Natureza jurídica de um caminho.
Pelo ofício n.º …, de … a Câmara Municipal de … solicita um parecer jurídico sobre o seguinte:
▪ Uma munícipe exigiu que a autarquia propusesse uma acção judicial para a desobstrução de um caminho que, segundo a peticionante, é público.
▪ O referido caminho, que se encontra tapado há sensivelmente dez anos, foi aberto por um particular (em substituição de um outro), tem uma largura de 2m e ligava o caminho municipal n.º1272 a outro caminho rural.
▪ A requerente alega que a câmara o considerou como público ao aprovar uma operação de destaque em terreno confinante com o caminho; que o mesmo sempre existiu, embora desviado por um particular; e que o dito particular tapou também o caminho que tinha aberto em substituição do primitivo.
▪ Na sequência de um parecer jurídico emitido por um advogado, a Câmara Municipal, em 1998, reconheceu o carácter público do caminho em questão.
▪ No ofício salienta-se ainda que tanto a câmara municipal como a junta de freguesia afirmam não o ter produzido nem sobre ele praticado actos de conservação ou gestão e que o mesmo não se encontra inscrito no cadastro dos caminhos municipais nem consta como público na Conservatória de Registo Predial, factos que, não obstante a deliberação tomada pela câmara, suscitam ainda dúvidas quanto à dominialidade do caminho.
Nesta conformidade formula as seguintes questões:
– Será válida a deliberação proferida em reunião de Câmara realizada em 1998, no sentido de reconhecer o carácter público do caminho B, com base num parecer jurídico?
– Padecerá tal deliberação de vício de usurpação de poderes?
– O caminho B pode ser considerado público?
– Qual a entidade com legitimidade para o reconhecer como público?
– Na hipótese de tal caminho ser público, pode esta câmara agir directamente, desobstruindo o referido caminho, sem recurso aos Tribunais?
Informamos:
1- Quanto à dominialidade dos caminhos municipais:
A lei ordinária, tendo em conta o artigo 84.º da Constituição pode, desde logo, definir os bens que integram o domínio público. Não sendo o bem classificado por lei como pertencente ao domínio público, importa averiguar se o mesmo está afectado à utilidade pública que consiste na aptidão para satisfazer necessidades colectivas, ou, segundo Marcello Caetano, se existe uma utilidade pública inerente ou natural.
Segundo o Ilustre Professor (in “Manual de Direito Administrativo”, vol 2º, 9ª ed, p. 921) a atribuição do carácter dominial depende de um, ou vários, dos seguinte requisitos:
a) existência de preceito legal que inclua toda uma classe de coisas na categoria de domínio público;
b) declaração de que certa e determinada coisa pertence a essa classe;
c) afectação dessa coisa à utilidade pública.
E continuando, “a afectação é o acto ou a prática que consagra a coisa á produção efectiva de utilidade pública”. A “enumeração legal compreende bens cuja utilidade pública se conhece através de índices, o índice mais evidente, cuja existência logo denota publicidade, é o uso directo e imediato do público. Só quando exista este índice evidente é que a lei permite que o intérprete considere públicas coisas não enumeradas categoricamente por disposição legal”. “Há uso directo quando cada indivíduo pode tirar proveito pessoal de tal coisa pública e o uso imediato faz-se quando os indivíduos se aproveitam dos bens sem intermédio dos agentes de um serviço público”.
A nossa jurisprudência, na ausência de classificação legal, tem sido, com frequência, chamada a pronunciar-se sobre o carácter dominial de certos bens, principalmente os caminhos.
No quadro da divergência jurisprudencial sobre o conceito de caminho público – uma no sentido de o ser sempre que estivesse no uso directo e imediato do público e a outra no sentido de também se exigir para o efeito que tenha sido administrado pelo Estado ou por outra pessoa de direito público e se encontrasse sob sua jurisdição, foi proferido pelo Pleno do STJ o Assento de 19-04-1989 (DR, IS, de 2-6-89, agora com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência), onde se decidiu que:
“ quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente.
É suficiente, para que uma coisa seja pública, o seu uso directo e imediato pelo público, não sendo necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa colectiva de direito público.
Assim, um caminho é público desde que seja utilizado livremente por todas as pessoas, sendo irrelevante a qualidade da pessoa que o construiu e prove a sua manutenção.” (sublinhado nosso)
Acrescenta-se ainda que tal entendimento é o que melhor se adapta às realidades da vida visto ser com frequência impossível encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição ou mesmo da administração e conservação dos caminhos, obstando-se assim à apropriação por particulares de coisas públicas, com sobreposição do interesse público por interesses privados.
Contudo os nossos tribunais superiores, em acórdãos subsequentes, têm vindo a fazer uma interpretação restritiva deste Acórdão no sentido de que a publicidade dos caminhos também depender da sua afectação a utilidade pública,1 ou seja, que a sua utilização tenha por objectivo a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância sob pena de, atendendo-se apenas ao uso directo e imediato pelo público, mesmo que imemorial, se manterem como públicos inúmeros atravessadouros.
Daí que, entre outros, o Acórdão do STJ de 10-11-93, tenha concluído que: “!- O Assento de 19 de Abril de 1989 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir a sua afectação à utilidade pública ou seja, à satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância; II- Quando assim não aconteça, e se destinem apenas a fazer a ligação entre os caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância, os caminhos devem classificar-se de atravessadouros, figura esta que não foi excluída por aquele assento e que está prevista no artigo 1383.º do Código Civil”.
Já antes o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-12-99 havia dito que:
“I-A doutrina do assento do STJ de 19 de Abril de 1989, segundo o qual “são públicos os caminhos que desde tempos imemoriais estão no uso directo e imediato do público” tem de ser interpretada restritivamente, sob pena de terem de se considerar todos os atravessadouros com posse imemorial como caminhos públicos.
II-O assento citado tem de ser interpretado no sentido de que não pode aceitar-se a sua aplicação àqueles caminhos que não apresentem algum dos requisitos de dominialidade e que, segundo Marcello Caetano são:
a) existência de preceito legal que inclua toda uma classe de coisas na categoria de domínio público;
b) declaração de que certa e determinada coisa pertence a essa classe;
c) afectação dessa coisa à utilidade pública.
III- A afectação de uma coisa á utilidade pública tem como um dos pressupostos a satisfação de relevantes interesses colectivos.
IV- Não se vendo especial ou considerável relevância de certo caminho para a realização de interesses colectivos, não deve ser qualificada a utilidade proporcionada pelo dito caminho como de verdadeira utilidade pública, devendo o caminho ser qualificado como atravessadouro.
V- Qualificado um caminho como atravessadouro, o respectivo leito integra-se no prédio que atravessa, podendo o seu dono usar dos poderes que lhe confere o direito de propriedade, designadamente o da sua destruição, alteração ou mudança, bem como o de impedir que terceiros o utilizem, a menos que o mesmo se mostre estabelecido em favor de prédios determinados, constituindo servidão, ou então quando, havendo posse imemorial, o mesmo se dirija a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não houver vias públicas destinadas a utilização ou aproveitamento de uma ou outra.”
Temos pois que, no essencial, são dois os requisitos da dominialidade pública, por presunção, de um caminho de mero interesse local, em face dos quais a Câmara municipal poderá determinar a natureza do caminho em causa:
– por um lado o uso directo e imediato pelo público (na satisfação de interesses colectivos relevantes e não constituindo eles meros atalhos ou veredas para encurtar distâncias entre caminhos o que sucede com frequência nos meios rurais através de passagem tolerada sobre prédios particulares desprovidos de vedação) e por outro, a sua utilização por tempo imemorial, ou seja, cujo início é tão antigo que as pessoas perderam a recordação da sua origem pelo recurso à sua memória ou à dos seus antecessores.
2- Quanto à questão de saber qual a entidade com legitimidade para reconhecer o caminho como público e sobre a validade deliberação da Câmara nesse sentido, nomeadamente se padece do vício de usurpação de poderes, cumpre-nos tecer as seguintes considerações:
Estamos perante um vício de usurpação de poder sempre que a Administração, através de um acto administrativo, decida em matérias reservadas aos tribunais ou ao legislador, sendo portanto um vício por incompetência agravada que a lei comina expressamente com a sanção da nulidade (artigo 133.º, n.º2, alínea a) do Código do procedimento Administrativo).
A separação real entre função jurisdicional e a função administrativa passa pelo campo dos interesses em jogo e da finalidade prosseguida: enquanto a jurisdição resolve litígios em que os interesses em confronto são apenas os das partes, a Administração, embora na presença de interesses alheios realiza o interesse público (Acórdão 280/99 de 9/3/99, do Tribunal Constitucional). Este mesmo critério tem sido seguido pelo STA ao decidir que “haverá acto jurisdicional, quando a sua prática se destina a realizar o próprio interesse público da composição de conflito de interesses (entre particulares, entre estes e interesses públicos, ou entre estes, quando verificados entre entes públicos diferentes), tendo pois, como fim específico a realização do direito ou da justiça; há acto administrativo, quando a composição de interesses em causa tem por finalidade a realização de qualquer outro interesse público que ao ente público compete levar a cabo, representando aquela composição, por conseguinte, um simples meio ou instrumento desse outro interesse” (Acórdão do STA de 16-6-92), ou dito de outro modo “se a actividade se esgota na resolução de um litígio, dirimindo o conflito subjacente, insere-se na função jurisdicional; se a actividade, ainda que potencialmente jurisdicional, é meramente instrumental da prossecução de outra finalidade posta a cargo e da Administração, insere-se na função Administrativa” (Ac. STA de 3-6-2003).
No caso concreto, e tendo presente que o que qualifica um caminho como público é o seu uso directo e imediato pelo público em geral, desde tempos imemoriais, para a satisfação de interesses relevantes, sendo desnecessária a intervenção dos órgãos administrativos para tal qualificação, só perante os elementos do processo, a fundamentação do acto e as circunstâncias que rodearam a sua prática, se poderá concluir se ao deliberar da forma como o fez a Câmara municipal visou decidir sobre a natureza do caminho, dirimindo um conflito entre particulares para alcançar a chamada “paz jurídica”, ou apenas produzir um acto de mera classificação verificativa, limitando-se a declarar uma situação de dominialidade pré-existente, face à existência do pressupostos que indicámos em 1.
No primeiro caso, terá invadido a esfera de atribuições do poder judicial, se o fim específico da deliberação foi o de compor (numa posição de neutralidade) um conflito de interesses privados igualitários associado ao carácter público ou privado do caminho – matéria essa reservada aos Tribunais. No segundo, contem-se na função administrativa a actuação da Câmara que apenas visou prosseguir o interesse público, (agindo como interessada), ao exercer uma competência própria associada à gestão do seu domínio público de circulação e que lhe confere o poder de declarar sob sua jurisdição os caminhos públicos. Isto não inviabiliza, mesmo neste caso, que tal acto certificativo não possa vir a ser declarado ilegal pelos tribunais, agora por erro nos pressupostos de facto, se, não obstante a convicção de que o caminho era público, essa natureza viesse a ser contestada perante os tribunais.
È que “a atribuição da dominialidade a um caminho, por parte de uma câmara municipal, traduz-se num acto que não é vinculativo para os particulares, nem para os tribunais, mera designação de uma realidade que aquela autarquia não pode definir juridicamente declarando o Direito da situação em concreto, e muito menos com força de caso julgado, cuja competência, nem sequer aos Tribunais Administrativos cabe” (Acórdão da Relação Coimbra, de 26-2-2002), mas aos Tribunais Judiciais.
Por último, e quanto à questão de saber se, sendo o caminho público, pode a Câmara Municipal desobstruí-lo sem recurso aos tribunais a resposta só pode ser afirmativa na medida em que corporiza o exercício dos poderes de defesa e gestão de um bem sob sua jurisdição, competindo-lhe pois, enquanto autoridade administradora, defendê-lo contra actos que o ofendam ou perturbem.
A Chefe de Divisão de Apoio Jurídico
Maria Margarida Teixeira Bento
1. Acórdão do TRL de 1-2-2007.
Natureza jurídica de um caminho.
Natureza jurídica de um caminho.
Pelo ofício n.º …, de … a Câmara Municipal de … solicita um parecer jurídico sobre o seguinte:
▪ Uma munícipe exigiu que a autarquia propusesse uma acção judicial para a desobstrução de um caminho que, segundo a peticionante, é público.
▪ O referido caminho, que se encontra tapado há sensivelmente dez anos, foi aberto por um particular (em substituição de um outro), tem uma largura de 2m e ligava o caminho municipal n.º1272 a outro caminho rural.
▪ A requerente alega que a câmara o considerou como público ao aprovar uma operação de destaque em terreno confinante com o caminho; que o mesmo sempre existiu, embora desviado por um particular; e que o dito particular tapou também o caminho que tinha aberto em substituição do primitivo.
▪ Na sequência de um parecer jurídico emitido por um advogado, a Câmara Municipal, em 1998, reconheceu o carácter público do caminho em questão.
▪ No ofício salienta-se ainda que tanto a câmara municipal como a junta de freguesia afirmam não o ter produzido nem sobre ele praticado actos de conservação ou gestão e que o mesmo não se encontra inscrito no cadastro dos caminhos municipais nem consta como público na Conservatória de Registo Predial, factos que, não obstante a deliberação tomada pela câmara, suscitam ainda dúvidas quanto à dominialidade do caminho.
Nesta conformidade formula as seguintes questões:
– Será válida a deliberação proferida em reunião de Câmara realizada em 1998, no sentido de reconhecer o carácter público do caminho B, com base num parecer jurídico?
– Padecerá tal deliberação de vício de usurpação de poderes?
– O caminho B pode ser considerado público?
– Qual a entidade com legitimidade para o reconhecer como público?
– Na hipótese de tal caminho ser público, pode esta câmara agir directamente, desobstruindo o referido caminho, sem recurso aos Tribunais?
Informamos:
1- Quanto à dominialidade dos caminhos municipais:
A lei ordinária, tendo em conta o artigo 84.º da Constituição pode, desde logo, definir os bens que integram o domínio público. Não sendo o bem classificado por lei como pertencente ao domínio público, importa averiguar se o mesmo está afectado à utilidade pública que consiste na aptidão para satisfazer necessidades colectivas, ou, segundo Marcello Caetano, se existe uma utilidade pública inerente ou natural.
Segundo o Ilustre Professor (in “Manual de Direito Administrativo”, vol 2º, 9ª ed, p. 921) a atribuição do carácter dominial depende de um, ou vários, dos seguinte requisitos:
a) existência de preceito legal que inclua toda uma classe de coisas na categoria de domínio público;
b) declaração de que certa e determinada coisa pertence a essa classe;
c) afectação dessa coisa à utilidade pública.
E continuando, “a afectação é o acto ou a prática que consagra a coisa á produção efectiva de utilidade pública”. A “enumeração legal compreende bens cuja utilidade pública se conhece através de índices, o índice mais evidente, cuja existência logo denota publicidade, é o uso directo e imediato do público. Só quando exista este índice evidente é que a lei permite que o intérprete considere públicas coisas não enumeradas categoricamente por disposição legal”. “Há uso directo quando cada indivíduo pode tirar proveito pessoal de tal coisa pública e o uso imediato faz-se quando os indivíduos se aproveitam dos bens sem intermédio dos agentes de um serviço público”.
A nossa jurisprudência, na ausência de classificação legal, tem sido, com frequência, chamada a pronunciar-se sobre o carácter dominial de certos bens, principalmente os caminhos.
No quadro da divergência jurisprudencial sobre o conceito de caminho público – uma no sentido de o ser sempre que estivesse no uso directo e imediato do público e a outra no sentido de também se exigir para o efeito que tenha sido administrado pelo Estado ou por outra pessoa de direito público e se encontrasse sob sua jurisdição, foi proferido pelo Pleno do STJ o Assento de 19-04-1989 (DR, IS, de 2-6-89, agora com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência), onde se decidiu que:
“ quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente.
É suficiente, para que uma coisa seja pública, o seu uso directo e imediato pelo público, não sendo necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa colectiva de direito público.
Assim, um caminho é público desde que seja utilizado livremente por todas as pessoas, sendo irrelevante a qualidade da pessoa que o construiu e prove a sua manutenção.” (sublinhado nosso)
Acrescenta-se ainda que tal entendimento é o que melhor se adapta às realidades da vida visto ser com frequência impossível encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição ou mesmo da administração e conservação dos caminhos, obstando-se assim à apropriação por particulares de coisas públicas, com sobreposição do interesse público por interesses privados.
Contudo os nossos tribunais superiores, em acórdãos subsequentes, têm vindo a fazer uma interpretação restritiva deste Acórdão no sentido de que a publicidade dos caminhos também depender da sua afectação a utilidade pública,1 ou seja, que a sua utilização tenha por objectivo a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância sob pena de, atendendo-se apenas ao uso directo e imediato pelo público, mesmo que imemorial, se manterem como públicos inúmeros atravessadouros.
Daí que, entre outros, o Acórdão do STJ de 10-11-93, tenha concluído que: “!- O Assento de 19 de Abril de 1989 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir a sua afectação à utilidade pública ou seja, à satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância; II- Quando assim não aconteça, e se destinem apenas a fazer a ligação entre os caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância, os caminhos devem classificar-se de atravessadouros, figura esta que não foi excluída por aquele assento e que está prevista no artigo 1383.º do Código Civil”.
Já antes o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-12-99 havia dito que:
“I-A doutrina do assento do STJ de 19 de Abril de 1989, segundo o qual “são públicos os caminhos que desde tempos imemoriais estão no uso directo e imediato do público” tem de ser interpretada restritivamente, sob pena de terem de se considerar todos os atravessadouros com posse imemorial como caminhos públicos.
II-O assento citado tem de ser interpretado no sentido de que não pode aceitar-se a sua aplicação àqueles caminhos que não apresentem algum dos requisitos de dominialidade e que, segundo Marcello Caetano são:
a) existência de preceito legal que inclua toda uma classe de coisas na categoria de domínio público;
b) declaração de que certa e determinada coisa pertence a essa classe;
c) afectação dessa coisa à utilidade pública.
III- A afectação de uma coisa á utilidade pública tem como um dos pressupostos a satisfação de relevantes interesses colectivos.
IV- Não se vendo especial ou considerável relevância de certo caminho para a realização de interesses colectivos, não deve ser qualificada a utilidade proporcionada pelo dito caminho como de verdadeira utilidade pública, devendo o caminho ser qualificado como atravessadouro.
V- Qualificado um caminho como atravessadouro, o respectivo leito integra-se no prédio que atravessa, podendo o seu dono usar dos poderes que lhe confere o direito de propriedade, designadamente o da sua destruição, alteração ou mudança, bem como o de impedir que terceiros o utilizem, a menos que o mesmo se mostre estabelecido em favor de prédios determinados, constituindo servidão, ou então quando, havendo posse imemorial, o mesmo se dirija a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não houver vias públicas destinadas a utilização ou aproveitamento de uma ou outra.”
Temos pois que, no essencial, são dois os requisitos da dominialidade pública, por presunção, de um caminho de mero interesse local, em face dos quais a Câmara municipal poderá determinar a natureza do caminho em causa:
– por um lado o uso directo e imediato pelo público (na satisfação de interesses colectivos relevantes e não constituindo eles meros atalhos ou veredas para encurtar distâncias entre caminhos o que sucede com frequência nos meios rurais através de passagem tolerada sobre prédios particulares desprovidos de vedação) e por outro, a sua utilização por tempo imemorial, ou seja, cujo início é tão antigo que as pessoas perderam a recordação da sua origem pelo recurso à sua memória ou à dos seus antecessores.
2- Quanto à questão de saber qual a entidade com legitimidade para reconhecer o caminho como público e sobre a validade deliberação da Câmara nesse sentido, nomeadamente se padece do vício de usurpação de poderes, cumpre-nos tecer as seguintes considerações:
Estamos perante um vício de usurpação de poder sempre que a Administração, através de um acto administrativo, decida em matérias reservadas aos tribunais ou ao legislador, sendo portanto um vício por incompetência agravada que a lei comina expressamente com a sanção da nulidade (artigo 133.º, n.º2, alínea a) do Código do procedimento Administrativo).
A separação real entre função jurisdicional e a função administrativa passa pelo campo dos interesses em jogo e da finalidade prosseguida: enquanto a jurisdição resolve litígios em que os interesses em confronto são apenas os das partes, a Administração, embora na presença de interesses alheios realiza o interesse público (Acórdão 280/99 de 9/3/99, do Tribunal Constitucional). Este mesmo critério tem sido seguido pelo STA ao decidir que “haverá acto jurisdicional, quando a sua prática se destina a realizar o próprio interesse público da composição de conflito de interesses (entre particulares, entre estes e interesses públicos, ou entre estes, quando verificados entre entes públicos diferentes), tendo pois, como fim específico a realização do direito ou da justiça; há acto administrativo, quando a composição de interesses em causa tem por finalidade a realização de qualquer outro interesse público que ao ente público compete levar a cabo, representando aquela composição, por conseguinte, um simples meio ou instrumento desse outro interesse” (Acórdão do STA de 16-6-92), ou dito de outro modo “se a actividade se esgota na resolução de um litígio, dirimindo o conflito subjacente, insere-se na função jurisdicional; se a actividade, ainda que potencialmente jurisdicional, é meramente instrumental da prossecução de outra finalidade posta a cargo e da Administração, insere-se na função Administrativa” (Ac. STA de 3-6-2003).
No caso concreto, e tendo presente que o que qualifica um caminho como público é o seu uso directo e imediato pelo público em geral, desde tempos imemoriais, para a satisfação de interesses relevantes, sendo desnecessária a intervenção dos órgãos administrativos para tal qualificação, só perante os elementos do processo, a fundamentação do acto e as circunstâncias que rodearam a sua prática, se poderá concluir se ao deliberar da forma como o fez a Câmara municipal visou decidir sobre a natureza do caminho, dirimindo um conflito entre particulares para alcançar a chamada “paz jurídica”, ou apenas produzir um acto de mera classificação verificativa, limitando-se a declarar uma situação de dominialidade pré-existente, face à existência do pressupostos que indicámos em 1.
No primeiro caso, terá invadido a esfera de atribuições do poder judicial, se o fim específico da deliberação foi o de compor (numa posição de neutralidade) um conflito de interesses privados igualitários associado ao carácter público ou privado do caminho – matéria essa reservada aos Tribunais. No segundo, contem-se na função administrativa a actuação da Câmara que apenas visou prosseguir o interesse público, (agindo como interessada), ao exercer uma competência própria associada à gestão do seu domínio público de circulação e que lhe confere o poder de declarar sob sua jurisdição os caminhos públicos. Isto não inviabiliza, mesmo neste caso, que tal acto certificativo não possa vir a ser declarado ilegal pelos tribunais, agora por erro nos pressupostos de facto, se, não obstante a convicção de que o caminho era público, essa natureza viesse a ser contestada perante os tribunais.
È que “a atribuição da dominialidade a um caminho, por parte de uma câmara municipal, traduz-se num acto que não é vinculativo para os particulares, nem para os tribunais, mera designação de uma realidade que aquela autarquia não pode definir juridicamente declarando o Direito da situação em concreto, e muito menos com força de caso julgado, cuja competência, nem sequer aos Tribunais Administrativos cabe” (Acórdão da Relação Coimbra, de 26-2-2002), mas aos Tribunais Judiciais.
Por último, e quanto à questão de saber se, sendo o caminho público, pode a Câmara Municipal desobstruí-lo sem recurso aos tribunais a resposta só pode ser afirmativa na medida em que corporiza o exercício dos poderes de defesa e gestão de um bem sob sua jurisdição, competindo-lhe pois, enquanto autoridade administradora, defendê-lo contra actos que o ofendam ou perturbem.
A Chefe de Divisão de Apoio Jurídico
Maria Margarida Teixeira Bento
1. Acórdão do TRL de 1-2-2007.
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