Contrato de permuta entre a Câmara Municipal e uma empresa
Data: 2006-05-12
Número: 119/2006
Responsáveis: Elisabete Maria Viegas Frutuoso
Foi efectuado entre a Câmara Municipal e a empresa um negócio jurídico do qual resultou a permuta de um lote de terreno, propriedade da autarquia, por uma cobertura, infra-estruturas metálicas e respectivos acessórios necessários para a construção do Estaleiro Municipal..
Sobre o assunto, cumpre informar:
I
O contrato de permuta, em termos gerais, é um contrato não tipificado autonomamente pela lei e ao qual se aplicam as regras da liberdade contratual e subsidiariamente as normas relativas à compra e venda. Traduz-se, em suma, num contrato através do qual se troca a propriedade de um bem ou outro direito pela propriedade ou direito de outro bem.
Contudo, na situação vertida terá de se proceder a uma análise mais rigorosa do conteúdo do negócio jurídico em causa, já que a permuta vai além de uma simples troca de bens, pressupondo, pelo contrário, uma verdadeira aquisição de bens – aquisição da cobertura, infra-estruturas metálicas e respectivos acessórios. Parece-nos, pois, claro que a Câmara Municipal com o referido contrato de permuta teve como objectivo a compra do material necessário para a construção (futura) do estaleiro municipal. Ora, como sabemos, qualquer aquisição de bens (ou serviços) promovida por uma entidade pública, como é o caso de uma autarquia, configura a realização de despesas públicas e, por conseguinte, uma situação enquadrável no regime jurídico das aquisições de bens e serviços, regulado no Decreto-Lei nº 197/99, de 08.06
De facto, é estipulado no art. 1º do Decreto-Lei nº 197/99 que “O presente diploma estabelece os regime da realização de despesas públicas com locação e aquisição de bens e serviços, bem como da contratação pública relativa à locação e aquisição de bens móveis e de serviços”
Nesta medida, tratando-se inequivocamente de um contrato de aquisição de bens deveria ter sido considerado e aplicado o citado regime jurídico, observando-se, para o efeito, as regras para a escolha do co-contratante e, atento o valor envolvido (elemento que não nos é dado), escolhido o tipo de procedimento adequado, nomeadamente o de concurso público.
Só no estrito cumprimento desta obrigação se salvaguardam os princípios constitucionais subjacentes à contratação pública, elencados no Decreto-Lei nº 197/99, de 08.06, dos quais se destacam os da transparência, publicidade, igualdade, imparcialidade e concorrência.
A este propósito tem defendido a jurisprudência o seguinte(1):
«O princípio da igualdade só é susceptível de concretização através do concurso público pois só assim podemos “assegurar que todos os cidadãos potencialmente interessados em contratar com a Administração (…) tenham efectivo acesso ao procedimento de contratação e iguais hipóteses de se tornarem contratantes” (Margarida O. Cabral, “O concurso público nos contratos administrativos, pág 218 e segs).
É que “seria de facto impossível à Administração senão por um sistema de público apelo à concorrência trazer ao procedimento todos aqueles que pudessem estar interessados em contratar”. Na mesma autora, pode ainda ler-se (pág. 200): “Também o princípio da racionalidade na actuação da Administração – e necessariamente o da prossecução do interesse público – implica que, na celebração de contratos administrativos, a Administração faça a melhor escolha, o que significa que esta deverá escolher o co-contratante que melhor seja capaz de satisfazer os fins que conduziram à decisão de contratar” sendo que”a escolha do melhor co-contratante só será possível se a entidade adjudicante conhecer todos os interessados em contratar e puder comparar as suas propostas” (…) “Ainda do ponto de vista do princípio constitucional da transparência, o ambiente de publicidade inerente a todo o concurso público e o facto deste permitir um verdadeiro controlo (desde logo, por todos os interessados) das decisões – que implicam escolhas – da entidade adjudicante transformam-no certamente no procedimento de contratação administrativa preferido pela Constituição”»
É entendido também no mesmo Acordão que ainda que de um contrato de empreitada se não tratasse (leia-se, neste caso, contrato de aquisição de bens) sempre em causa estaria a “obrigatoriedade genérica do concurso público constante do art. 183º do Código do Procedimento Administrativo”. Não oferece dúvidas, portanto, a regra de que em matéria de contratos administrativos é obrigatório a existência de um procedimento concursal.
Face ao que antecede, é de concluir, no caso concreto, que a ausência total de um contrato de aquisição de bens e do respectivo procedimento concursal nos termos do Decreto-Lei nº 197/99 gera a nulidade do procedimento e do subsequente contrato de permuta por preterição de um elemento essencial – arts. 133º e 185º do CPA ou mesmo que assim não se entendesse, sempre o seria por força dos arts 182º a 184º do CPA,
È unânime a jurisprudência na defesa deste entendimento, da qual se cita o Acórdão nº 56/2000, de 19.01.2000 do Tribunal de Contas, em que foi deliberado o seguinte:
“A não realização de concurso público quando essa realização é obrigatória tem sido considerado por este Tribunal como integradora de uma nulidade nos termos do art. 133º, nº 1 do CPA, por se entender que o mesmo constitui um elemento essencial do processo de adjudicação”.
E, utilizando o argumento da maioria de razão, o sumário do Acórdão do STA, nº 1084/03, de 11.11.2003, que refere o seguinte:
“Enferma de nulidade a adjudicação praticada em procedimento pré-contratual de concurso limitado sem apresentação de candidaturas quando, atento o valor da adjudicação, se exigia, nos termos do Decreto-Lei 55/95, que tivesse sido seguido, pelo menos, o procedimento por negociação com publicação prévia de anúncio”.
Repare-se que a situação vertida neste acórdão nem sequer trata da inexistência total de procedimento concursal, mas apenas da adopção de procedimento inadequado ao valor da despesa e, ainda assim, o Tribunal comina o acto com a sanção mais grave da nulidade. No fundo trata-se da equiparação da desadequação do procedimento à falta total de procedimento, como é sustentado no referido Acórdão, quando profere o seguinte:
“O que significa que o acto de adjudicação nele praticado não se enquadra, não é compatível com o procedimento no qual foi adoptado. Afigura-se que, neste caso, no fim de contas, o acto foi praticado sem procedimento, pois que o procedimento adoptado não está direccionado à prolação de uma decisão do tipo da que vem a ser tomada”
Por último, não deixaremos de referir que para além da verificação da inexistência de qualquer procedimento concursal no que respeita à aquisição do referido material, verificamos, pela informação prestada e documentos anexos (escritura de permuta e acta da Câmara Municipal), que uma das condições do contrato de permuta obriga à construção do estaleiro municipal, em data a indicar pela Câmara, o que poderá também, eventualmente, suscitar a questão da falta de contrato de empreitada de obras públicas e respectivo procedimento nos termos do Decreto-Lei nº 59/99, de 02.03.
II
Assente que é a sanção aplicável à falta de procedimento concursal e ao subsequente contrato de permuta – nulidade por preterição de um elemento essencial -, importa agora discutir o facto de o imóvel em questão ter sido transmitido a um terceiro adquirente, não obstante a nulidade subjacente ao acto. Trata-se da transmissão onerosa (pressuposto) de um terreno para a esfera jurídica de um terceiro.
Esta matéria é regulada no art. 291º do Código Civil sob a epígrafe “Inoponibilidade da nulidade e da anulação”, em que é consagrado o seguinte:
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“A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.
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Os direitos de terceiro não são, todavia reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores á conclusão do negócio.
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É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecida, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável”.
Estamos perante uma matéria do âmbito do direito privado que configura um desvio ao princípio geral da nulidade ou anulabilidade consagrado no art. 289º do Código Civil.
Da norma citada resulta, assim, a possibilidade de os direitos adquiridos sobre um imóvel, a título oneroso e por parte de um terceiro de boa fé, não serem prejudicados se o registo da sua aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade e se esta acção não for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio.
Em suma, podemos afirmar que são protegidos os direitos dos terceiros adquirentes sempre que se verifiquem os seguintes requisitos enunciados na lei:
Aquisição a título oneroso; Terceiro adquirente de boa fé, sendo este, aquele que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o nulidade ou anulabilidade; Registo da aquisição anterior ao registo da acção de nulidade; Acção de nulidade não proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio.
Ora, terá então que se aferir se no caso sub judice se cumprem os referidos requisitos e do resultado obtido verificar se os direitos do terceiro em causa são ou não afectados pela nulidade do acto.
De acordo com os elementos prestados verificamos apenas a existência em 19.10.2001 de escritura do contrato de permuta celebrado entre a Câmara e a Empresa citada, elemento que não permite aferir sobre a existência ou não do respectivo registo de aquisição e, concretamente, sobre o registo da posterior aquisição do terceiro. É este um dado relevante, já que de acordo com o nº 1 do citado art. 291º, como supra referimos, só há protecção dos direitos de terceiro se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade e conforme o seu nº 2 “não se reconhecem os direitos de terceiro constituídos sobre as coisas a restituir, mesmo que haja registo de aquisição anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação, se esta for proposta e registada dentro do prazo de três anos”(2). Acrescentam ainda os autores citados que “decorrido este prazo, são protegidas as aquisições a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção”.
Em conclusão, não tendo nós nota sobre os elementos concretos da aquisição do terceiro, apenas nos resta sublinhar e reiterar à atenção na regra geral da protecção dos legítimos interesses de terceiros, que determina que a acção de nulidade ou de anulação relativa a bens sujeitos a registo, se não for proposta e registada no prazo de três anos posteriores à conclusão do negócio, é inoponível a terceiros de boa fé, adquirentes, a título oneroso, sobre esses bens.
(1) Acórdão do Tribunal de Contas nº 37/2003, 1.ª S./PL (2) Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 1967, pág.188
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