Urbanização e Edificação, Licenciamento de Obras, Falta de Parecer do IPPAR, Consequências.
A Câmara Municipal de …, pelo seu ofício n.º …, de …, solicitou a esta CCDR a emissão de parecer jurídico relativamente à legalidade de vários actos de licenciamento tendo por objecto a realização de obras em edificação localizada a menos de 50 metros de um imóvel classificado como monumento nacional, dúvida essa suscitada na sequência de um pedido de esclarecimento apresentado pelo IPPAR, relativamente a um pedido de alteração ao uso da mesma edificação.
Dando aqui por reproduzida a informação dos serviços municipais que condensa a evolução factual subjacente ao pedido de parecer, salienta-se que os actos de licenciamento para as obras de construção, alteração e ampliação, cuja legalidade se questiona, foram produzidos em 07-02-1980 (licenciamento inicial da construção), 29-08-1980 (construção de anexos e alteração ao uso do r/c para restauração), 22-11-1983 (construção de telheiro), 17-09-1985 (ampliação da habitação), 21-10-1987 (projecto de alterações).
Tendo em conta que a qualificação dos vícios do actos administrativo deverá ser efectuada à face da lei vigente no momento em que o acto foi praticado, como decorre do artigo 12.º do Código Civil, e referenciando-nos à tabela temporal acima indicada, a nossa primeira constatação é a de que todos os licenciamentos para a realização de obra ocorreram na vigência do DL 166/70, de 15 de Abril, e do RGEU, estabelecendo este último diploma, no seu artigo 123.º, que “Nas zonas de protecção dos monumentos nacionais e dos imóveis de interesse público não podem as câmaras autorizar qualquer obra de construção ou de alteração de construções existentes sem prévia aprovação do respectivo projecto pelo Ministro da Educação Nacional, obrigação essa decorrente do artigo 26.º do Decreto n.º 20 985, de 7 de Março de 1932 e, a partir de 1985, dos artigos 22.º e 23.º da Lei 13/85, de 6/7, que, neste particular, se limitou a manter o regime já estabelecido no artigo 26.º do dito Decreto 20 985, cuja redacção era a seguinte:
“ Os terrenos e edifícios do Estado, de corporações administrativas, ou pertencentes a particulares que distem menos de 50 metros de qualquer imóvel classificado como monumento nacional, não podem ser alienados sem parecer favorável do Conselho Superior de Belas-Artes, a quem compete informar sobre a conveniência de o Estado manter ou adquirir a posse dos mesmos ou consentir na alienação.
§1 Igual parecer é indispensável para se poder construir nos referidos terrenos ou proceder a quaisquer modificações em construções já ali existentes, bem como qualquer aplicação a dar-lhes, quer com carácter permanente, quer com carácter temporário ou provisório.
Não restam por isso dúvidas que os licenciamentos em causa, porque incidindo sobre terreno, e posteriormente sobre edifício, localizado em zona de protecção de imóvel classificado como monumento nacional, foram ilegais. A questão reside, agora, em determinar se a essa ilegalidade corresponde a sanção da nulidade ou se, ao invés, se trata de uma mera de anulabilidade, sanada já pelo decurso do prazo.
Ao tempo em que foram praticados os actos de licenciamento datados de 7/2/80 (licença de construção), 29/8/80 (construção de anexos e alteração ao uso para restauração) e 22/11/83 (construção do telheiro) o enquadramento geral da nulidade e da anulabilidade dos actos administrativos praticados pelas autarquias locais constavam, respectivamente, dos artigos 363.º e 364.º do Código Administrativo e de algumas leis especiais avulsas, leis essas que, refira-se, não incluíam a hipótese em análise.
Ora o artigo 363.º do Cód. Adm. estabelecia que eram “nulas e de nenhum efeito, independentemente da declaração pelos tribunais, unicamente as seguintes deliberações dos corpos administrativos:
1- Que forem estranhas às suas atribuições;
2- Que forem tomadas tumultuosamente ou com infracção do disposto nos artigos 334 e 347,
3- Que transgredirem disposições legais respeitantes ao lançamento de impostos;
4- Que prorrogarem os prazos de pagamento voluntário dos seus impostos, taxas ou multas e da remessa de autos ou certidões de relaxe para os tribunais;
5- Que carecerem absolutamente de forma legal;
6- Que nomearem funcionários sem concurso, nos casos em que a lei o exija, ou a quem faltem os requisitos da nacionalidade e da idade;
7- Que autorizem contratos de locação de serviços para cujo encargo não exista verba no orçamento em vigor;
8- Que forem tomadas ou executadas com violação das disposições legais que determinem a intervenção tutelar do Governo”1
À falta de norma que sancionasse o acto ilegal com a sanção da nulidade, restaria portanto a regra consagrada no artigo 364º do mesmo Código segundo a qual “são anuláveis pelos tribunais as deliberações …viciadas de incompetência, violação de lei, regulamento ou contrato.
Posteriormente, com a entrada em vigor do DL 100/84, de 29 de Março, a lista de vícios geradores de nulidade deste artigo 363º foi substituída pela do artigo 88º daquele Decreto-lei que, resumidamente, manteve as situações de nulidade previstas nos números 1 a 6 do artigo 363º do C. Adm., eliminando as previsões dos números 7 e 8.
Note-se que, com base neste n.º 8 do artigo 363º, (violação das disposições legais que determinem a intervenção tutelar do Governo), o STA, em Acórdão de 07-12-1993, concluiu pela nulidade de um licenciamento de obra em zona de protecção de imóvel classificado sem prévia aprovação do projecto pelo Ministro da Cultura com os argumentos constantes das conclusões que passamos a transcrever:
“…
III- As chamadas “Capelas…” foram classificadas como imóveis de interesse público… . Assim, de acordo com o artigo 123 do RGEU, aplicável ao tempo, haverá a necessidade da prévia aprovação, do Ministro da Cultura, para o projecto de obras de ampliação, reconstrução ou construção em edifício contíguo a uma delas, ouvido o IPPC..
IV- A deliberação da Câmara … que atenta contra o despacho ministerial que não aprovou tais obras, é nula, nos termos do n.º8 do artigo 363 do Cód. Administrativo, aplicável ao tempo.
V- A intervenção do IPPC e a aprovação do Ministro da Cultura visa apenas a conformação do projecto às linhas de política cultural com tarefa prioritária e inadiável, e da incumbência constitucional do Estado Português. Nada obsta, nem intervém com a competência das autarquias locais no respeitante a licenciamento de obras particulares. Assim, nada tem de inconstitucional, nem as normas que estatuem a intervenção do IPPC, nem o artigo 123º do RGEU.
VI- Do mesmo passo, não é inconstitucional o n.º8 do artigo 363 do C Adm., quando interpretado no sentido de uma intervenção do Governo no exercício da sua competência própria”.
Não é esta, contudo, a linha da nossa argumentação até porque a disposição em referência foi retirada da ordem jurídica com a entrada em vigor do DL 100/84.
A questão está, quanto a nós, em determinar se o licenciamento em zona de protecção de imóvel classificado como monumento nacional, apesar de não haver norma expressa que consagre a respectiva nulidade, pode ser considerado um acto nulo por constituir violação de um direito fundamental.
É que, já mesmo antes da entrada em vigor do CPA, aprovado pelo DL 422/91, de 15 de Novembro, que prevê no seu artigo 133, n.º2, alínea d) que “são actos nulos os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental”, a jurisprudência e a doutrina debatiam-se com o problema de saber se o princípio segundo o qual os vícios do acto determinam a mera anulabilidade, (só se verificando a respectiva nulidade nos casos expressamente previstos na lei) se mantinha como regra no nosso direito administrativo, na medida em que a ideia de que a nulidade só decorria nos casos expressamente previstos na lei resultava acentuada da redacção do supra mencionado artigo 363º dado que só seriam nulas “unicamente” as deliberações ali indicadas, taxatividade que só o artigo 88.º do DL 100/84, de 29 de Março, ao deixar cair o adverbio “unicamente”, teria arredado.
Porém defendia já a doutrina que a estas nulidades, previstas nestes normativos e noutras leis especiais, que constituiriam as nulidades por determinação da lei, juntar-se-iam as nulidades por natureza, consubstanciando casos em que por razões de lógica jurídica, o acto não podia deixar de ser nulo.
Nesse sentido propendia o Conselho Consultivo da PGR, designadamente no Parecer n.º 36/892, que, invocando a Doutrina de Freitas do Amaral e Marcelo Rebelo de Sousa, concluiu que, mesmo na falta de lei expressa, a violação do conteúdo essencial de um direito fundamental, ou seja, daquele mínimo sem o qual esse direito não pode subsistir, constitui nulidade.
Ora, de entre as “Tarefas Fundamentais do Estado” enunciadas no artigo 9.º da Constituição, a alínea e) inscreve a de “proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território”
No âmbito dos Direitos e Deveres Fundamentais, e em capítulo dedicado aos Direitos e Deveres Culturais, o artigo 78.º da CRP dispõe que “todos têm direito à fruição e criação culturais, bem como o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural, acrescentando o n.º2 que incumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais:
…c) Promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, tornando-o elemento vivificador da identidade cultural comum.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira3 (…), o direito à fruição cultural concretiza o direito à cultura e constitui um direito individual e colectivo, cujas principais dimensões são: “a) acesso a todos os bens, meios e instrumentos culturais e a todos os níveis; b) participação na cultura, possibilitando aos cidadãos e comunidades o direito de conformação do processo de produção cultural, como titulares de participação democrática activa (criação) e não meramente passiva (fruição); c) comparticipação na defesa e enriquecimento do património cultural comum”.
Ainda segundo os mesmos Autores, “o direito à fruição e criação cultural abrange seguramente a defesa do património cultural (n.º1, 2º parte, e nº2/c). Mas a constituição sublinha a importância deste, pois faz dele objecto de: a) um dever de todos de não atentar contra ele e de impedir a sua destruição (nº1, 2ª parte); b) uma obrigação do Estado de não o destruir e de o defender (n.º2/c); um direito de todos os cidadãos de o defender, impedindo a sua destruição (artigo 52.º-3)”.
E prosseguem, assinalando que “não deixa de ter significado o facto da protecção e valorização do património cultural constituir uma das tarefas fundamentais do Estado (art. 9º/e), certamente porque se trata de salvaguardar e valorizar os testemunhos da “identidade cultural comum (nº2/c), de enriquecer a herança cultural da colectividade em todos os seus aspectos (do património artístico ao etnográfico, dos documentos aos monumentos, dos objectos arqueológicos às zonas urbanas históricas, etc.) A obrigação constitucional de defesa – e o correspondente dever imposto aos cidadãos – pode legitimar limitações ao direito de utilização e disposição da propriedade privada de bens culturais ou de interesse cultural…, submetendo os respectivos bens, quando não sejam propriedade pública, a um regime especial de conservação, alienação e fruição.
O direito à fruição cultural está ainda incindivelmente conectado com o “Direito ao Ambiente e Qualidade de Vida” consagrado no artigo 66º de CRP na vertente da “…preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico – art. 66º/2/c) e na promoção da “qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e da protecção das zonas históricas” – art. 66º/2/e).
Para além do exposto, e em sede de conclusão, podemos sempre afirmar que o licenciamento de obras em zona de protecção de monumento nacional sem o necessário parecer prévio da entidade tutelar do património cultural ou contrariando parecer emitido é, sem dúvida, ofensivo do direito fundamental à fruição cultural e ao ambiente, este último na vertente da protecção das zonas históricas, ambos direitos fundamentais constitucionalmente protegidos, podendo, por isso, ser considerados actos nulos (mesmo que tal sanção não conste expressamente da lei) se afectarem o conteúdo essencial desses direitos, isto é, aquele mínimo sem o qual esses direitos não podem subsistir, tudo ponderado segundo as circunstâncias do caso concreto.
A Chefe de Divisão de Apoio Jurídico
Maria Margarida Teixeira Bento
1. Este número 8 foi acrescentado pelo Decreto-lei n.º 8/76, de 12 de Janeiro.
2. Publicado no DR, 2ª série, de 25 de Maio de 1990
3. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, pag. 377 e ss.
Urbanização e Edificação, Licenciamento de Obras, Falta de Parecer do IPPAR, Consequências.
Urbanização e Edificação, Licenciamento de Obras, Falta de Parecer do IPPAR, Consequências.
A Câmara Municipal de …, pelo seu ofício n.º …, de …, solicitou a esta CCDR a emissão de parecer jurídico relativamente à legalidade de vários actos de licenciamento tendo por objecto a realização de obras em edificação localizada a menos de 50 metros de um imóvel classificado como monumento nacional, dúvida essa suscitada na sequência de um pedido de esclarecimento apresentado pelo IPPAR, relativamente a um pedido de alteração ao uso da mesma edificação.
Dando aqui por reproduzida a informação dos serviços municipais que condensa a evolução factual subjacente ao pedido de parecer, salienta-se que os actos de licenciamento para as obras de construção, alteração e ampliação, cuja legalidade se questiona, foram produzidos em 07-02-1980 (licenciamento inicial da construção), 29-08-1980 (construção de anexos e alteração ao uso do r/c para restauração), 22-11-1983 (construção de telheiro), 17-09-1985 (ampliação da habitação), 21-10-1987 (projecto de alterações).
Tendo em conta que a qualificação dos vícios do actos administrativo deverá ser efectuada à face da lei vigente no momento em que o acto foi praticado, como decorre do artigo 12.º do Código Civil, e referenciando-nos à tabela temporal acima indicada, a nossa primeira constatação é a de que todos os licenciamentos para a realização de obra ocorreram na vigência do DL 166/70, de 15 de Abril, e do RGEU, estabelecendo este último diploma, no seu artigo 123.º, que “Nas zonas de protecção dos monumentos nacionais e dos imóveis de interesse público não podem as câmaras autorizar qualquer obra de construção ou de alteração de construções existentes sem prévia aprovação do respectivo projecto pelo Ministro da Educação Nacional, obrigação essa decorrente do artigo 26.º do Decreto n.º 20 985, de 7 de Março de 1932 e, a partir de 1985, dos artigos 22.º e 23.º da Lei 13/85, de 6/7, que, neste particular, se limitou a manter o regime já estabelecido no artigo 26.º do dito Decreto 20 985, cuja redacção era a seguinte:
“ Os terrenos e edifícios do Estado, de corporações administrativas, ou pertencentes a particulares que distem menos de 50 metros de qualquer imóvel classificado como monumento nacional, não podem ser alienados sem parecer favorável do Conselho Superior de Belas-Artes, a quem compete informar sobre a conveniência de o Estado manter ou adquirir a posse dos mesmos ou consentir na alienação.
§1 Igual parecer é indispensável para se poder construir nos referidos terrenos ou proceder a quaisquer modificações em construções já ali existentes, bem como qualquer aplicação a dar-lhes, quer com carácter permanente, quer com carácter temporário ou provisório.
Não restam por isso dúvidas que os licenciamentos em causa, porque incidindo sobre terreno, e posteriormente sobre edifício, localizado em zona de protecção de imóvel classificado como monumento nacional, foram ilegais. A questão reside, agora, em determinar se a essa ilegalidade corresponde a sanção da nulidade ou se, ao invés, se trata de uma mera de anulabilidade, sanada já pelo decurso do prazo.
Ao tempo em que foram praticados os actos de licenciamento datados de 7/2/80 (licença de construção), 29/8/80 (construção de anexos e alteração ao uso para restauração) e 22/11/83 (construção do telheiro) o enquadramento geral da nulidade e da anulabilidade dos actos administrativos praticados pelas autarquias locais constavam, respectivamente, dos artigos 363.º e 364.º do Código Administrativo e de algumas leis especiais avulsas, leis essas que, refira-se, não incluíam a hipótese em análise.
Ora o artigo 363.º do Cód. Adm. estabelecia que eram “nulas e de nenhum efeito, independentemente da declaração pelos tribunais, unicamente as seguintes deliberações dos corpos administrativos:
1- Que forem estranhas às suas atribuições;
2- Que forem tomadas tumultuosamente ou com infracção do disposto nos artigos 334 e 347,
3- Que transgredirem disposições legais respeitantes ao lançamento de impostos;
4- Que prorrogarem os prazos de pagamento voluntário dos seus impostos, taxas ou multas e da remessa de autos ou certidões de relaxe para os tribunais;
5- Que carecerem absolutamente de forma legal;
6- Que nomearem funcionários sem concurso, nos casos em que a lei o exija, ou a quem faltem os requisitos da nacionalidade e da idade;
7- Que autorizem contratos de locação de serviços para cujo encargo não exista verba no orçamento em vigor;
8- Que forem tomadas ou executadas com violação das disposições legais que determinem a intervenção tutelar do Governo”1
À falta de norma que sancionasse o acto ilegal com a sanção da nulidade, restaria portanto a regra consagrada no artigo 364º do mesmo Código segundo a qual “são anuláveis pelos tribunais as deliberações …viciadas de incompetência, violação de lei, regulamento ou contrato.
Posteriormente, com a entrada em vigor do DL 100/84, de 29 de Março, a lista de vícios geradores de nulidade deste artigo 363º foi substituída pela do artigo 88º daquele Decreto-lei que, resumidamente, manteve as situações de nulidade previstas nos números 1 a 6 do artigo 363º do C. Adm., eliminando as previsões dos números 7 e 8.
Note-se que, com base neste n.º 8 do artigo 363º, (violação das disposições legais que determinem a intervenção tutelar do Governo), o STA, em Acórdão de 07-12-1993, concluiu pela nulidade de um licenciamento de obra em zona de protecção de imóvel classificado sem prévia aprovação do projecto pelo Ministro da Cultura com os argumentos constantes das conclusões que passamos a transcrever:
“…
III- As chamadas “Capelas…” foram classificadas como imóveis de interesse público… . Assim, de acordo com o artigo 123 do RGEU, aplicável ao tempo, haverá a necessidade da prévia aprovação, do Ministro da Cultura, para o projecto de obras de ampliação, reconstrução ou construção em edifício contíguo a uma delas, ouvido o IPPC..
IV- A deliberação da Câmara … que atenta contra o despacho ministerial que não aprovou tais obras, é nula, nos termos do n.º8 do artigo 363 do Cód. Administrativo, aplicável ao tempo.
V- A intervenção do IPPC e a aprovação do Ministro da Cultura visa apenas a conformação do projecto às linhas de política cultural com tarefa prioritária e inadiável, e da incumbência constitucional do Estado Português. Nada obsta, nem intervém com a competência das autarquias locais no respeitante a licenciamento de obras particulares. Assim, nada tem de inconstitucional, nem as normas que estatuem a intervenção do IPPC, nem o artigo 123º do RGEU.
VI- Do mesmo passo, não é inconstitucional o n.º8 do artigo 363 do C Adm., quando interpretado no sentido de uma intervenção do Governo no exercício da sua competência própria”.
Não é esta, contudo, a linha da nossa argumentação até porque a disposição em referência foi retirada da ordem jurídica com a entrada em vigor do DL 100/84.
A questão está, quanto a nós, em determinar se o licenciamento em zona de protecção de imóvel classificado como monumento nacional, apesar de não haver norma expressa que consagre a respectiva nulidade, pode ser considerado um acto nulo por constituir violação de um direito fundamental.
É que, já mesmo antes da entrada em vigor do CPA, aprovado pelo DL 422/91, de 15 de Novembro, que prevê no seu artigo 133, n.º2, alínea d) que “são actos nulos os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental”, a jurisprudência e a doutrina debatiam-se com o problema de saber se o princípio segundo o qual os vícios do acto determinam a mera anulabilidade, (só se verificando a respectiva nulidade nos casos expressamente previstos na lei) se mantinha como regra no nosso direito administrativo, na medida em que a ideia de que a nulidade só decorria nos casos expressamente previstos na lei resultava acentuada da redacção do supra mencionado artigo 363º dado que só seriam nulas “unicamente” as deliberações ali indicadas, taxatividade que só o artigo 88.º do DL 100/84, de 29 de Março, ao deixar cair o adverbio “unicamente”, teria arredado.
Porém defendia já a doutrina que a estas nulidades, previstas nestes normativos e noutras leis especiais, que constituiriam as nulidades por determinação da lei, juntar-se-iam as nulidades por natureza, consubstanciando casos em que por razões de lógica jurídica, o acto não podia deixar de ser nulo.
Nesse sentido propendia o Conselho Consultivo da PGR, designadamente no Parecer n.º 36/892, que, invocando a Doutrina de Freitas do Amaral e Marcelo Rebelo de Sousa, concluiu que, mesmo na falta de lei expressa, a violação do conteúdo essencial de um direito fundamental, ou seja, daquele mínimo sem o qual esse direito não pode subsistir, constitui nulidade.
Ora, de entre as “Tarefas Fundamentais do Estado” enunciadas no artigo 9.º da Constituição, a alínea e) inscreve a de “proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território”
No âmbito dos Direitos e Deveres Fundamentais, e em capítulo dedicado aos Direitos e Deveres Culturais, o artigo 78.º da CRP dispõe que “todos têm direito à fruição e criação culturais, bem como o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural, acrescentando o n.º2 que incumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais:
…c) Promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, tornando-o elemento vivificador da identidade cultural comum.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira3 (…), o direito à fruição cultural concretiza o direito à cultura e constitui um direito individual e colectivo, cujas principais dimensões são: “a) acesso a todos os bens, meios e instrumentos culturais e a todos os níveis; b) participação na cultura, possibilitando aos cidadãos e comunidades o direito de conformação do processo de produção cultural, como titulares de participação democrática activa (criação) e não meramente passiva (fruição); c) comparticipação na defesa e enriquecimento do património cultural comum”.
Ainda segundo os mesmos Autores, “o direito à fruição e criação cultural abrange seguramente a defesa do património cultural (n.º1, 2º parte, e nº2/c). Mas a constituição sublinha a importância deste, pois faz dele objecto de: a) um dever de todos de não atentar contra ele e de impedir a sua destruição (nº1, 2ª parte); b) uma obrigação do Estado de não o destruir e de o defender (n.º2/c); um direito de todos os cidadãos de o defender, impedindo a sua destruição (artigo 52.º-3)”.
E prosseguem, assinalando que “não deixa de ter significado o facto da protecção e valorização do património cultural constituir uma das tarefas fundamentais do Estado (art. 9º/e), certamente porque se trata de salvaguardar e valorizar os testemunhos da “identidade cultural comum (nº2/c), de enriquecer a herança cultural da colectividade em todos os seus aspectos (do património artístico ao etnográfico, dos documentos aos monumentos, dos objectos arqueológicos às zonas urbanas históricas, etc.) A obrigação constitucional de defesa – e o correspondente dever imposto aos cidadãos – pode legitimar limitações ao direito de utilização e disposição da propriedade privada de bens culturais ou de interesse cultural…, submetendo os respectivos bens, quando não sejam propriedade pública, a um regime especial de conservação, alienação e fruição.
O direito à fruição cultural está ainda incindivelmente conectado com o “Direito ao Ambiente e Qualidade de Vida” consagrado no artigo 66º de CRP na vertente da “…preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico – art. 66º/2/c) e na promoção da “qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e da protecção das zonas históricas” – art. 66º/2/e).
Para além do exposto, e em sede de conclusão, podemos sempre afirmar que o licenciamento de obras em zona de protecção de monumento nacional sem o necessário parecer prévio da entidade tutelar do património cultural ou contrariando parecer emitido é, sem dúvida, ofensivo do direito fundamental à fruição cultural e ao ambiente, este último na vertente da protecção das zonas históricas, ambos direitos fundamentais constitucionalmente protegidos, podendo, por isso, ser considerados actos nulos (mesmo que tal sanção não conste expressamente da lei) se afectarem o conteúdo essencial desses direitos, isto é, aquele mínimo sem o qual esses direitos não podem subsistir, tudo ponderado segundo as circunstâncias do caso concreto.
A Chefe de Divisão de Apoio Jurídico
Maria Margarida Teixeira Bento
1. Este número 8 foi acrescentado pelo Decreto-lei n.º 8/76, de 12 de Janeiro.
2. Publicado no DR, 2ª série, de 25 de Maio de 1990
3. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, pag. 377 e ss.
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