrados nas carreiras ou titulares das categorias identificadas no mapa vii como subsistentes são, nos termos do artigo 104.º da lei, reposicionados na categoria de transição, quando aquele mapa a preveja, desde que o montante pecuniário correspondente à remuneração base a que atualmente têm ou teriam direito não seja inferior ao montante pecuniário correspondente ao nível remuneratório da primeira posição daquela categoria.
3 - …”
Ora, analisando o mapa referido nos preceitos transcritos, fácil é constatar não preverem eles a carreira de fiscal municipal, razão por que não poderá a mesma ser considerada como carreira subsistente mas antes como carreira não revista.

2. No mesmo sentido, Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes, Fernanda Maçãs, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, comentado, 2011, 3 ª edição; Almedina, pág. 622.



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