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Home Pareceres Jurídicos até 2017 Médico Veterinário Municipal. Impedimento. Exercício de actividade privada.

Médico Veterinário Municipal. Impedimento. Exercício de actividade privada.

Solicita a, através da mensagem de serviço nº de 2006, a emissão de parecer sobre a seguinte questão que lhe foi apresentada pela Câmara Municipal
Foi remetido a esta um pedido de parecer sobre o impedimento legal do para se pronunciar sobre um processo de instalação e licenciamento de um estabelecimento de clínica médico-veterinária.

 

I

  1. A questão em apreço prende-se com a intervenção do médico veterinário municipal no processo de licenciamento de um espaço que se pretende utilizar(1) para o exercício da actividade clínica médico-veterinária, sendo que esse mesmo médico veterinário municipal exerce actividade privada como médico veterinário, designadamente, numa outra clínica médico-veterinária detida por uma sociedade da qual é sócio-gerente e detentor, com sua esposa, da totalidade do capital social. Acresce que esta clínica se situa a escassos 300 ou 400m do espaço que ora se pretende licenciar como clínica.
  2. No âmbito do processo de licenciamento de estabelecimento de prestação de serviços cujo funcionamento envolva riscos para as pessoas, previsto no Decreto-Lei nº 370/99, de 18 de Setembro, cabe ao médico veterinário municipal, quando estejam em causa, designadamente, clínicas veterinárias(2), dar parecer favorável á instalação de tais estabelecimentos, por se tratar da prestação de cuidados a animais (artigo 24º).
    1. No caso em apreço, foi no exercício desta competência que o médico veterinário municipal deu um parecer não favorável à peticionada instalação do consultório médico. Tratando-se de parecer “obrigatório” e “vinculativo”, ou mais propriamente “relativamente vinculante”(3), isso implica a impossibilidade de concessão da necessária licença pela Câmara Municipal.
  3. Ora perante o parecer desfavorável do médico municipal, o peticionante da licença para o dito consultório – ou, no caso, a peticionante – veio invocar impedimento do médico no procedimento em apreço, pelo facto deste também exercer clínica (actividade) privada numa clínica veterinária detida por uma sociedade de que é sócio, nos termos descritos em 1.

Assim sendo – invoca a peticionante – a abertura e funcionamento da sua clínica irá concorrer e disputar a clientela com a clínica do médico veterinário municipal, o que dá origem à existência de um interesse pessoal da parte deste no desfecho do licenciamento.

Por este facto, deverá ser formal e expressamente declarado o impedimento do Sr. na qualidade de Médico Veterinário Municipal no presente procedimento, nos termos do artigo 44º nº 1 alínea c) do CPA, entendendo assim a peticionante que o veterinário municipal por si ou como representante de outra pessoa tem interesse em questão semelhante à que deva ser decidida ….

II

  1. A administração pública, na sua quotidiana actividade, encontra-se adstrita à observação e cumprimento de um conjunto de princípios(4) – alguns deles com expressa consagração constitucional – à luz dos quais deve aferir permanentemente o seu comportamento e actuação.Para a análise da situação que ora há que fazer, cumpre avocar, desde já, de entre eles, o princípio da imparcialidade.
  2. À luz deste princípio, poder-se-á considerar que a actividade administrativa será imparcial sempre que as decisões respectivas sejam determinadas exclusivamente com base em critério próprios, adequados ao cumprimento das suas funções específicas, no quando da actividade geral do Estado, e na exacta medida em que os critérios não sejam substituídos ou distorcidos por influência de interesses alheios à função, sejam estes interesses pessoais dos funcionário, interesses de indivíduos, de grupos sociais, de partidos políticos, ou mesmo interesses políticos concretos do Governo(5).
    1. Vem este princípio legislativamente consagrado no artigo 6º do Código do Procedimento Administrativo. Aí se firma que no exercício da sua actividade, a administração pública deve tratar de forma justa e imparcial todos os que com ela entrem em relação.
    2. Segundo FREITAS DO AMARAL(6), a imparcialidade traduz, desde logo, a ideia de que os titulares de órgãos e os agentes da administração Pública estão impedidos de intervir em procedimentos, actos e contratos que digam respeito a questões do seu interesse pessoal ou da sua família, ou de pessoas que tenham relações económicas de especial proximidade, a fim de que não possa suspeitar-se da isenção ou rectidão da sua conduta.Este dever de não intervir em certos assuntos para não haver suspeita de parcialidade é depois aprofundado pela lei ordinária (cfr. CPA, artigos 44º a 51º), através da consagração de um regime de impedimentos e de suspeições.
    3. Pode assim dizer-se que, nesta vertente do princípio da imparcialidade, ele comporta três corolários(7):
      1. O de proibição de favoritismos ou perseguições;
      2. Proibição de decidir sobre assunto em que se seja interessado directo ou por representação de outrem ou em que estejam envolvidos interesses de cônjuges, parentes e afins;
      3. Proibição de participar em contratos em que se evolvam interesses seus, de parentes e afins ou de outras pessoas por si representadas.

Ou seja: com o princípio da imparcialidade visa-se salvaguardar a isenção dos funcionários, impondo-se um dever de abstenção do funcionário quando tenha um interesse pessoal na decisão ou relações particulares com algum dos interessados(8).

 

III

  1. Retornando agora ao caso em apreço, verifica-se que o veterinário municipal – cujo parecer negativo (não favorável) é vinculativo para a autarquia, na medida em que conduz necessariamente a uma sua decisão negativa quanto ao pedido de concessão de licença de funcionamento da clínica veterinária da ora reclamante – exerce, também ele, actividade privada, em regime “liberal”, como médico veterinário.Tal facto, pelas próprias características da actividade em questão, tornam a clínica a licenciar uma potencial (ou antes, uma efectiva) concorrente da sua clínica – já que ambas actuarão no mesmo sector de actividade(9), disputando a mesma área de influência, designadamente geográfica ou territorial(10).
  2. Na verdade, e em abstracto, é evidente que a abertura de uma clínica médico-veterionária a escassas centenas de metros de uma outra, em zona onde não existe mais nenhuma outra, representa um potencial mas inequívoco acto de (livre) concorrência, pela disputa de mercado que necessariamente acarreta, tendo em vista a conquista de uma quota desse mercado à pré-instalada concorrente, que até então o detinha em situação de “monopólio”.
    Ora não se pode dizer, mesmo em abstracto, que num caso como o descrito seja indiferente, em termos económicos, a existência de uma única ou de duas clínicas veterinárias.Na verdade, numa situação em que ambos os prestadores de serviço irão actuar no (e disputar o) mesmo segmento de mercado, não é possível afirmar ex ante que o segundo deles, ao iniciar a actividade, não poderá causar, ainda que potencialmente, mesmo que de forma involuntária, o “desvio” de clientes do primeiro, “capturando-os”, e assim “fazendo-lhe concorrência” – estando-se como se está num sector de actividade liberal e num sistema de mercado livre e concorrencial.
  3. Quer isto dizer que o facto do veterinário municipal exercer também actividade privada e na forma atrás descrita – como veterinário numa clínica de que é também proprietário e gerente, situada na mesma “área de influência” da clínica a licenciar – não o coloca numa posição de “terceiro imparcial”, ou seja numa posição fora e acima das partes (super partes)(11), já que, em abstracto, é titular de um manifesto interesse, claramente conflituante ou, no mínimo, concorrente com o da peticionária, ora reclamante.
  4. Terá sido por esta ordem de razões objectivas(12) – que são, para o caso, as que bastam – que a peticionária da licença tenha agora vindo sustentar que o medico municipal se encontra impedido de emitir o citado parecer do artigo 24º do Decreto-Lei nº 370/99, invocando para o efeito o motivo contido na alínea c) do nº 1 do artigo 44 do CPA: ter interesse em questão semelhante à que deva ser decidida.
  5. Pode-se, desde já, afirmar que não parece restarem dúvidas de que, no caso, se estará perante uma manifesta situação de impedimento.Porém, e ao contrário do que sustenta a peticionante, o medico veterinário municipal encontra-se impedido de intervir no procedimento administrativo tendo em vista o licenciamento em apreço, não por ter interesse em questão semelhante à que deva ser decidida, como se dispõe na invocada alínea c) do nº 1 do artigo 44º do CPA, mas antes porque nele tem interesse, por si, como representante ou como gestor de negócios de outra pessoa, nos termos da alínea a) do nº 1 do mesmo artigo.
    O interesse próprio, como médico veterinário com actividade privada – ou o interesse da sociedade por quotas detentora de uma clínica veterinária, da qual é proprietário e representante (por dela ser sócio-gerente) – impedem o médico veterinário municipal a, no concreto caso, ter intervenção no procedimento de licenciamento, já que por força dessa sua actividade privada ele, objectivamente, tem um interesse imediato no desfecho desse procedimento – ou seja, este não lhe é absolutamente indiferente.
  6. Estamos pois perante um caso em que se verifica um impedimento não porque o impedido tenha um interesse directo no conteúdo do procedimento e do acto em que ele culminar, mas porque, por força de uma actividade privada que desenvolve paralelamente e em acumulação com as funções públicas, passa a ter um manifesto interesse concorrencial no (sentido do) desfecho do procedimento licenciador.No âmbito da sua actividade privada, o facto da Câmara Municipal licenciar ou não licenciar mais um consultório veterinário não lhe é, objectiva e absolutamente, indiferente.
  7. É pois por força de um objectivo conflito de interesses resultante do exercício simultâneo e em acumulação de funções públicas e privadas na mesma área técnico-científica que resulta o impedimento na participação do médico veterinário municipal no licenciamento de um consultório veterinário que se encontra, objectivamente, em condições de concorrência com outro de sua propriedade.Estamos aqui perante a lição da palavra evangélica: ninguém pode servir a dois senhores, porque, ou há-de odiar um e amar o outro ou se dedicará a um e desprezará o outro(13).
  8. Tendo sido apresentado pela requerente da licença, ora reclamante, pedido de declaração de impedimento do veterinário municipal no respectivo procedimento administrativo, deve este, pelas razões de carácter eminentemente objectivo atrás referidas e tendo presente a sempre indispensável imparcialidade, transparência e objectividade da actuação da administração, ser atendido e, consequentemente, declarado, sendo o veterinário municipal substituído pelo respectivo substituto legal, nos termos da legislação aplicável, como se dispõe no artigos 45º e segs do CPA e no nº 5 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 116/98, de 5 de Maio.
  9. E, assim sendo, deverá ser o substituto legal a intervir no processo de licenciamento em questão, designadamente no que toca à emissão dos pareceres legalmente exigidos para o efeito – desconsiderando-se, assim, para todos os efeitos, qualquer intervenção ou acto que nele tenham sido realizado ou subscrito pelo médico veterinário impedido.

IV

  1. Pode pois concluir-se que, no caso em apreço, por força da acumulação de funções públicas e privadas, se verifica, nas concretas circunstâncias e por razões objectivas, uma causa de impedimento do médico veterinário municipal na intervenção em procedimento licenciador, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 44º do CPA.
  2. Que, por essa razão, deve ser declarado o impedimento referido, cabendo ao substituto legal do veterinário municipal tomar parte e intervir em todo o procedimento licenciador em apreço, designadamente no que toca à emissão dos pereceres legalmente exigidos.
  3. Que todos os actos praticados pelo impedido – designadamente o parecer desfavorável entretanto emitido – não devem ser tidos em conta e devem ser desconsiderados ou retirados do procedimento, sob pena de anulabilidade (artigo 51º do CPA).
  • (1) Em bom rigor, e segundo o que resulta dos documentos que acompanhavam o pedido de parecer, esta clínica teria iniciado a sua actividade e aberto ao público ainda mesmo antes de devidamente licenciada.
  • (2) Assim o prevê o anexo III à Portaria 33/2000, de 28 de Janeiro.
  • (3) Para MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito…, pag. 415, o parecer é relativamente vinculante quando só um dos seus sentidos possíveis obriga o órgão deliberativo, podendo, caso contrário, praticar o acto em desconformidade com o parecer.
  • (4) Sobre os princípios constitucionais que regem a actividade administrativa, vd. FREITAS DO AMARAL, Curso…, pag 31 e segs. e MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito…, pag 287 e segs.
  • (5) Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A imparcialidade da Administração como princípio constitucional, separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra (XLIX, 1974), 1975, pags. 10 e 11.
  • (6) FREITAS DO AMARAL, Curso…, pag 140.
  • (7) FREITAS DO AMARAL, A Evolução do Direito Administrativo, pag 11, apud SANTOS BOTELHO, PIRES ESTEVES, CÂNDIDO DE PINHO, Código do Procedimento Administrativo, anotado e comentado, 5ª edição, pag 96.
  • (8) Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A imparcialidade…, pag. 25.
    (9) Conforme resulta dos elementos que instruem o pedido de parecer, ambas as clínicas têm como objecto a prestação de cuidados médico – veterinários a pequenos animais e animais domésticos de companhia.
  • (10) Do que se pode extrair da documentação que acompanhava o pedido de parecer, não existirão, na área, outras clínicas veterinárias.
  • (11) Cfr. FREITAS DO AMARAL, Curso…, pag 139.
  • (12) Nem noutras nos podemos, para o efeito, fundamentar.
  • (13) Evangelho segundo S. Mateus, VI, 24.
 
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Médico Veterinário Municipal. Impedimento. Exercício de actividade privada.

Médico Veterinário Municipal. Impedimento. Exercício de actividade privada.

Solicita a, através da mensagem de serviço nº de 2006, a emissão de parecer sobre a seguinte questão que lhe foi apresentada pela Câmara Municipal
Foi remetido a esta um pedido de parecer sobre o impedimento legal do para se pronunciar sobre um processo de instalação e licenciamento de um estabelecimento de clínica médico-veterinária.

 

I

  1. A questão em apreço prende-se com a intervenção do médico veterinário municipal no processo de licenciamento de um espaço que se pretende utilizar(1) para o exercício da actividade clínica médico-veterinária, sendo que esse mesmo médico veterinário municipal exerce actividade privada como médico veterinário, designadamente, numa outra clínica médico-veterinária detida por uma sociedade da qual é sócio-gerente e detentor, com sua esposa, da totalidade do capital social. Acresce que esta clínica se situa a escassos 300 ou 400m do espaço que ora se pretende licenciar como clínica.
  2. No âmbito do processo de licenciamento de estabelecimento de prestação de serviços cujo funcionamento envolva riscos para as pessoas, previsto no Decreto-Lei nº 370/99, de 18 de Setembro, cabe ao médico veterinário municipal, quando estejam em causa, designadamente, clínicas veterinárias(2), dar parecer favorável á instalação de tais estabelecimentos, por se tratar da prestação de cuidados a animais (artigo 24º).
    1. No caso em apreço, foi no exercício desta competência que o médico veterinário municipal deu um parecer não favorável à peticionada instalação do consultório médico. Tratando-se de parecer “obrigatório” e “vinculativo”, ou mais propriamente “relativamente vinculante”(3), isso implica a impossibilidade de concessão da necessária licença pela Câmara Municipal.
  3. Ora perante o parecer desfavorável do médico municipal, o peticionante da licença para o dito consultório – ou, no caso, a peticionante – veio invocar impedimento do médico no procedimento em apreço, pelo facto deste também exercer clínica (actividade) privada numa clínica veterinária detida por uma sociedade de que é sócio, nos termos descritos em 1.

Assim sendo – invoca a peticionante – a abertura e funcionamento da sua clínica irá concorrer e disputar a clientela com a clínica do médico veterinário municipal, o que dá origem à existência de um interesse pessoal da parte deste no desfecho do licenciamento.

Por este facto, deverá ser formal e expressamente declarado o impedimento do Sr. na qualidade de Médico Veterinário Municipal no presente procedimento, nos termos do artigo 44º nº 1 alínea c) do CPA, entendendo assim a peticionante que o veterinário municipal por si ou como representante de outra pessoa tem interesse em questão semelhante à que deva ser decidida ….

II

  1. A administração pública, na sua quotidiana actividade, encontra-se adstrita à observação e cumprimento de um conjunto de princípios(4) – alguns deles com expressa consagração constitucional – à luz dos quais deve aferir permanentemente o seu comportamento e actuação.Para a análise da situação que ora há que fazer, cumpre avocar, desde já, de entre eles, o princípio da imparcialidade.
  2. À luz deste princípio, poder-se-á considerar que a actividade administrativa será imparcial sempre que as decisões respectivas sejam determinadas exclusivamente com base em critério próprios, adequados ao cumprimento das suas funções específicas, no quando da actividade geral do Estado, e na exacta medida em que os critérios não sejam substituídos ou distorcidos por influência de interesses alheios à função, sejam estes interesses pessoais dos funcionário, interesses de indivíduos, de grupos sociais, de partidos políticos, ou mesmo interesses políticos concretos do Governo(5).
    1. Vem este princípio legislativamente consagrado no artigo 6º do Código do Procedimento Administrativo. Aí se firma que no exercício da sua actividade, a administração pública deve tratar de forma justa e imparcial todos os que com ela entrem em relação.
    2. Segundo FREITAS DO AMARAL(6), a imparcialidade traduz, desde logo, a ideia de que os titulares de órgãos e os agentes da administração Pública estão impedidos de intervir em procedimentos, actos e contratos que digam respeito a questões do seu interesse pessoal ou da sua família, ou de pessoas que tenham relações económicas de especial proximidade, a fim de que não possa suspeitar-se da isenção ou rectidão da sua conduta.Este dever de não intervir em certos assuntos para não haver suspeita de parcialidade é depois aprofundado pela lei ordinária (cfr. CPA, artigos 44º a 51º), através da consagração de um regime de impedimentos e de suspeições.
    3. Pode assim dizer-se que, nesta vertente do princípio da imparcialidade, ele comporta três corolários(7):
      1. O de proibição de favoritismos ou perseguições;
      2. Proibição de decidir sobre assunto em que se seja interessado directo ou por representação de outrem ou em que estejam envolvidos interesses de cônjuges, parentes e afins;
      3. Proibição de participar em contratos em que se evolvam interesses seus, de parentes e afins ou de outras pessoas por si representadas.

Ou seja: com o princípio da imparcialidade visa-se salvaguardar a isenção dos funcionários, impondo-se um dever de abstenção do funcionário quando tenha um interesse pessoal na decisão ou relações particulares com algum dos interessados(8).

 

III

  1. Retornando agora ao caso em apreço, verifica-se que o veterinário municipal – cujo parecer negativo (não favorável) é vinculativo para a autarquia, na medida em que conduz necessariamente a uma sua decisão negativa quanto ao pedido de concessão de licença de funcionamento da clínica veterinária da ora reclamante – exerce, também ele, actividade privada, em regime “liberal”, como médico veterinário.Tal facto, pelas próprias características da actividade em questão, tornam a clínica a licenciar uma potencial (ou antes, uma efectiva) concorrente da sua clínica – já que ambas actuarão no mesmo sector de actividade(9), disputando a mesma área de influência, designadamente geográfica ou territorial(10).
  2. Na verdade, e em abstracto, é evidente que a abertura de uma clínica médico-veterionária a escassas centenas de metros de uma outra, em zona onde não existe mais nenhuma outra, representa um potencial mas inequívoco acto de (livre) concorrência, pela disputa de mercado que necessariamente acarreta, tendo em vista a conquista de uma quota desse mercado à pré-instalada concorrente, que até então o detinha em situação de “monopólio”.
    Ora não se pode dizer, mesmo em abstracto, que num caso como o descrito seja indiferente, em termos económicos, a existência de uma única ou de duas clínicas veterinárias.Na verdade, numa situação em que ambos os prestadores de serviço irão actuar no (e disputar o) mesmo segmento de mercado, não é possível afirmar ex ante que o segundo deles, ao iniciar a actividade, não poderá causar, ainda que potencialmente, mesmo que de forma involuntária, o “desvio” de clientes do primeiro, “capturando-os”, e assim “fazendo-lhe concorrência” – estando-se como se está num sector de actividade liberal e num sistema de mercado livre e concorrencial.
  3. Quer isto dizer que o facto do veterinário municipal exercer também actividade privada e na forma atrás descrita – como veterinário numa clínica de que é também proprietário e gerente, situada na mesma “área de influência” da clínica a licenciar – não o coloca numa posição de “terceiro imparcial”, ou seja numa posição fora e acima das partes (super partes)(11), já que, em abstracto, é titular de um manifesto interesse, claramente conflituante ou, no mínimo, concorrente com o da peticionária, ora reclamante.
  4. Terá sido por esta ordem de razões objectivas(12) – que são, para o caso, as que bastam – que a peticionária da licença tenha agora vindo sustentar que o medico municipal se encontra impedido de emitir o citado parecer do artigo 24º do Decreto-Lei nº 370/99, invocando para o efeito o motivo contido na alínea c) do nº 1 do artigo 44 do CPA: ter interesse em questão semelhante à que deva ser decidida.
  5. Pode-se, desde já, afirmar que não parece restarem dúvidas de que, no caso, se estará perante uma manifesta situação de impedimento.Porém, e ao contrário do que sustenta a peticionante, o medico veterinário municipal encontra-se impedido de intervir no procedimento administrativo tendo em vista o licenciamento em apreço, não por ter interesse em questão semelhante à que deva ser decidida, como se dispõe na invocada alínea c) do nº 1 do artigo 44º do CPA, mas antes porque nele tem interesse, por si, como representante ou como gestor de negócios de outra pessoa, nos termos da alínea a) do nº 1 do mesmo artigo.
    O interesse próprio, como médico veterinário com actividade privada – ou o interesse da sociedade por quotas detentora de uma clínica veterinária, da qual é proprietário e representante (por dela ser sócio-gerente) – impedem o médico veterinário municipal a, no concreto caso, ter intervenção no procedimento de licenciamento, já que por força dessa sua actividade privada ele, objectivamente, tem um interesse imediato no desfecho desse procedimento – ou seja, este não lhe é absolutamente indiferente.
  6. Estamos pois perante um caso em que se verifica um impedimento não porque o impedido tenha um interesse directo no conteúdo do procedimento e do acto em que ele culminar, mas porque, por força de uma actividade privada que desenvolve paralelamente e em acumulação com as funções públicas, passa a ter um manifesto interesse concorrencial no (sentido do) desfecho do procedimento licenciador.No âmbito da sua actividade privada, o facto da Câmara Municipal licenciar ou não licenciar mais um consultório veterinário não lhe é, objectiva e absolutamente, indiferente.
  7. É pois por força de um objectivo conflito de interesses resultante do exercício simultâneo e em acumulação de funções públicas e privadas na mesma área técnico-científica que resulta o impedimento na participação do médico veterinário municipal no licenciamento de um consultório veterinário que se encontra, objectivamente, em condições de concorrência com outro de sua propriedade.Estamos aqui perante a lição da palavra evangélica: ninguém pode servir a dois senhores, porque, ou há-de odiar um e amar o outro ou se dedicará a um e desprezará o outro(13).
  8. Tendo sido apresentado pela requerente da licença, ora reclamante, pedido de declaração de impedimento do veterinário municipal no respectivo procedimento administrativo, deve este, pelas razões de carácter eminentemente objectivo atrás referidas e tendo presente a sempre indispensável imparcialidade, transparência e objectividade da actuação da administração, ser atendido e, consequentemente, declarado, sendo o veterinário municipal substituído pelo respectivo substituto legal, nos termos da legislação aplicável, como se dispõe no artigos 45º e segs do CPA e no nº 5 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 116/98, de 5 de Maio.
  9. E, assim sendo, deverá ser o substituto legal a intervir no processo de licenciamento em questão, designadamente no que toca à emissão dos pareceres legalmente exigidos para o efeito – desconsiderando-se, assim, para todos os efeitos, qualquer intervenção ou acto que nele tenham sido realizado ou subscrito pelo médico veterinário impedido.

IV

  1. Pode pois concluir-se que, no caso em apreço, por força da acumulação de funções públicas e privadas, se verifica, nas concretas circunstâncias e por razões objectivas, uma causa de impedimento do médico veterinário municipal na intervenção em procedimento licenciador, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 44º do CPA.
  2. Que, por essa razão, deve ser declarado o impedimento referido, cabendo ao substituto legal do veterinário municipal tomar parte e intervir em todo o procedimento licenciador em apreço, designadamente no que toca à emissão dos pereceres legalmente exigidos.
  3. Que todos os actos praticados pelo impedido – designadamente o parecer desfavorável entretanto emitido – não devem ser tidos em conta e devem ser desconsiderados ou retirados do procedimento, sob pena de anulabilidade (artigo 51º do CPA).
  • (1) Em bom rigor, e segundo o que resulta dos documentos que acompanhavam o pedido de parecer, esta clínica teria iniciado a sua actividade e aberto ao público ainda mesmo antes de devidamente licenciada.
  • (2) Assim o prevê o anexo III à Portaria 33/2000, de 28 de Janeiro.
  • (3) Para MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito…, pag. 415, o parecer é relativamente vinculante quando só um dos seus sentidos possíveis obriga o órgão deliberativo, podendo, caso contrário, praticar o acto em desconformidade com o parecer.
  • (4) Sobre os princípios constitucionais que regem a actividade administrativa, vd. FREITAS DO AMARAL, Curso…, pag 31 e segs. e MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito…, pag 287 e segs.
  • (5) Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A imparcialidade da Administração como princípio constitucional, separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra (XLIX, 1974), 1975, pags. 10 e 11.
  • (6) FREITAS DO AMARAL, Curso…, pag 140.
  • (7) FREITAS DO AMARAL, A Evolução do Direito Administrativo, pag 11, apud SANTOS BOTELHO, PIRES ESTEVES, CÂNDIDO DE PINHO, Código do Procedimento Administrativo, anotado e comentado, 5ª edição, pag 96.
  • (8) Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A imparcialidade…, pag. 25.
    (9) Conforme resulta dos elementos que instruem o pedido de parecer, ambas as clínicas têm como objecto a prestação de cuidados médico – veterinários a pequenos animais e animais domésticos de companhia.
  • (10) Do que se pode extrair da documentação que acompanhava o pedido de parecer, não existirão, na área, outras clínicas veterinárias.
  • (11) Cfr. FREITAS DO AMARAL, Curso…, pag 139.
  • (12) Nem noutras nos podemos, para o efeito, fundamentar.
  • (13) Evangelho segundo S. Mateus, VI, 24.