“Casa Pronta”; direito de preferência legal.

 

Solicita a Vice-Presidente da Câmara Municipal de …, por seu ofício de …, referência n.º … Proc. …, a emissão de

(…) parecer sobre o direito de preferência legal nos termos do procedimento "Casa Pronta", [para o que] junto envio a V. Exa, fotocópia da informação interna n.° 4881 de 4 de julho de 2016 (…).

Na referida informação explana-se assim a dúvida que ora se visa esclarecer:

Foram levantadas algumas dúvidas aos Serviços, relativas ao procedimento de direito de preferência no âmbito do procedimento da CASAPRONTA, para efeitos do disposto no D.L. 263-A/2007 de 23/07 na atual redação do D.L. 125/2013 de 30/08, no âmbito da intenção de exercer ou não o direito legal de preferência, nos termos da Portaria n.° 794-B/2007 de 23/07.

Questionam se o Município não terá de se pronunciar relativo ao direito de preferência de qualquer transação, no âmbito da CASAPRONTA, independentemente dos normativos legais que atribuem direitos legais de preferência (…).

Nela se refere mais ainda que o pedido de parecer visa

(…) elucidar estes Serviços se, para efeitos do disposto no artigo 7.°, n.° 3, alínea d) do D.L. 263-A/2007 de 23/07 na atual redação do D.L. 125/2013 de 30/08, conjugada com a Portaria n.° 794-B/2007 de 23/07, no procedimento da CASAPRONTA, no âmbito da manifestação da intenção de exercer ou não o direito legal de preferência, se o Município tem de deliberar se pretende manifestar o interesse de exercer ou não o direto de preferência sobre todos os imóveis transacionados pelo procedimento da CASAPRONTA, ou apenas sobre os quais a lei preveja que possui direito de preferência.

Conclui a referida informação, propondo uma metodologia para o procedimento relativo ao exercício - presume-se - da manifestação prévia da intenção do exercício do direito (legal) de preferência municipal, como se transcreve:

  1. a) No âmbito do protocoto de cooperação, aprovado em Reunião de Câmara Municipal de … datada de 27/01/2009, entre o Instituto dos Registos e do Notariado (IRN, IP) e o Município de …, nos termos do artigo 16.°, n.° 2 e 27.° do D.L. 263-A/2007 de 23/07, com posteriores alterações, uma das obrigações do Município, nomeadamente a alínea c) do n.° 1 da Cláusula 3.a, é o de aceder ao sítio da Internet onde são inseridos os elementos essenciais da alienação pelo obrigado à preferência para manifestação da intenção de exercer ou não o direito legal de preferência, nos termos da Portaria n.°794-B/2007 de 23/07.
  2. b) Analisada a legislação em vigor, no âmbito dos normativos legais que atribuem direitos legais de preferência, os Serviços verificaram que o Município de …, salvo melhor opinião, apenas tem direito de preferência legal1 no âmbito do:

Í) Artigo n.° 1380.° do Código Civil, devendo, no caso dos prédios rústicos, inquirir-se os proprietários dos prédios confinantes.

(…)

  1. ii) Artigo 37° da Lei n.° 107/2001, de 8 de Setembro (Lei de bases da política e do regime de proteção e valorização do património cultural) - No caso de se tratar de imóvel classificado ou em vias de classificação, ou de prédio ou fração autónoma sito na respetiva zona de proteção, existe a necessidade obrigatória de consulta à Câmara Municipal.

(...)

  1. c) Assim sendo, os interlocutores nomeados pelo município, através do sítio da Internet: https://www.casapronfa.pt/CasaPronta, ou através de resposta ao email enviado pela Conservatória do Registo Predial, efetuam duas verificações:
  2. i) No caso dos prédios rústicos, verificam as confrontações, por forma a verificar se confina com o Município de Nelas. Caso de verifique, é objeto de apreciação e deliberação da Câmara Municipal de …;
  3. ii) É analisado a planta de Condicionantes - Outras condicionantes , que consta da composição do Plano Diretor Municipal de …, publicado em Diário da República, 2a Série - N.° 1 - … de Janeiro de 2014, Aviso n.° …, e de acordo com a localização do prédio definida na Caderneta Predial Urbana (coordenadas), caso se trate de um imóvel classificado ou em vias de classificação, ou na respetiva zona de proteção, é objeto de apreciação e deliberação da Câmara Municipal de …:

Caso contrário, os interlocutores comunicam através do sítio da internei ou através de email à Conservatória do Registo Predial conforme não existe o direito de preferência legal por parte do Município.

 

1 De acordo como o documento anexo: Pedido de adesão ao sítio da internet www.cnsapronia.mi.pt, na alínea c) solicitavam a indicação dos normativos legais que atribuem direitos legais de preferência. Ou seja, o legislador não confere novas competências ao Município, apenas reforça o cumprimento das mesmas.

2 Na planta de Condicionantes - Outras condicionantes encontram-se assinalados o património classificado e respetiva área de proteção.

  

Apreciando

  1. Do pedido

Do teor do pedido, não é fácil alcançar, com meridiana precisão, qual, afinal, é a exacta dúvida de que ora se visa esclarecimento.

Na verdade, não se alcança claramente se o problema em causa para o qual se procura solução é o de saber (...) se o Município não terá de se pronunciar relativo ao direito de preferência de qualquer transação, no âmbito da CASAPRONTA, independentemente dos normativos legais que atribuem direitos legais de preferência (…) ou, antes, se será ou não adequado para o efeito o procedimento proposto pela edilidade (seja, os passos a seguir) para a manifestação prévia da intenção do exercício do direito (legal) de preferência municipal no âmbito do procedimento especial de transmissão, oneração e registo imediato de prédios em atendimento presencial único, previsto no Decreto‑Lei n.º 263-A/2007, de 23 de Julho[1], no quadro do designado “serviço Casa Pronta”[2].

Contudo porque só a primeira das questões é susceptível de dar uma dimensão não meramente procedimental à segunda, será estão a essa que se dedicará primordial atenção, se bem que necessariamente de forma suficientemente breve.

 

  1. Análise

2.1. O direito de preferência

A matéria ora aqui em apreço situa-se no âmbito do exercício do designado direito de preferência.

Este direito é, tipicamente, de natureza obrigacional, resultando de um acordo (pacto de preferência) estabelecido entre uma pessoa (promitente) em benefício de outra (beneficiário) (ainda que não se trate de um negócio bilateral pois só o promitente se vincula)[3], através do qual o primeiro se obriga a dar preferência a outrem, na eventual conclusão futura de um determinado contrato, caso o promitente venha de facto a celebrá-lo e o beneficiário queira contratar em condições iguais à que um terceiro aceitaria[4].

Dele diz Manuel Henrique Mesquita: o direito de preferência atribui ao respectivo titular prioridade ou primazia na celebração de determinado negócio jurídico, desde que ele manifeste vontade de o realizar nas mesmas condições (tanto por tanto) que foram acordadas entre o sujeito vinculado à preferência e um terceiro. Trata-se de um direito que pode ser criado directamente pela lei ou por negócio jurídico (contrato ou testamento). As preferências legais visam, em regra, proporcionar ao titular respectivo a aquisição de um direito real[5]

Assim, o direito de preferência pode consistir num direito convencional[6], com a natureza de um mero direito de crédito à conduta do obrigado à preferência, cujo incumprimento apenas dará lugar a indemnização[7], ainda que, quando se trate de pactos de preferência tendo por objecto bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, poder-lhe ser conferida eficácia real[8], se forem registados[9]. Nesse caso, o acordo deixa de valer (ser oponível) unicamente ente as partes, para passar a ter igualmente eficácia perante terceiros[10].

Já no caso das preferências legais – as quais, mesmo que concedidas em favor de particulares, têm sempre na sua base um interesse de ordem públicao preferente legal desfruta (…) de um direito potestativo que lhe permite fazer seu o negócio realizado em violação da preferência[11]

2.2. Exercício do direito de preferência

2.2.1. O procedimento tradicional para exercício do direito de preferência

Tipicamente, o direito de preferência (que pactício quer legal) carece, para poder ser exercido, do conhecimento prévio, pelo seu beneficiário, (dos contornos) do negócio (oneroso) que se pretenda realizar. Para tal efeito, estabelece o artigo 416.º do Código Civil o seguinte procedimento:

Querendo vender a coisa que é objecto (..) [do direito de preferência], o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato (n.º 1).

Recebida a comunicação, deve o titular exercer o seu direito dentro do prazo de oito dias, sob pena de caducidade, salvo se estiver vinculado a prazo mais curto ou o obrigado lhe assinar prazo mais longo (n.º 2).

Sendo este o procedimento típico[12] que partia do pressuposto – do costume ou tradição - de que as transações de bens imóveis eram (necessariamente) realizadas notarialmente, por escritura pública, certo é que não só a alteração deste paradigma pelo alargamento da possibilidade de formalização destes contratos através de outras formas e diferentes entidades, como também uma certa disseminação de (novos) direitos legais de preferência estabelecidos (com os mais diversos fundamentos) a favor de (várias) entidades públicas trouxe a necessidade de instituir outros procedimentos em matéria de exercício deste direito.

Um desses casos será precisamente o do procedimento de manifestação prévia da intenção de exercício do direito de preferência introduzido pelo capítulo II (artigos 18.º a 20.º) do Decreto-Lei n.º 263-A/2007, de 23 de Julho, no âmbito de um novo procedimento especial de transmissão, oneração e registo imediato de prédios em atendimento presencial único, instituído no âmbito de um designado “serviço Casa Pronta” que se processa de forma “desmaterializada” (ou seja, por via informática).

2.2.2. O procedimento especial de transmissão, oneração e registo imediato de prédios em atendimento presencial único

Como se acabou de dizer, o Decreto-Lei n.º 263-A/2007, quebrando uma prática que se pode considerar ancestral, introduziu no nosso ordenamento jurídico aquilo que ele designou por procedimento especial de transmissão, oneração e registo imediato de prédios em atendimento presencial único, definido como um procedimento especial de transmissão, oneração e registo de imóveis, (…) [com] dois objectivos principais: a eliminação de formalidades dispensáveis nos processos de transmissão e oneração de imóveis e a possibilidade de realizar todas as operações e actos necessários num único balcão, perante um único atendimento[13].

Assim, se de um lado e através da utilização intensiva de meios de comunicação electrónica e da Internet (…) [se tornou] desnecessário o envio separado de informação a diversas pessoas colectivas públicas e empresas públicas para efeito de exercício do direito de preferência ao mesmo tempo que passou a permite-se que o contrato seja celebrado na conservatória de registo, dispensando-se a escritura pública e a inerente deslocação ao cartório notarial, de outro lado foi criado um «balcão único» onde, em atendimento presencial único, nas conservatórias de registo e suas extensões, os interessados (…) [passaram a poder] praticar todos os actos que um processo de compra de casa e outros negócios jurídicos conexos impliquem. Consequentemente, num único posto de atendimento (…) [passou] a ser possível efectuar a generalidade das operações e actos necessários à compra de casa, evitando-se deslocações e custos associados a essas deslocações[14].

2.2.2.1. O procedimento de manifestação prévia da intenção de exercício do direito de preferência

É pois no âmbito deste procedimento especial de transmissão, oneração e registo imediato de prédios em atendimento presencial único que surge o procedimento para manifestação prévia da intenção de exercício do direito de preferência por parte de entidades públicas – Estado, Regiões Autónomas, municípios, outras pessoas colectivas públicas ou empresas públicas - beneficiárias de direitos de preferência legalmente (e de modo disperso) estabelecidos em seu favor.

Em primeiro lugar esse procedimento apenas pode ser utilizado quando o beneficiário (titular) do direito de preferência seja o Estado, Regiões Autónomas, municípios, outras pessoas colectivas públicas ou empresas públicas mas já não quando o seja uma pessoa singular ou um ente colectivo privado.

Por outro lado, a utilização deste procedimento não se afigura como obrigatória para o obrigado à preferência[15], podendo este optar, em alternativa, pelo regime geral de comunicação previsto no Código Civil para efeitos do seu exercício. Porém, caso opte pelo aludido procedimento, o envio para o sítio de internet (Casa Pronta) dos elementos essenciais ao exercício do direito legal de preferência pelo Estado, Regiões Autónomas, municípios, outras pessoas colectivas públicas ou empresas públicas[16], (…) substitui a notificação para preferência, nos termos gerais[17].

Mais evidente ainda é o facto de tal procedimento ser apenas utilizável no caso de direitos de preferência legais – ou seja, direitos de preferência estabelecidas por lei a favor das já referidas entidades públicas beneficiárias – mas já não nos caos de eventuais preferências convencionais ou pactícias ainda que estabelecidas em favor das mesmas entidades[18].

Porém, se a manifestação prévia para exercício da preferência se pode aplicar e valer para os negócios jurídicos incidentes sobre imóveis passíveis de ser realizados segundo o procedimento especial de transmissão, oneração e registo imediato de prédios em atendimento presencial único, a saber, os previstos no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto‑Lei n.º 263-A/2007: (a) compra e venda, (b) mútuo e demais contratos de crédito e de financiamento celebrados por instituições de crédito, com hipoteca, com ou sem fiança, (c) hipoteca, (d) sub-rogação nos direitos e garantias do credor hipotecário, nos termos do artigo 591.º do Código Civil e (e) outros negócios jurídicos, a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça, afigura-se que ela poderá valer igualmente quando esteja em causa a realização de outros negócios jurídicos que não possam ser formalizados desse modo, como será o caso de dação em pagamento (ou dação em cumprimento ou “pro solvendo”) de imóvel objecto de direito de preferência em favor de ente públicos.

Como é óbvio, a cominação prevista no n.º 4 do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 263-A/2007 e retomada no n.º 2 do artigo 14.º da Portaria n.º 794-B/2007, de 23 de Julho[19], de que a ausência de manifestação expressa da intenção de exercer o direito legal de preferência no prazo previsto na lei determina a caducidade deste direito tem que ser entendido como querendo-se referir (ainda que algo inapropriadamente) apenas ao exercício daquele direito quanto ao prédio em questão e relativamente àquele preciso negócio – não podendo, de modo algum, significar que o direito de preferência caduca igualmente relativamente a negócios futuros relativos ao mesmo prédio e a esse seu titular (caso a transacção não se chegue a realizar nos termos propostos ou venha sê-lo com diferente contraparte ou condições negociais) ou a novos titulares. Totalmente implausível (por absurda) será ainda qualquer ideia de que essa “caducidade” poderia igualmente afectar a subsistência futura daquela preferência legal relativamente à entidade publica silente quanto a quaisquer outros prédios em que tal preferência se pudesse verificar.

A Portaria n.º 794-B/2007 prevê[20] que no caso de manifestação expressa da intenção de exercer a preferência essa decisão não possa ser posteriormente alterada. Também aqui se deve entender que a inalterabilidade do sentido da manifestação (pelo não exercício da preferência) deve ser entendida como vigorando apenas quanto àquele concreto negócio e já não relativamente a qualquer outro, ainda que com o mesmo alienante (na hipótese do o negócio que haja sido comunicado acabar por se não concretizar) ou com titulares futuros, desde que em causa se encontre o mesmo prédio.

Por outro lado, ainda que a informação (contendo a resposta da edilidade) sobre a manifestação da intenção de exercício do direito de preferência fique disponível (no sítio da internet) durante um ano (contado a partir do pagamento do emolumento devido), isso não significa que ela valer para outros e quaisquer negócios realizados durante esse período, no caso do negócio originalmente notificado não se chegar a concretizar.

2.3. O procedimento de manifestação prévia da intenção de exercício do direito de preferência na prática

Na prática, é o obrigado à preferência – o proprietário do prédio – que se encontra sujeito, por lei, à obrigação de comunicar às entidades preferentes[21] – no caso, à camara municipal da localização do imóvel[22] – não só a intenção de realização de negócio susceptível de preferência (em regra, a venda, mas não só) mas também todos os demais elementos sobre as condições negociais necessários e exigíveis para o exercício da preferência.

É pois a ele que cabe o ónus do conhecer as normas que estabelecem sobre o seu prédio um direito de preferência a favor de entidades públicas, e especificamente da câmara municipal do concelho da localização do imóvel, pelo que o exercício de direito legal de preferência pelo município não ode ser prejudicado pela alegação de que o titular do prédio desconhecia a existência dessa preferência.

Porém, nos termos do protocolo que terá sido firmado com o IRN em 2009, cabe ao município fornecer ao IRN e manter actualizada a listagem com os locais onde se verifique existir o direito de preferência – o que significa da parte do município a necessidade do conhecimento exaustivo de todas as situações em que tal direito se encontre previsto na lei e seja aplicável na sua circunscrição territorial, indicação da qual poderá ficar dependente a inscrição no sítio da «casa pronta» da informação indispensável à manifestação da intenção municipal de exercício de preferência. O que poderá levar a que o município, num caso de falta dessa inscrição devida ao facto de não ter comunicado ao IRN a existência de uma situação de preferência, poder ver invocado contra si, caso pretenda exercer o direito de preferência, a ausência de indicação de que sobre o prédio em apreço impendia preferência legal em favor do município.

Por outro lado, as preferências legais do município não parece que se resumam apenas às situações prevista no artigo 1380.º, n.º 1, do Código Civil, e nº artigo 37.º da Lei n.º 107/2011.

Para além das preferências legais a favor do município no âmbito do Programa PROHABITA que se encontram expressamente excluídas do regime de manifestação prévia do Decreto-Lei n.º 263-A/2007, outras há (ou podem vir a ser previstas), designadamente no âmbito do disposto no artigo 29.º da Lei de Bases Gerias da Política de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo[23], como seja o direito de preferência previsto no artigo 155.º do Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de Maio[24], a prevista no artigo 58.º do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana[25], as previstas no artigo 1409.º, n.º 1, do Código Civil a favor dos comproprietários ou no artigo 1555.º, n.º 1, do mesmo código, a favor de prédio onerado com servidão de passagem, ou ainda a referida no artigo 55.º do Código do Imposto Municipal sobre a Transmissão Onerosa de Imóveis (CIMT)[26].

De referir, por fim, que os direitos legais de preferência são apenas os que se encontrem expressamente previstos na lei, definidos em função de imóveis, seu uso, localização ou outro critério relativo aos mesmos. Em matéria de manifestação da intenção de exercício de direito legal de preferência, o município apenas se tem que pronunciar sobre os prédios e negócios que foram feitos constar do sítio da internet da «casa pronta» destinado para esse efeito e não sobre todo e qualquer prédio sobre o qual tenha havido negócios jurídicos formalizados através desse “balcão único”.

 

Concluindo

  1. O município peticionante apenas se tem que pronunciar no âmbito da manifestação de intenção de exercício do direito de preferência sobre imoveis previsto no Decreto-Lei n.º 263-A/2007, quando em relação a certo e determinado prédio exista direito legal de preferência estabelecido em seu favor e haja sido feita constar, pelo seu titular, no sitio da internet da «casa pronta», a informação necessária para a manifestação da intenção de exercício da preferência pelo município – e não relativamente a todo e qualquer prédio objecto de negócio jurídico formalizado através do regime da «casa pronta» relativamente ao qual, aliás, o mais natural é não se encontrar previsto qualquer direito legal de preferência em favor do município.
  2. Para efeitos do exercício da preferência no âmbito do regime «casa pronta», cabe ao município fornecer ao IRN e manter actualizada a listagem com os locais onde se verifique existir o direito de preferência – o que significa da parte do município a necessidade do conhecimento exaustivo de todas as situações em que tal direito se encontre previsto na lei e seja aplicável na sua circunscrição territorial ‑ cuja falta desse fornecimento o município poderá ver invocado, contra si, como legítima justificação para o obrigado à preferência não ter procedido à notificação devida para exercício desta, no caso de pretender exercê-la.

 

Salvo semper meliori judicio

  

Ricardo da Veiga Ferrão

(Jurista. Técnico Superior)

 

[1] Com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 122/2009, de 21 de Maio, Decreto-Lei n.º 99/2010, de 2 de Setembro, Decreto-Lei n.º 209/2012, de 19 de Setembro, e Decreto-Lei n.º 125/2013, de 30 de Agosto.

[2] O sítio internet Casa Pronta - https://www.casapronta.pt/CasaPronta/ - apresenta-se do seguinte modo:

O serviço Casa Pronta, disponibilizado pelos serviços do Ministério da Justiça, permite realizar de forma imediata todas as formalidades necessárias à compra e venda, doação, permuta, dação pagamento, de prédios urbanos, mistos ou rústicos, com ou sem recurso a crédito bancário, à transferência de um empréstimo bancário para compra de casa de um banco para outro ou à realização de um empréstimo garantido por uma hipoteca sobre a casa, num único balcão de atendimento. No serviço Casa Pronta também é possível realizar a constituição de propriedade horizontal.

Neste sitio o cidadão, as empresas e as entidades públicas intervenientes nos negócios supra identificados têm acesso a serviços e à informação necessária de apoio para a realização de procedimentos Casa Pronta.

Neste sítio:

  • Os cidadãos e empresas podem preencher e enviar por via eletrónica o anúncio destinado a publicitar os elementos essenciais do negócio que pretendem realizar, por forma a que as entidades públicas com direito legal de preferência possam manifestar a intenção de exercer ou não esse direito. O custo deste anúncio é de 15€.
  • As entidades públicas com direito legal de preferência passam a ter de manifestar a intenção de exercer a preferência através deste sítio, ficando as pessoas e empresas dispensadas de obter e pagar certidões negativas de exercício de direito de preferência junto dessas entidades antes de celebrar o negócio.
  • Os cidadãos, empresas e serviços de registo podem consultar os anúncios submetidos e verificar, a cada momento, se alguma entidade pública com direito legal de preferência manifestou a intenção de exercer esse direito;
  • Os bancos podem pedir e consultar a certidão permanente de registo do prédio.

[3] Vd. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito da Obrigações, 4.ª edição, 1984, pág. 289 (edição acedida. Há, contudo, edição mais recente: 12.º edição, 2009, com reimpressão em 2016).

[4] Vd. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito da Obrigações … cit, pág. 289.

[5] Vd. Manuel Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, 3.ª reimpressão, 2003, pág.189 e segs.

[6] Vd. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito da Obrigações … cit, pág. 293.

[7] Vd. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito da Obrigações … cit, pág. 294.

[8] Artigo 421.º, n.º 1, do Código Civil.

[9] Artigo 413.º, n.º 1, do Código Civil.

[10] Vd. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito da Obrigações … cit, pág. 294.

[11] Vd. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito da Obrigações … cit, pág. 294.

[12] Diz-se tipicamente par simbolizar que esta é a regra no que toca ao procedimento do seu exercício. Contudo diversos casos há, especialmente no caso de preferências legais e quando os beneficiários são entidades públicas, em que são previstos procedimentos específicos para exercício do direto de preferência.

[13] Vd. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 263-A/2007.

[14] Vd. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 263-A/2007.

[15] Diz-se no n.º 1 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 263-A/2007 que o alienante pode remeter os elementos essenciais ao exercício do direito legal de preferência (...) por uma via electrónica única.

[16] Artigo 18.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 263-A/2007.

[17] Artigo 18.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 263-A/2007.

[18] É também o n.º 1 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 263-A/2007 que restringe o procedimento (…) ao exercício do direito legal de preferência (...).

[19] Alterada pela Portaria n.º 286/2012, de 20 de Setembro, e pela Portaria n.º 358/2015, de 14 de Outubro.

[20] Artigo 14.º, n.º 3, da Portaria n.º 794-B/2007.

[21] Fala-se aqui em preferentes porque, na verdade, as preferências legais, na generalidade dos casos não são estabelecidas apenas em favor de um único beneficiário mas sim em favor de vários beneficiários, que (aparentemente) devem exercer a preferência, ou antes, preferem de modo sucessivo. O que significa que aquele que exerce (manifesta) primeiro o seu direito de preferência poderá não vir a ser, a final, o titular do prédio.

[22] Deve entender-se que, em regra, o deito de preferência das autarquias ou, mais precisamente, de cada autarquia, vale unicamente quanto aos imóveis situados na área do concelho.

[23] Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio.

[24] Este diploma visa definir o regime de coordenação dos âmbitos nacional, regional, intermunicipal e municipal do sistema de gestão territorial, o regime geral de uso do solo e o regime de elaboração, aprovação, execução e avaliação dos instrumentos de gestão territorial.

[25] DL n.º 307/2009, de 23 de Outubro, alterado pela Lei n.º 32/2012, de 14 de Agosto e pelo Decreto‑Lei n.º 136/2014, de 9 de Setembro.

[26] Esta referência não significa, contudo, que todas elas sejam exercíveis através do regime «casa pronta».

By |2023-10-26T13:32:20+00:0008/08/2016|Pareceres Jurídicos até 2017|Comentários fechados em “Casa Pronta”; direito de preferência legal.

Grupos municipais (artigo 46-B da Lei 169/99 na red. Lei 5-A/2002).

 

Solicita o Presidente da Assembleia Municipal de …, por seu ofício de …, referência n.º …, a emissão de parecer sobre a seguinte questão:

Tendo-me surgido dúvidas jurídicas sobre comunicações que me foram dirigidas, para a formação, por cisão, de novo grupo municipal, venho junto de V. Exª solicitar parecer jurídico sobre a situação que passo a expor:

No dia 19 de Outubro de 2013, após a instalação da Assembleia Municipal de …, resultante do último acto eleitoral autárquico, foi recebida nesta, a informação subscrita por todos os deputados e presidentes de junta eleitos na lista do PPD/PSD, comunicando a composição do Grupo Municipal, a respectiva designação e o Representante do Grupo Municipal (anexo 1). Concomitante mente foi recebida na mesma data a comunicação, subscrita por todos os referidos, indicando a composição da Direcção do Grupo Municipal do PPD/PSD na Assembleia Municipal (anexo 2).

No dia 14 de junho p.p. o presidente da secção do PSD …, comunicou que a Comissão Política de Secção, tinha retirado a confiança política a quatro dos deputados eleitos nas listas do PPD/PSD e que a partir daquela data o Grupo Municipal do PSD seria composto pelos outros quatro deputados sendo indicados os respectivos nomes bem como o nome da representante à conferência (anexo3).

Foi entendido pelo Presidente da Assembleia Municipal que haveria 4 deputados eleitos que estariam a ser "expulsos" do Grupo Municipal, pela comissão política do PPD/PSD, sendo omissa relativamente aos 3 presidentes de Junta de Freguesia que subscreveram a lista de constituição do respectivo Grupo Municipal em Outubro de 2013.

Ponderada a legislação, nomeadamente o artigo 46-B da lei 5-A/2002 aditado à lei 169/99 e o Regimento da Assembleia Municipal, não foi por mim, na qualidade de Presidente da Assembleia, encontrada legitimidade para acolhimento do pedido mencionado, facto comunicado em 14 de Junho ao Presidente de Secção do PPD/PSD Anadia (anexo 4)

No dia 21 de Junho p.p. foi recebida na Assembleia Municipal de …, nova comunicação (anexo 5), desta vez subscrita pelos 4 deputados mencionados na anterior, informando: " ...foi efectuada uma alteração à composição do grupo municipal, que será composto a partir desta data, exclusivamente..." indicando o nome dos 4 deputados.

No ponto seguinte diz que este novo grupo da bancada do PSD, na Assembleia Municipal adota a designação de "Grupo Municipal do PSD ….

Indica também a direcção e o representante à conferência de representantes.

Pese embora, para mim, não ser claro nesta missiva, se a informação é no sentido da criação de um novo grupo Municipal e manter o primeiro, comunicado em 19 de Outubro de 2013, e composto pelos 4 deputados restantes mais os 3 Presidentes de Junta eleitos na lista do PPD/PSD.

Ou se esta vem no sentido da substituição do Grupo existente, deixando os outros deputados e os 3 presidentes de Junta na situação de independentes pela aplicação do ponto 4 do artigo 22° do RAMA.

Seja qual for a situação, depois da consulta da legislação conhecida, aplicada à matéria, e da consulta a outros regimentos de Assembleias Municipais subsistem-me dúvidas que passo a colocar

1 - Pode um ou mais deputados eleitos, em listas partidárias ou grupos de cidadãs, formarem Grupo Municipal diverso daquele que solidariamente inicialmente constituíram, ao abrigo do artigo 46-B da lei 5-A de 2002, criando assim dois ou mais grupos municipais dentro do mesmo partido ou grupo de cidadãos em cujas listas foram eleitos?

2 - Podem os deputados que se desvinculem de um grupo Municipal constituir um Grupo Municipal de Independentes ou terão obrigatoriamente de manter individualmente o estatuto de independentes?

Como informação complementar, informo que, aos Presidentes de Junta e Deputados em causa, não lhes é conhecida filiação partidária diferente daquela que tinham no ato eleitoral, ou seja, filiação no PPD/PSD.

 

O ofício do pedido de parecer vinha ainda acompanhado por exemplar do regimento da Assembleia Municipal da …, bem como de comunicações de constituição inicial do grupo municipal do PSD nessa Assembleia e de indicação dos membros da sua direcção, de carta do Presidente da Comissão Política da Secção do PSD … comunicando a retirada da confiança política a alguns dos seus deputados municipais, pelo que o grupo municipal era recomposto, deixando de contar com a participação destes, de oficio do Presidente da Assembleia Municipal ao Presidente da Comissão Política da Secção do PSD …, de resposta (negativa) à anterior comunicação e, por fim, de comunicação de (quatro) deputados municipais desse partido informando o Presidente da Assembleia Municipal que o respectivo grupo parlamentar passaria a ser composto unicamente por eles, bem como a composição da nova direcção deste.

  

Apreciando

  1. Do pedido

1.1. A questão exposta prende-se com saber como resolver a situação resultante de dissídio partidário do qual resulta a pretensão, comunicada ao Presidente da Assembleia Municipal pelo dirigente da estrutura partidária local e posteriormente coonestada pelos deputados sobrantes, de, por via da retirada de confiança política por parte dessa estrutura partidária a alguns dos deputados municipais “propostos” pelo partido, deverem os mesmo deixar de se considerar como integrando o respectivo grupo municipal na Assembleia Municipal - não obstante manterem-se filiados no partido pelo qual foram eleitos - reduzindo-se, deste modo, a composição deste àqueles referidos deputados sobrantes, pois que os presidentes das juntas de freguesia do mesmo partido, membros por inerência da Assembleia Municipal, parece igualmente terem também deixado de fazer parte do mesmo grupo municipal, à luz de quanto resulta da comunicação dos órgãos partidários.

1.2. A questão colocada também pode ser resumida do seguinte modo: qual o poder dos partidos e a valia das decisões dos seus órgãos – maxime, das suas estruturas locais – sobre a sua confiança política nos “seus” eleitos nos órgãos autárquicos e sobre a subsistência do respectivo mandato eleitoral e, especificamente, qual o poder dessas estruturas partidárias locais sobre os designados grupos municipais, sua composição e alteração da mesma ou qual seja o poder de alguns dos membros destes grupos que arrogando-se como os lídimos representantes do partido, redefinem a composição do respectivo grupo municipal (assim dele excluindo outros membros…) – o que é por dizer qual a natureza do mandato dos eleitos locais e que poderes lhe cabem no âmbito do seu exercício relativamente à matéria em causa quando em confronto com a vontade dos órgãos locais dos partidos.

 

  1. Análise

A questão ora em apreço, que se insere na matéria do exercício do mandato eleitoral e da natureza e poderes desse mandato é uma vasta e intrincada matéria.

Cingir-nos-emos, por isso, à análise do funcionamento dos designados grupos municipais nas assembleias municipais e dos poderes que sobre eles podem ser exercidos, designadamente em matéria da sua composição.

Nesse contexto analisaremos também o mandato dos eleitos e a sua vinculação ou dependência partidária, designadamente para efeitos da sua pertença ou exclusão dos referidos grupos municipais.

 

2.1. Os grupos municipais – sua génese

Os designados “grupos municipais” foi novidade trazida pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de Janeiro, ao aditar um (novo e inovador) artigo 46.º-B à Lei n.º 199/99[1], onde aqueles passaram a ser expressamente consagrados na economia do funcionamento das assembleias municipais, num movimento de reforço das suas competências e poderes e de melhoria a aprofundamento do funcionamento desse órgão, importando para a realidade autárquica uma figura típica dos parlamentos e, como tal, também existente na Assembleia da República, aqui sob a designação bem conhecida (e, por isso, mais expressiva) de grupos parlamentares.

 

2.1.1. Os grupos Parlamentares

2.1.1.1. Começando pelo princípio – os eleitos (deputados) e os grupos de eleitos.

Ouvindo a lição de Jorge Miranda, temos que no estado contemporâneo (…) deputado é o nome constitucional ou convencional, de origem francesa, atribuído a cada um dos membros do Parlamento ou, no caso de se adoptar o bicameralismo, o nome atribuído a cada um dos membros da primeira câmara ou câmara baixa (dita, por isso, geralmente, câmara dos deputados)[2].

Em vez de representante de grupos autónomos perante o Estado, ele é o representante da nação, do povo todo; eleito pelos cidadãos considerados como tais, e daí tira a sua legitimidade; se os seus poderes provêm da Constituição, a sua investidura faz-se pela eleição; mas, dotado de um mandato político, em nome do povo, apesar disso, não está adstrito a instruções ou a ordens dos seus eleitores[3].

O aparecimento dos grupos parlamentares é coevo do Parlamento moderno, quer em Inglaterra após 1689, quer no resto da Europa a seguir à Revolução Francesa. (…) No plano da realidade constitucional, os grupos parlamentares são (a par das comissões eleitorais) uma das vias de formação dos partidos políticos; precedem, pois, os partidos. Pelo contrário, no plano da Constituição formal, é por os partidos no séc. XX se institucionalizarem que adquirem relevância os correspondentes grupos parlamentares; aqui, os partidos precedem os grupos, têm nestes uma sua expressão[4].

Em Portugal, nem nos parlamentos do constitucionalismo monárquico nem nos da república ou do estado novo, os grupos parlamentares tiverem qualquer expressão. Só no regimento da Assembleia Constituinte da 1975/1976 (…) pela primeira vez se vai falar no Direito português em grupos parlamentares. E a Constituição dar-lhe-á um tratamento específico[5].

2.1.1.2. Os grupos parlamentares na actualidade

Diz-se no artigo 180.º, n.º 1 da Constituição que os Deputados eleitos por cada partido ou coligação de partidos podem constituir-se em grupo parlamentar. Do mesmo teor é a norma do artigo 6.º, n.º 1, do Regimento da Assembleia da República[6]. Desta norma podem-se extrair algumas consequências características e caracterizadoras dos grupos parlamentares.

Assim, a existência de um grupo parlamentar pressupõe a pluralidade de deputados (no mínimo dois, mas não mais que isso), sendo, contudo, de constituição facultativa. Um deputado apenas pode pertencer a um grupo parlamentar. A cada partido há-de corresponder apenas um grupo parlamentar (não podendo, portanto, haver desdobramentos do grupo parlamentar do mesmo partido) e a cada grupo parlamentar há-de corresponder um só partido (não sendo admitidos grupos parlamentares mistos, integrados por deputados de diferentes partidos), sendo que no caso de coligações eleitorais (mas parece que já não nas apenas de incidência parlamentar, ou seja, constituídas pós eleições e visando o suporte do governo) podem os seus deputados (mas não obrigatoriamente) constituir um único grupo parlamentar, o qual, contudo não pode coexistir com grupos parlamentares dos partidos que formam a coligação[7].

Os grupos parlamentares constituem-se por um mecanismo de auto-agrupamento ou auto-constituição, sendo os próprios deputados que irão fazer parte de cada um deles que comunicam o facto ao presidente da Assembleia da República, em documento assinado por todos, indicando ainda a designação do grupo e o nome do seu presidente e vice-presidentes, caso os haja, bem como, pela mesma via, as posteriores alterações de composição ou direcção[8], além de que estabelecem livremente a sua própria organização[9].

Os grupos parlamentares dispõem de um conjunto relevante de poderes e prerrogativas no âmbito parlamentar[10], apesar de se deverem considerar não como órgãos da Assembleia mas sim como órgãos dos respectivos partidos, por mediatizarem a participação destes naquela[11].

 

2.2. A representação política

2.2.1. A mediação dos partidos políticos

Para que haja grupos de eleitos é necessidade óbvia que haja eleitos. No nosso sistema político-constitucional, a eleição dos titulares dos órgãos políticos electivos, salvo o Presidente da República[12], é efectuada com a intermediação necessária dos partidos políticos[13]|[14], os quais participam nesses órgãos na medida da sua representatividade eleitoral[15].

Também ao nível dos órgãos das autarquias locais os partidos assumem idêntico elevo: as candidaturas para as eleições dos órgãos das autarquias locais podem ser apresentadas por partidos políticos, isoladamente ou em coligação[16]. Contudo, aqui, desde a revisão constitucional de 1997[17], passou a ser constitucionalmente admitido que as candidaturas aos órgãos das autarquias locais possam também ser apresentadas por grupos de cidadãos eleitores de forma independente e extrapartidária, desvinculada de qualquer ligação a partidos políticos[18].

Contudo tal facto não conduz a que os mandatos eleitoralmente obtidos fiquem propriedade dos partidos e que estes disponham deles a seu talante, quer em termos de (livre) escolha (e dispensa) dos seus titulares, quer em matéria do seu exercício, condicionado à fidelidade partidária.

2.2.2. O desempenho do mandato eleitoral

A respeito do desempenho do mandato eleitoral diz-se na Constituição que os deputados exercem livremente o seu mandato[19]|[20], o que se repete, sob a mesma fórmula, no Estatuto dos Deputados[21].

E insiste-se na mesma nota na Lei dos Partidos Políticos quando nela se diz[22] que os cidadãos eleitos em listas de partidos políticos exercem livremente o seu mandato, nas condições definidas no estatuto dos titulares e no regime de funcionamento e de exercício de competências do respetivo órgão eletivo. Neste caso, caracteriza-se mesmo a que condições e encontra sujeito esse livre exercício do mandato: são elas as condições definidas no estatuto dos titulares bem como as que constem no regime de funcionamento e de exercício de competências do respetivo órgão eletivo.

Sobre esta matéria pergunta Jorge Miranda:

Que relação deve haver, porém, entre Deputados e partidos? Qual o grau de autonomia de cada Deputado enquanto membro do Parlamento? Como inserir os Deputados eleitos pelos diversos partidos uns em face dos outros, formando todos uma mesma câmara? E como proceder em caso de conflito?

Responde o mesmo autor:

Uma tese radical tenderia a afirmar que a representação politica se converteu em representação partidária que o mandato verdadeiramente é conferido aos partidos e não aos Deputados e que os sujeitos da acção parlamentar acabam por ser não os Deputados, mas os partidos ou quem aja em nome destes. Por conseguinte, deveriam ser os órgãos dos partidos a decidir, com maior ou menor democraticidade ou com maior ou menor centralismo democrático, sobre as orientações de voto dos Deputados, sujeitos estes a uma obrigação de fidelidade a que não poderiam escusar-se senão em casos-limite de consciência.

Esta concepção ignora que, embora propostos pelos partidos os Deputados são eleitos por todos os cidadãos e não apenas pelos militantes ou pelas bases activistas dos partidos, que juridicamente representam todo o povo. Levada às últimas consequências, com as comissões políticas ou os secretariados, exteriores ao Parlamento, a dizer como os Deputados deveriam votar, essa concepção transformaria a assembleia política em câmara corporativa de partidos e retirar-lhe-ia a própria qualidade de órgão de soberania, por afinal deixar de ter capacidade de livre decisão.

(…)

O entendimento mais correcto, dentro do espírito do sistema, parece dever ser outro. A representação política hoje não pode deixar de estar ligada aos partidos, mas não converte os Deputados em meros porta-vozes dos seus aparelhos.

(…)

… sem esquecer a regra da apresentação de candidaturas só pelos partidos (citado art. 151.º, n.º 1), como a Constituição autoriza a existência de Deputados não inscritos em nenhum partido - quer porque desde logo assim tenham sido propostos como candidatos (art. 151.º, n.º 1) quer porque tendo saído do partido por que foram eleitos, não tenham entrado para outro [art. 160.º, n.º 1, al. c)] - ressalta a distinção entre a função dos partidos e a dos Deputados e concede-se mesmo que em caso de ruptura, o Deputado prevalecer sobre o partido (se bem que outras razões possam impor a renúncia ao mandato). Tao pouco têm os partidos qualquer meio de substituir os Deputados durante a legislatura: tal substituição faz-se nos termos da lei eleitoral e, quando temporária, é um direito dos Deputados e não dos partidos (art. 153°, n° 2).

 

2.3. Os grupos municipais e o mandato eleitoral no quadro autárquico

2.3.1. Também ao nível dos órgãos autárquicos, designadamente da assembleia municipal, se apresenta um quadro legal e dogmático idêntico ao anteriormente referido.

Na verdade, se por um lado, como já vimos antes, também ao nível local os partidos políticos são igualmente necessários mediadores entre eleitores e eleitos – ainda que tenham perdido o exclusivo dessa mediação por via da possibilidade, aberta pela revisão constitucional de 1997, de apresentação de candidaturas por grupos de cidadãos – por outro, o mandato dos eleitos locais não se encontra na dependência dos partidos ou grupos de cidadãos proponentes, como resulta do já referido artigo 23.º da Lei dos Partidos Políticos, sendo por eles exercido por todo o período da sua duração, conforme estipulado na lei[23], a menos dos casos previstos no artigo 8.º, n.º 1, da Lei da Tutela Administrativa[24], renúncia ou decesso, mantendo-se em funções até serem legalmente substituídos[25]. Por outro lado, os eleitos locais podem, por sua única e exclusiva iniciativa, suspender o seu mandato, a ele regressando, retomando-o, logo que cesse o motivo da suspensão[26].

Pode pois dizer-se que tal como os deputados parlamentares, de cujo regime se pode dizer constituir a matriz dos demais regimes dos deputados de outras assembleias políticas, os deputados municipais exercem livremente o seu mandato, sem se encontrarem dependentes e, menos ainda, estritamente vinculados a ordens ou instruções (mandatos) dos órgãos (designadamente locais) dos respectivos partidos.

2.3.2. Também ao nível local, os grupos parlamentares, aqui designados (se bem que pouco expressivamente) de grupos municipais, são constituídos, nos termos da lei, por vontade dos deputados municipais[27], aos quais assiste essa faculdade[28] – pelo que a sua constituição não se apresenta, à face da lei, como uma obrigação, pelo que também não pode ser imposta pelos regimentos[29].

Por outro lado os grupos municipais constituem-se por via de uma manifestação expressa daqueles que o hão-de vir a integrar – como resulta do facto de os grupos municipais serem instituídos por via de uma comunicação dirigida ao presidente da assembleia municipal, assinada pelos membros que o compõem (auto-constituição)[30] – e organizam-se da forma que por cada um seja estabelecida (auto-organização)[31].

E é a liberdade de escolha de que o deputado municipal goza nesta matéria, que lhe permite ou integrar um grupo municipal ou não integrar nenhum, exercendo o seu mandato como independente[32].

Temos portanto que a existência ou não existência de um grupo municipal ou a inclusão ou não inclusão nele de um deputado municipal não depende de qualquer vontade partidária mas simplesmente da (livre) decisão de cada um dos deputados integrantes. A única limitação que a lei coloca é que cada grupo municipal integre apenas eleitos propostos pelo mesmo partido ou grupo de cidadãos eleitores. Daqui resulta, como atrás já se viu[33], que:

            - a cada partido há-de corresponder apenas um grupo parlamentar (não podendo, portanto, haver desdobramentos do grupo parlamentar do mesmo partido)

- a cada grupo parlamentar há-de corresponder um só partido (não sendo admitidos grupos parlamentares mistos, integrados por deputados de diferentes partidos)

- no caso de coligações eleitorais podem os seus deputados (sem ser obrigatório) constituir um único grupo parlamentar, o qual, contudo não pode coexistir com grupos parlamentares dos partidos que formam a coligação.

 

2.4. A situação em análise

2.4.1. Na situação ora em causa, sucedeu que por razões que ora não importam pois que no presente âmbito carecem de qualquer relevância, o órgão político concelhio de um partido «retirou a “confiança política”» a vários dos seus deputados na assembleia municipal, na sequência do que comunicou ao Presidente da Assembleia Municipal a redução da composição do seu grupo municipal nesse órgão a apenas parte dos seus componentes originários (decerto aqueles no quais se mantinha a “confiança política” partidária) assim expulsando todos os demais, no quais se incluíam mesmo os membros da assembleia por inerência, como o são os presidentes da junta de freguesia.

Perante a não aceitação, pelo Presidente da Assembleia Municipal, dos pretendidos efeitos dessa comunicação, então os membros que se deveriam manter no grupo municipal dirigiram, eles mesmos, uma comunicação ao Presidente da Assembleia Municipal onde deram conta da recomposição do grupo municipal (por redução dos seus membros) e, por via disso, dos membros da sua nova direcção.

Ora esta comunicação, não subscrita pelos demais eleitos que fazem parte do mesmo grupo municipal, pretende significar, de facto, a sua exclusão (expulsão), sem que no entanto, ao que resulta dos elementos da consulta, estes hajam manifestado a sua vontade de abandonar o grupo ou haja sido tomada, pelo órgãos partidários, a mais da constatação da já referida perda de confiança política, qualquer posição interna, de natureza disciplinar, designadamente visando a sua expulsão do partido.

2.4.2. Certo é que inexiste em Portugal, ao contrário do que aconteceu no Brasil durante a vigência do texto constitucional introduzido pela Emenda Constitucional n.º 1 de 1969, a figura da “fidelidade partidária”, exigindo lealdade ao estatuto, programa e diretrizes legitimamente estabelecidas pelo partido (…) implicante, no caso de descumprimento, de sanção aplicada pela própria agremiação política[34]. Dizia o parágrafo único do artigo 152.º da Constituição da República Federativa do Brasil, vigente até à Constituição de 1988, que perderá o mandato no Senado Federal, na Câmara dos Deputados, nas Assembléias legislativas e nas Câmaras Municipais quem, por atitudes ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos de direção partidária ou deixar o partido sob cuja legenda foi eleito. A perda do mandato será decretada pela Justiça Eleitoral, mediante representação do partido, assegurado o direito de ampla defesa. Ainda hoje, apesar da mudança constitucional, a “fidelidade partidária” – designadamente a sua sua amplitude e efeitos - continua a ser temática discutida no Brasil[35].

2.4.3. No nosso país, como regra, não existe qualquer consequência directa sobre os mandatos eleitorais como efeito da infidelidade partidária. Na verdade, a Constituição nem sequer aborda tal questão. Contudo prevê a perda de mandato para o caso em que um deputado à Assembleia da República se venha a inscrever em partido diferente daquele pelo qual se apresentou a sufrágio e foi eleito[36], o que significa que caso um deputado seja expulso de um partido – designadamente por falta de confiança política ou por ostensiva infidelidade partidária – continua a exercer o seu mandato – a menos que a ele renuncie, o que como se vê não é nem necessário nem obrigatório – salvo se entretanto se filiar noutro qualquer partido político.

Do mesmo modo, no que toca às autarquias locais, também só haverá lugar à perda de mandato em qualquer dos órgãos electivos autárquicos apenas quando os eleitos após a eleição se inscrevam em partido diverso daquele pelo qual foram apresentados a sufrágio eleitoral[37]. Tal significa, portanto, que a expulsão de um partido não constitui, per se, causa bastante e suficiente para a cessação heterónoma do mandato do eleito e sua substituição por outro do mesmo partido, pois que mesmo expulso o eleito mantém‑se em funções como deputado independente.

O que é por dizer que os mandatos eleitorais não se encontram na dependência da vontade e disponibilidade dos partidos proponentes dos eleitos, pelo que estes não podem ser deles removidos ou desapossados unicamente por vontade e decisão dos seus partidos, sem quem se verifique uma das circunstâncias em que a lei admite essa cessação.

2.4.4. Podemos assim aproximar-nos de uma resposta as questões que foram colocadas. Temos então que se a expulsão de um partido (facto revestido sempre da natureza de decisão e sanção disciplinar a aplicar unicamente pelos competentes órgãos disciplinares), com a inerente quebra do vínculo da filiação partidária que ela acarreta, não constitui motivo suficiente para a cessação do mandato eleitoral do expulso, também uma decisão dos órgãos políticos a retirar a confiança politica a um filiado, eleito local (sem que isso constitua sanção disciplinar expulsiva ou afecte ou possa afectar, nos termos dos estatutos do partido, essa filiação), não pode, a fortiori, ter qualquer efeito sobre a continuidade do mandato desse eleito.

Tal significa que a menos que haja uma manifestação de vontade dos próprios membros eleitos no sentido do abandono do grupo municipal, não se afigura como legítimo que uma entidade externa ao grupo municipal, ainda que órgão do respectivo partido político, determine e comunique ao presidente da assembleia municipal a recomposição desse grupo municipal significando, consequencialmente, a exclusão (expulsão) de alguns dos seus membros e a redefinição dos membros da sua direcção, tanto mais quanto um dos excluídos é o representante designado do grupo municipal e faz parte do elenco da sua direcção original. 

2.4.5. De referir que num regime democrático, o governo interno dos grupos municipais há-de ser, também ele, um governo democrático, designadamente, no que toca à participação no órgão e formação da sua vontade, assente na regra da maioria.

Ora, sendo certo, como atrás vimos, que os mandatos dos eleitos aos quais foi retirada a confiança política não cessaram por tal facto e que os mesmos não só se mantém como eleitos, como se mantém como eleitos do partido proponente - pois que dele não foram expulsos e não se tem notícia da sua desfiliação voluntária - então é certo que os mesmos mantêm toda a legitimidade para participar nas reuniões do grupo municipal e nele deliberar, inclusivamente no que toca ao governo do grupo municipal[38].

2.4.6. Pode acontecer porém que os eleitos aos quais foi retirada a confiança politica não estejam mais na disposição de (voltar a) integrar o grupo municipal do seu partido. Nesse caso como poderão continuar a exercer o seu mandato? Poderão constituir novo grupo municipal? Terão que passar à qualidade de independentes? E neste caso, poderão constituir um grupo municipal de independentes?

A resposta a estas questões decorre do que anteriormente já foi dito.

Em primeiro lugar, os deputados em questão se pretenderem abandoar efectivamente o grupo municipal do seu partido não poderão criar um segundo grupo parlamentar do mesmo partido – pois que, tal como nos grupos parlamenteares, não é admissível a existência de desdobramentos de grupos municipais partidários.

Assim sendo, não resta aos eleitos que abandonem um grupo municipal senão passar, cada um deles, à condição de independente. Ora neste caso não se afigura como admissível a constituição de um grupo municipal de independentes, por tal carecer de lógica e de fundamento legal.

Em primeiro lugar, carece de lógica, pois que passando à qualidade de independentes, esses deputados não podem depois associar-se em grupo municipal - pois que os grupos assentam numa razão de identidade de ideias (ou de ideologia) e/ou defesa de objectivos comuns, (pro)posta a sufrágio, que não se coaduna com a independência. Daí que apenas sejam admitidos grupos municipais aglutinados com base em partidos, coligações de partidos ou grupos de cidadãos eleitores.

E esta constitui, precisamente, a (segunda) razão para a referida impossibilidade, agora expressa na letra da lei e, assim, retirando-lhe o fundamento legal: o n.º 1 do artigo 46.º‑B da Lei n.º 169/99 diz que os membros eleitos, bem como os presidentes de junta de freguesia eleitos por cada partido ou coligação de partidos ou grupo de cidadãos eleitores, podem associar-se para efeitos de constituição de grupos municipais, nos termos da lei e do regimento. E o regimento da assembleia municipal em causa[39] prevê exactamente o mesmo, como não podia deixar de ser.

 

Concluindo

  1. A existência ou não existência de um grupo municipal ou a inclusão ou não inclusão nele de um deputado municipal não depende de qualquer vontade partidária mas simplesmente da (livre) decisão de cada um dos deputados integrantes.
  2. A única limitação que a lei coloca nesse campo é que cada grupo municipal integre apenas eleitos propostos pelo mesmo partido ou grupo de cidadãos eleitores.
  3. Os deputados que abandonem um grupo municipal partidário não poderão criar um segundo grupo parlamentar do mesmo partido – pois que, tal como nos grupos parlamenteares, não é admissível a existência de desdobramentos de grupos municipais partidários.
  4. Aos eleitos que abandonem um grupo municipal não resta senão passar, cada um deles, à condição de independente.
  5. Não se afigura como admissível a constituição de um grupo municipal de independentes, por tal carecer de lógica e de fundamento legal.

 

 

Salvo semper meliori judicio

  

 

Ricardo da Veiga Ferrão

(Jurista. Técnico Superior)

 

[1] A Lei n.º 199/99, de 18 de Setembro, posteriormente alterada pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de Janeiro, rectificada pelas Declarações de Rectificação n.º 4/2002, de 06 de Fevereiro e n.º 9/2002, de 05 de Março, Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de Novembro, Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, e Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, estabelecia até à entrada em vigor da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, o regime jurídico do funcionamento e competências dos órgãos dos municípios e das freguesias.

[2] Jorge Miranda, Direito Constitucional III - Integração Europeia, Direito Eleitoral, Direito Parlamentar, 2001, pág. 213.

[3] Jorge Miranda, Direito Constitucional … cit, pág. 213.

[4] Jorge Miranda, Direito Constitucional … cit, pág. 234.

[5] Jorge Miranda, Direito Constitucional … cit, pág. 235. Actualmente é o artigo 180.º da Constituição que prevês e disciplina os grupos parlamentares.

[6] O Regimento da Assembleia da República consta do Regimento da Assembleia da República n.º 1/2007, de 20 de Agosto, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 96-A/2007, de 19 de Outubro e alterado pelo Regimento da Assembleia da República n.º 1/2010, de 14 de Outubro.

[7] Sobre as características dos grupos parlamentares vd. Jorge Miranda, Direito Constitucional … cit, pág. 235-236.

[8] Artigo 6.º, n.º 2 e 3, do Regimento da Assembleia da República.

[9] Artigo 7.º, n.º 1, do Regimento da Assembleia da República.

[10] Sobre os poderes dos grupos parlamentares vd. Jorge Miranda, Direito Constitucional … cit, pág. 236.

[11] Vd. Jorge Miranda, Direito Constitucional … cit, pág. 238.

[12] As candidaturas para Presidente da República são propostas por um mínimo de 7500 e um máximo de 15000 cidadãos eleitores - artigo 124.º, n.º 1, da CRP.

[13] As candidaturas [a deputado à Assembleia da República] são apresentadas, nos termos da lei, pelos partidos políticos, isoladamente ou em coligação - artigo 151.º, n.º 1, da CRP. O artigo 21, n.º 1, da Lei Eleitoral da Assembleia da República (Lei n.º 14/79, de 16 de Maio) dispõe em sentido idêntico 1.

No mesmo sentido dispõem também o artigo 28.º, n.º 1, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (Lei n.º 2/2009, de 12 de Janeiro) e o artigo 19.º, n.º 1, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto) relativamente às candidaturas às eleições para o respectivo parlamento regional (assembleia legislativa).

[14] Esta relevância dos partidos políticos resulta do facto de, como refere Jorge Miranda, Direito Constitucional … cit, pág. 238, hoje em dia, as eleições acarretam as candidaturas e as candidaturas acarretam a dominação dos partidos. E conclui: a apresentação das candidaturas é uma das principais funções dos partidos.

[15] Artigo 114.º, n.º 1, da CRP.

[16] Artigo 239.º, n.º 4, da CRP.

[17] Aprovada pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro.

[18] Vd. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª edição revista (reimpr.), 2014, pág. 735, VIII.

[19] Artigo 155, n.º 1, da CRP.

[20] Diz Jorge Miranda, Direito Constitucional … cit, pág. 213: de harmonia com a moderna doutrina da representação política (…) em vez de representante de grupos autónomos perante o Estado ele [o deputado] é o representante da nação, do povo todo; eleito pelos cidadãos considerados como tais, e daí tira a sua legitimidade; se os seus poderes provêm da Constituição, a sua investidura faz-se pela eleição; mas, dotado de um mandato político em nome do povo, apesar disso, não está adstrito a instruções ou ordens dos seu eleitores.

[21] Artigo 12.º, n.º 1, do Estatuto dos Deputados (Lei nº 7/93, de 1 de Março, alterada pela Lei nº 24/95, de 18 de Agosto, Lei nº 55/98, de 18 de Agosto, Lei nº 8/99, de 10 de Fevereiro, Lei nº 45/99, de 16 de Junho, Lei nº 3/2001, de 23 de Fevereiro (rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 9/2001, de 13 de Março), Lei n.º 24/2003, de 4 de Julho, Lei n.º 52-A/2005, de 10 de Outubro, Lei n.º 44/2006, de 25 de Agosto, Lei n.º 45/2006, de 25 de Agosto, Lei n.º 43/2007, de 24 de Agosto, e Lei n.º 16/2009, de 1 de Abril.

[22] Artigo 23.º da Lei dos Partidos Políticos (Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de Agosto, alterada pela Lei Orgânica n.º 2/2008, de 14 de Maio).

[23] A duração dos mandatos autárquicos é de quatro anos – artigo 75, n.º 2, da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro, alterada pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de Janeiro, (rectificada pelas Declarações de Rectificação n.ºs 4/2002, de 6 de Fevereiro, e 9/2002, de 5 de Março), Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de Novembro, Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro e Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março

[24] Lei n.º 27/96, de 1 de Agosto, alterada pela Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de Novembro e pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro.

[25] Artigo 80.º da Lei n.º 169/99.

[26] Artigo 77.º da Lei n.º 169/99.

[27] A expressão é usada aqui em sentido amplo de modo a abranger também os presidentes das juntas, membros por inerência das assembleias municipais.

[28] Diz o artigo 46.º-B da Lei n.º 169/99 que os membros eleitos, bem como os presidentes de junta de freguesia eleitos por cada partido ou coligação de partidos ou grupo de cidadãos eleitores, podem associar-se para efeitos de constituição de grupos municipais (…).

[29] Também Jorge Miranda, Direito Constitucional … cit, pág. 235, entende que a constituição de um grupo parlamentar é uma faculdade, não uma necessidade.

[30] Artigo 46.º-B, n.º 2, da Lei n.º 169/99.

[31] Artigo 46.º-B, n.º 3, da Lei n.º 169/99.

[32] Artigo 46.º-B, n.º 4, da Lei n.º 169/99.

[33] Vd. supra, 2.1.1.2.. e nota 7.

[34] Clèmerson Merlin Clève, Expulsão do partido por ato de infidelidade e parda do mandato, in Paraná Eleitoral, v. I, n.º 2, págs. 161-169, pág. 162, consultável em http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tre-pr-parana-eleitoral-revista-2-artigo-4-clemerson-merlin.

[35] Vd., p. ex. entre muitos, Adriana Campo Silva, Polianna Pereira dos Santos, O princípio da fidelidade partidária e a possibilidade de perda de perda de mandato por sua violação - Uma análise segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, in Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, ano 11, n.º 14, Julho-Dezembro 2013, págs. 13-34, acedível em http://www.editoraforum.com.br/ef/wp-content/uploads/2014/07/O-principio-da-fidelidade-partidaria.pdf, Álvaro Augusto Lauff Machado, Jackelline Fraga Pessanha, O partido politico na democracia representativa: o detentor legítimo das “cadeiras” eletivas, in Revista do Instituto de Direito Brasileiro - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ano 2 (2013), n.º 7, págs. 7281-7309, acedível em http://cidp.pt/publicacoes/revistas/ridb/2013/07/2013_07_07281_07309.pdf, Eliane Cruxên Barros de Almeida Maciel, Fidelidade Partidária: um panorama institucional, Consultoria Legislativa do Senado Federal, Textos Para Discussão 9, Junho 2004, acedível em https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-9-fidelidade-partidaria-um-panorama-institucional.

[36] Artigo 160.º, n.º 1, al. c) da CRP.

[37] Artigo 8.º, n.º 1, al. c), da Lei da Tutela Administrativa.

[38] Dos documentos enviados, não resulta claro o destino dos presidentes das juntas de freguesia que faziam parte do grupo municipal do partido em questão. Porem sendo membros da assembleia municipal por inerência, afigura-se que se deve considerar – a menos que manifestem expressamente vontade contrária - que eles continuam a fazer parte do grupo municipal por via dessa sua qualidade. Assim sendo, tanto eles como os membros aos quais foi retirada a confiança política (e que, todos conjuntamente, formam a maioria [absoluta] no grupo) podem participar nas deliberações do grupo municipal, designadamente no que toca à matéria da escolha dos seus dirigentes.

[39] Artigo 22.º, n.º 1, do Regimento da Assembleia Municipal de ….

By |2023-10-26T13:32:20+00:0002/08/2016|Pareceres Jurídicos até 2017|Comentários fechados em Grupos municipais (artigo 46-B da Lei 169/99 na red. Lei 5-A/2002).

Faltas por doença; férias.

 

Tendo em atenção o exposto no ofício n.º …, de …, da Câmara Municipal de …, sobre a matéria referenciada em epígrafe, cumpre informar de que, compulsada a informação anexa ao pedido de parecer, se constata ter sido, a questão controvertida, bem enquadrada e corretamente fundamentada, de facto e de direito, pouco nos ocorrendo que possa contribuir para infirmar ou reforçar o entendimento ali perfilhado.

 

Na verdade, analisada cuidada e pormenorizadamente a informação referida, afigura-se-nos pouco haver a acrescentar ao respetivo conteúdo que possa contribuir para um reforço da legalidade administrativa, quer quanto ao enquadramento jurídico factual quer quanto ao procedimento preconizado, pelo que é merecedora da nossa concordância.

 

Neste sentido, diga-se que, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 134.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas – abreviadamente, LTFP – aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, as faltas por doença, devidamente comprovada, são consideradas como justificadas, produzindo, como decorre da alínea a) do n.º 4 do mesmo preceito e diploma, os efeitos previstos no Código do Trabalho (cfr., o artigo 255.º deste código).

 

Mas, para além do exposto, prescreve o artigo 278.º da LTFP, na parte relevante, o seguinte:

“1 - Determina a suspensão do vínculo de emprego público o impedimento temporário por facto não imputável ao trabalhador que se prolongue por mais de um mês, nomeadamente doença.” (destacámos).

 

E porque, desta forma, nos vemos remetidos para os efeitos da suspensão do contrato no direito a férias, curial será referir transcrever, pela importância que assume, o artigo 129.º da LTFP, quando dispõe:

“1 - No ano da suspensão do contrato por impedimento prolongado, respeitante ao trabalhador, verificando-se a impossibilidade total ou parcial do gozo do direito a férias já vencido, o trabalhador tem direito à remuneração correspondente ao período de férias não gozado e respetivo subsídio.

2 - No ano da cessação do impedimento prolongado o trabalhador tem direito a férias nos termos previstos no artigo 127.º

3 - No caso de sobrevir o termo do ano civil antes de decorrido o prazo referido no número anterior ou antes de gozado o direito a férias, pode o trabalhador usufruí-lo até 30 de abril do ano civil subsequente.

4 - Cessando o contrato após impedimento prolongado respeitante ao trabalhador, este tem direito à remuneração e ao subsídio de férias correspondentes ao tempo de serviço prestado no ano de início da suspensão” (salientámos).

 

Porém, tendo-se suscitado dúvidas quanto aos efeitos decorrentes das normas transcritas, em matéria de férias e subsídio de férias, conforme o início e o termo da suspensão ocorressem no mesmo ano civil ou em anos civis diferentes, atenta a conhecida regra legal da aquisição do direito a férias em 1 de janeiro de cada ano, foi produzido, na sequência da Reunião de Coordenação Jurídica de 15 de maio de 2014, pela rede interministerial de trabalho colaborativo constituída entre a DGAL e a DGAEP, o entendimento que, pela sua pertinência, seguidamente se transcreve:

Quando a suspensão do contrato de trabalho em funções públicas se inicia e termina no mesmo ano civil, não produz quaisquer efeitos no direito a férias do ano em curso ou do ano seguinte, como se vê do n.º 4 do artigo 171.º do RCTFP. Quando a suspensão se inicia em determinado ano e termina no ano civil seguinte, o trabalhador, no ano da cessação do impedimento prolongado, tem direito a férias nos termos do n.º 2 do artigo 179.º do diploma citado. No ano seguinte a este bem como no ano do início da suspensão esta não se repercute no direito a férias.

Na LTFP o regime é semelhante e consta das disposições conjugadas dos artigos 278.º, 129.º e 127.º” (destacámos).

 

 

O técnico superior

 

(José Manuel Martins Lima)

By |2023-10-26T13:32:20+00:0025/07/2016|Pareceres Jurídicos até 2017|Comentários fechados em Faltas por doença; férias.

Declaração de reconhecimento de interesse do investimento para a região; Declaração de reconhecimento de interesse público.

 

Solicita o Presidente da Câmara Municipal de …, por seu ofício de …, referência n.º …, a emissão de parecer sobre a seguinte questão:

Recentemente, este Executivo Municipal tem sido confrontado com a necessidade de se pronunciar sobre pedidos de declarações apresentados por empresas, visando obter objetivos bem diferenciados, a saber:

  1. "Declaração de Reconhecimento do Interesse do Investimento para a Região, prevista no n.º 4 do artigo 23.º, do RFAI, inserido no Código Fiscal do Investimento - Decreto-Lei nº 162/2014, de 31 de Outubro, e destinada à obtenção de redução ou isenção de impostos municipais - lMl e lMT.
  2. "Declaração de Deliberação Fundamentada de Reconhecimento do Interesse Público Municipal", prevista na alínea a), do nº. 4, do artigo 5º, do Decreto-Lei nº 165/2014, destinada a instruir processo de viabilização de indústrias a laborar e não completamente licenciadas;

A emissão destas declarações é da responsabilidade da Assembleia Municipal, por proposta fundamentada da Câmara Municipal, conforme decorre da Lei nº 73/20I3, de 3 de setembro.

No decorrer da apreciação dos pedidos, da sua fundamentação e das respetivas deliberações tomadas pela Câmara Municipal, surgiram dúvidas na interpretação da Lei, ainda vigentes.

Assim, pergunta-se

DRIIR - Declaração referida no ponto 1.

  1. a) Se o pedido, analisado internamente pelos serviços técnicos da CM, e constatando que o mesmo não cumpre nenhum ou cumpre apenas alguns dos requisitos legais, previstos no artigo 22º do Código Fiscal do lnvestimento anexo ao Decreto-Lei nº 162/2014, de 31 de outubro, para beneficiar de eventual redução ou isenção dos impostos municipais em causa, deve, ou não, ser submetido à apreciação do Executivo Municipal?
  2. b) Se sim, tem o Executivo Municipal competência para fundamentar positivamente a proposta e submete-la à Assembleia Municipal, para esta reconhecer o interesse e emitir a respetiva declaração, sabendo que a requerente não satisfaz ou satisfaz apenas parcialmente as exigências da Lei aplicável?

DDFRIPM - Declaração referida no ponto 2.

  1. c) Se se verificar que a Câmara Municipal faz uma apreciação negativa, ou não suficientemente positiva sobre este pedido, razão por que delibera fundamentar negativamente a pretensão, deve, ou não, emitir a respetiva proposta e submetê-la à Assembleia Municipal?

 

Apreciando

  1. Do pedido

O presente pedido de parecer consubstancia-se em duas questões que apresentando-se formal e aparentemente como semelhantes, respeitam, contudo, a diferentes materialidades.

A primeira delas tem a ver com a emissão de uma declaração - declaração de reconhecimento do interesse do investimento para a região - exigida no âmbito e como requisito para atribuição de determinados benefícios fiscais[1], cuja emissão o Código Fiscal do Investimento[2] comete às assembleias municipais ainda que a declaração se refira a interesse para a região – situando-se, assim, no campo tributário e do apoio ao investimento (subsidiação/auxílios de Estado).

A segunda delas, no aspecto que para aqui releva, tem a ver igualmente com a emissão de uma declaração visando a regularização de situações (desconformes), mas agora no campo da gestão e ordenamento do território e urbanismo no espaço municipal e do licenciamento (regularização do licenciamento) de actividades económicas diversas aí instaladas (de forma irregular).

Questiona-se, quanto à primeira, se um pedido de um requerente, que ao ser analisado pelos serviços da camara se constata não preencher o requerente todos os requisitos legais, deve, ainda assim ser submetido à assembleia municipal e, em caso afirmativo, se a câmara municipal tem que fundamentar positivamente a proposta para que a assembleia reconheça positivamente o interesse regional, quando sabe que faltam requisitos legais ao requerente, pretenso beneficiário.

Quanto à segunda, a questão que se coloca é a de saber se quando a câmara municipal formula um juízo desfavorável, total ou parcialmente, à pretensão do requerente, denegando-lhe acolhimento, deve ainda assim submete-la à apreciação da assembleia municipal.

 

  1. Análise

2.1. O reconhecimento do interesse do investimento para a região previsto no artigo 23.º, n.º 4 do Código Fiscal do Investimento

2.1.1. De entre os diversos regimes de benefícios fiscais[3] previstos no Código Fiscal do Investimento, encontra-se o designado Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI)[4], com a natureza de auxílio de Estado com finalidade regional e, como tal, admitido pelo Regulamento (EU) n.º 651/2014[5].

2.1.1.1. O âmbito subjectivo do RFAI é definido no artigo 22.º, n.º 1, do CFI: podem dele beneficiar os sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º do mesmo código, e que são elencados na Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro.

2.1.1.2. Os benefícios fiscais concedidos no âmbito do RFAI consistem:

  1. na dedução à colecta de IRC[6] de uma percentagem[7] do valor das designadas aplicações relevantes[8], a efectuar a quando da liquidação de IRC respeitante ao período de tributação em que sejam realizadas as aplicações relevantes, até aos limites previstos no CFI[9];
  2. na isenção ou redução do IMI[10], aplicável de acordo com o previsto no CIMI;
  3. na isenção ou redução do IMT[11], aplicável de acordo com o previsto no CIMT;
  4. na isenção do Imposto de Selo[12], aplicável de acordo com o previsto no Código do Imposto de Selo.

2.1.2. Neste contexto, cabe sublinhar que quer o IMI quer o IMT são designados de “impostos municipais”[13], o que dá (a falsa) ideia de que eles não só são criados como são também administrados pelas autarquias locais, ao abrigo dos poderes tributários que a Constituição lhes confere[14]. Contudo, não é assim. Não só esses impostos (como todos os demais) são criados (lançados) por lei, por força do princípio (constitucional) da legalidade fiscal[15] (e, portanto, não são criados nem lançados pelas autarquias locais) como só o produto da sua cobrança é que verdadeiramente é municipal, constituindo receita do município onde é cobrado[16].

Por outro lado, em relação a qualquer desses impostos, todas as fases da respectiva gestão ou administração – ou seja, o seu lançamento, liquidação e respectiva cobrança – cabem a, e correm pela, administração fiscal do Estado, vulgo “finanças”[17].

2.1.2.1. Assim sendo, o reconhecimento da existência (verificação e declaração) ou a concessão[18] de benefícios fiscais em sede de IMI e IMT ‑ ou seja da isenção destes impostos ou da redução da sua imposição ‑ é tarefa que cabe exclusivamente à administração fiscal[19].

Contudo e apesar de assim ser, a lei prevê que em certos casos os municípios sejam chamados a pronunciar-se sobre (a concessão de) certos benefícios fiscais e, mais especificamente, quanto à própria gradação do benefício, quando a lei permita não só a isenção de imposto[20] mas também a redução da imposição fiscal (a operar, em regra, através ou da redução da taxa ou da matéria colectável)[21], em função dos objectivos a atingir com a concessão do beneficio.

2.1.3. A atribuição, no âmbito do RFAI, dos benefícios fiscais de natureza municipal (por incidirem sobre os imposto municipais sobre imóveis e sobre transmissão onerosa de imóveis) e, por essa razão, na dependência do poder tributário municipal[22], há-de pressupor necessariamente, antes do mais, e em razão de o concreto benefício a conceder poder consistir ou na isenção desses impostos ou na redução dos mesmos, a existência de normas (regulamentares ao nível do município) que disciplinem a essa concessão não só pela definição das concretas situações que mereçam o benefício como da gradação do benefício em função da ponderação (graduação) da relevância do investimento em termos do seu interesse para a região.

2.1.4. Definida que seja desse modo a fattispecie destes benefícios e analisado um dado pedido à luz da normação (regulamentar) aprovada para o efeito, coloca-se a questão de saber se face ao procedimento aprovatório previsto na lei – reconhecimento/concessão do benefício através deliberação fundamentada da assembleia municipal sob proposta da câmara – esta, (a câmara municipal) deverá submeter o pedido à apreciação da assembleia municipal mesmo quando constate que ele não preenche as exigências legais para o efeito (e que à autarquia caiba [e possa] controlar) (para que aquela se pronuncie negativamente, presume-se), ou se, de forma mais extreme, a câmara municipal deve fundamentar positivamente um pedido ainda que constate que o mesmo não se quadra, ou apenas o faz parcialmente, nos requisitos – na fattispecie – legal e/ou regulamentarmente estipulados para a sua concessão.

Curiosamente, as questões antes referidas merecem respostas de sentido opostos.

2.1.4.1. A primeira delas – saber se a câmara municipal deverá (sempre) submeter o pedido (de beneficio) à apreciação da assembleia municipal mesmo quando constate que ele não preenche as exigências legais para o efeito (e que à autarquia caiba [e ela possa] controlar) - merece resposta em sentido positivo, ou seja, caberá sempre (e unicamente) à assembleia municipal pronunciar-se em sentido positivo (reconhecendo) ou negativo (denegando o reconhecimento) sobre a verificação do interesse (público) municipal na concessão do benefício e a medida em que o mesmo deve ser concedido (sendo esse o caso), evidentemente louvando-se em proposta da câmara municipal.

2.1.4.2. A segunda questão – a que se prende com saber se a câmara municipal deve fundamentar positivamente um pedido ainda que constate que o mesmo não se quadra, ou apenas o faz parcialmente, nos requisitos – na fattispecie – legal e/ou regulamentarmente estipulados para a sua concessão – merece, obviamente, resposta negativa.

Na verdade, neste caso (como aliás em todos os casos) a assembleia municipal pronuncia-se sobre proposta camarária - não formula uma proposta própria; e a proposta da câmara deve basear-se e ter em conta a análise de todos os aspectos, e também os aspectos legais, que caibam dentro do seu poder de análise e proposta, razão pela qual a câmara municipal não pode nem deve, perante uma situação que se lhe afigura como não integralmente respeitadora do quadro normativo aplicável, ponderar uma proposta favorável à pretensão analisada e submetê-la assim à decisão da assembleia municipal. Na verdade, num caso assim, deve a proposta da câmara manifestar o seu pendor desfavorável à pretensão, para que a assembleia municipal a aprove nesse esse sentido.

2.1.4.3. Relativamente a ambas as referidas situações cabe realçar que:

  1. a) as razões que possam servir para fundamento de uma análise conducente a uma proposta negativa da câmara municipal (a ser posteriormente submetida à assembleia municipal) carecem, necessariamente, de caber dentro dos poderes de apreciação da câmara. Quer isto dizer que cabendo à administração fiscal conduzir o procedimento de concessão de benefícios fiscais, não pode a câmara municipal invocar argumentos que se situem fora ou para além do seu âmbito (material e procedimental) de intervenção para responder desfavoravelmente (e, obviamente, também de forma favorável), sob pena de vício de incompetência.
  2. b) em ambos os casos, essencial é que a administração (especialmente a câmara municipal) não faça silêncio sobre o assunto que lhe foi submetido, dispensando-se ou abstendo-se de se pronunciar (ainda que negativamente) sobre o pedido, alegadamente por, no seu entender, ele carecer de (qualquer) fundamento, e portanto, falecendo de argumentos que possam permitir a sua apreciação positiva (concedente) pela assembleia municipal[23].

 

2.2. A deliberação fundamentada de reconhecimento do interesse público municipal na regularização de estabelecimento ou instalação prevista no artigo 5.º, n.º 4, al. a) do Decreto-Lei n.º 165/2014, de 5 de Novembro – Regime excepcional e transitório de regularização de estabelecimentos industriais, explorações pecuárias, explorações de pedreiras e explorações onde se realizam operações de gestão de resíduos

 2.2.1. Na segunda das questionadas situações, a que a epígrafe supra alude, o que está em causa é o reconhecimento (também pela assembleia municipal sob proposta da câmara municipal) do interesse público municipal na regularização – compreendendo-se nesta não só a regularização stricto sensu mas também a alteração e a ampliação - de estabelecimentos industriais, explorações pecuárias, explorações de pedreiras e explorações onde se realizam operações de gestão de resíduos em situação irregular, mormente face ao disposto nos instrumentos de gestão territorial vigentes.

Nos termos da lei, à luz do Decreto-Lei n.º 165/2014, este reconhecimento constitui mesmo condição prévia indispensável para que se possa desencadear o processo de regularização das situações irregulares, mormente em matéria de desconformidade da localização com os instrumentos de gestão territorial vinculativos dos particulares, servidão administrativa ou restrição de utilidade pública (e, aparentemente, em face do que é dito na Portaria n.º 68/2015, de todo e qualquer pedido de regularização).

2.2.2. Também nesta situação o órgão competente para efectuar o reconhecimento do interesse público municipal é a assembleia municipal, sob proposta da câmara municipal. É quanto resulta do disposto na al. a) do n.º 4 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 165/2014, de 5 de Novembro, quando alude a deliberação fundamentada … emitida pela assembleia municipal, sob proposta da câmara municipal.

Desta norma podem-se já retirar algumas conclusões consequenciais.

A primeira é a de que o órgão competente para o reconhecimento (ou seja, para a prática de um acto administrativo com esse conteúdo) é a assembleia municipal através de uma sua deliberação aprovada na devida forma.

Porém, aqui, a lei não se basta com a mera aprovação da deliberação por votação maioritária, exigindo também que essa deliberação seja fundamentada. O que implica que a acta contenha não só a descrição da proposta e da sua aprovação como também os fundamentos em que assenta o sentido da mesma, que podem ser dados por remissão para a proposta da câmara caso o conteúdo desta seja adequado a ser considerado como fundamentação.

Por outro lado, se a deliberação da assembleia municipal pressupõe e assenta necessariamente em proposta da câmara municipal, então cabe à camara municipal apreciar todo e qualquer pedido que lhe seja apresentado e propor à assembleia a decisão que melhor considere de acordo com o (conforme ao) interesse público municipal, quer ela seja a de reconhecimento desse interesse quer a do seu não reconhecimento.

Serve isto por dizer que mesmo no caso em que a câmara municipal venha a considerar, tudo apreciado, que o caso constante da pretensão do requerente não se reveste de interesse público municipal pelo que não é susceptível de merece o seu reconhecimento pelo órgão deliberativo municipal, não deve nem pode deixar de submeter à assembleia municipal uma proposta nesse sentido (negativo), pois que só a ela, assembleia, cabe em ultima instância, reconhecê-lo ou não.

Qualquer pronúncia da câmara municipal que pretenda arvorar-se a decisão final do assunto constituirá um acto anulável, por incompetência (relativa)[24].

De referir ainda que à luz do princípio da decisão[25] todos os órgãos da Administração Pública têm o dever de se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência que lhes sejam apresentados e, nomeadamente, sobre os assuntos que aos interessados digam diretamente respeito (…), pelo que a pura e simples omissão de pronúncia sobre um pedido de particular (ainda que o desatendimento do pedido seja plenamente justificável) permite a este intentar uma acção administrativa contra a entidade omitente, visando a sua condenação à prática do acto administrativo devido[26].

2.2.3. De referir, epilograficamente, que tratando-se o Decreto-Lei n.º 165/2014, ora em apreço, de norma excepcional e transitória[27], estas aludidas situações estão necessariamente circunscritas no tempo, sendo insusceptíveis de continuidade e indefinida repetição.

  

 

Concluindo

= I =

  1. No âmbito do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI), previsto no Código Fiscal do Investimento, podem ser concedidos benefícios fiscais em sede de IRC sob a forma de dedução à colecta, em sede de IMI ou IMT sob a forma de isenção ou redução do imposto e em sede de Imposto do Selo sob a forma de isenção do imposto.
  2. Apesar do IMI e do IMT apresentarem a designação de “impostos municipais”, apenas o produto da sua cobrança é que verdadeiramente é municipal, constituindo receita do município onde é cobrado.
  3. Em relação a qualquer destes impostos, todas as fases da respectiva gestão ou administração – ou seja, o seu lançamento, liquidação e respectiva cobrança – cabem a, e correm pela, administração fiscal do Estado, vulgo “finanças”.
  4. Por essa razão, o reconhecimento da existência (verificação e declaração) ou a concessão de benefícios fiscais em sede de IMI e IMT, ou seja da isenção destes impostos ou da redução da sua imposição, constitui tarefa que cabe exclusivamente à administração fiscal.
  5. Contudo a lei prevê que em certos casos os municípios sejam chamados a pronunciar-se sobre (a concessão de) certos benefícios fiscais e, mais especificamente, quanto à própria gradação do benefício, quando a lei permita não só a isenção de imposto mas também a redução da imposição fiscal (a operar, em regra, através ou da redução da taxa ou da matéria colectável) , em função dos objectivos a atingir com a concessão do beneficio.
  6. A atribuição, no âmbito do RFAI, dos benefícios fiscais de natureza municipal (por incidirem sobre os imposto municipais sobre imóveis e sobre transmissão onerosa de imóveis) há-de pressupor necessariamente, antes do mais, a existência de normas (regulamentares ao nível do município) que disciplinem a essa concessão não só pela definição das concretas situações que mereçam o benefício, como da gradação do benefício em função da ponderação (graduação) da relevância do investimento em termos do seu interesse para a região.
  7. Definida que seja a fattispecie dos benefícios e analisado um dado pedido à luz da normação (regulamentar) aprovada para o efeito, a câmara municipal deverá submeter sempre o pedido à apreciação da assembleia municipal mesmo quando constate que ele não preenche as exigências legais para o efeito (e que à autarquia caiba [e possa] controlar) pois que, em todo o caso, cabe unicamente à assembleia municipal pronunciar-se em sentido positivo (reconhecendo) ou negativo (denegando o reconhecimento) sobre a verificação do interesse (público) municipal na concessão do benefício e sobre a medida em que o mesmo deve ser concedido (sendo esse o caso), louvando-se, para o efeito, em proposta da câmara municipal.
  8. No caso em que a câmara municipal constate que um pedido não se quadra, ou apenas o faz parcialmente, nos requisitos – na fattispecie – legal e/ou regulamentarmente estipulados para a concessão do benefício, a proposta da câmara deve basear-se e ter em conta a análise de todos os aspectos, e também os aspectos legais que caibam dentro do seu poder de análise e proposta, pelo que a sua proposta deve manifestar o seu pendor desfavorável à pretensão, para que a assembleia municipal a aprove nesse esse sentido.
  9. As razões que possam servir para fundamento de uma análise conducente a uma proposta negativa da câmara municipal carecem de caber dentro dos poderes de apreciação da câmara, não podendo a câmara municipal invocar argumentos que se situem fora ou para além do seu âmbito (material e procedimental) de intervenção para responder desfavorável ou favoravelmente, sob pena de incompetência.
  10. Não pode a administração (especialmente a câmara municipal) fazer silêncio sobre o assunto que lhe foi submetido a apreciação, dispensando-se ou abstendo‑se de se pronunciar sobre ele (ainda que negativamente), alegadamente por, no seu entender, ele carecer de (qualquer) fundamento, e portanto, fenecendo-lhe razões que possam levar à sua apreciação positiva (concedente) pela assembleia municipal.

 

= II =

  1. O reconhecimento pela assembleia municipal sob proposta da câmara municipal do interesse público municipal na regularização, alteração e ampliação de estabelecimentos industriais, explorações pecuárias, explorações de pedreiras e explorações onde se realizam operações de gestão de resíduos em situação irregular, designadamente quanto aos instrumentos de gestão territorial vigentes, previsto no Decreto-Lei n.º 165/2014, constitui condição prévia indispensável para que se possa desencadear o processo de regularização dessas situações, mormente em matéria de desconformidade da localização com os instrumentos de gestão territorial vinculativos dos particulares, servidão administrativa ou restrição de utilidade pública.
  2. Resulta do disposto na al. a) do n.º 4 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 165/2014, de 5 de Novembro, quando alude a deliberação fundamentada … emitida pela assembleia municipal, sob proposta da câmara municipal que:
    1. o órgão competente para o reconhecimento (ou seja, para a prática de um acto administrativo com esse conteúdo) é a assembleia municipal através de uma sua deliberação aprovada na devida forma.
    2. tal deliberação deve ser fundamentada. devendo a acta conter não apenas a descrição da proposta e sua aprovação como também os fundamentos em que assenta o sentido da mesma, os quais podem resultar de remissão para a respectiva proposta da câmara, caso possa ser considerada apta para tal.
  3. Cabe à camara municipal apreciar todo e qualquer pedido que lhe seja presente e levar à assembleia municipal a proposta que, sobre ele, melhor considere de acordo com o (e conforme ao) interesse público municipal, quer ela seja a de reconhecimento desse interesse quer a do seu não reconhecimento.
  4. Mesmo no caso de a câmara municipal considerar que o caso constante da pretensão do requerente não se reveste de interesse público municipal não deve nem pode deixar de submeter à assembleia municipal uma proposta, em sentido negativo, pois que só à assembleia municipal cabe pronunciar-se, reconhecendo ou não a existência desse interesse.
  5. Qualquer pronúncia da câmara municipal que pretenda ter a natureza de decisão final do assunto constituirá um acto anulável, por incompetência (relativa).
  6. À luz do princípio da decisão, todos os órgãos da Administração Pública têm o dever de se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência que lhes sejam apresentados e, nomeadamente, sobre os assuntos que aos interessados digam diretamente respeito (…).
  7. A pura e simples omissão de pronúncia sobre um pedido de particular (ainda que o desatendimento do pedido seja plenamente justificável) permite a este intentar uma acção administrativa contra a entidade omitente, visando a sua condenação à prática do acto administrativo devido.

  

Salvo sempre meliori judicio

  

Ricardo da Veiga Ferrão

(Jurista. Técnico Superior)

 

[1] Mais precisamente, no âmbito do designado Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI), previsto no capítulo III do CFI.

[2] O Código Fiscal do Investimento (CFI) foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de Outubro, rectificado pela Declaração de Retificação n.º 49/2014, de 1 de Dezembro, e alterado pela Lei n.º 7‑A/2016, de 30 de Março.

[3] Entende-se por benefícios fiscais, à luz do disposto no Estatuto dos Benefícios Fiscais (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de Julho, com posteriores alterações) as medidas de carácter excepcional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem (artigo 2.º, n.º 1, do EBF), e que podem assumir a forma de isenções, (…) reduções de taxas, (…) deduções à matéria colectável e à colecta, (…) amortizações e reintegrações aceleradas e outras medidas fiscais (…) (artigo 2.º, n.º 2, do EBF).

De sublinhar que os benefícios fiscais são considerados despesas fiscais, as quais podem ser previstas no Orçamento do Estado ou em documento anexo e, sendo caso disso, nos orçamentos das Regiões Autónomas e das autarquias locais (artigo 2.º, n.º 3, do EBF).

[4] Artigo 1.º, n.º 1, al. b), e Capítulo III (artigos 22.º a 26.º) do CFI.

[5] Artigo 1.º, n.º 2, do CFI.

[6] Artigo 23.º, n.º 1, al. a), do CFI.

[7] As diferentes percentagens são as definidas nas subal. 1) e 2) da al. a), do n.º 1, do artigo 23.º do CFI.

[8] O CFI considera aplicações relevantes os investimentos efectuados no elenco de activos constante do artigo 22.º, n.º, 2 do CFI, desde que se encontrem afectos à exploração da empresa.

[9] Artigo 23.º, n.º 2, do CFI.

[10] Artigo 23.º, n.º 1, al. b), do CFI.

[11] Artigo 23.º, n.º 1, al. c), do CFI.

[12] Artigo 23.º, n.º 1, al. d), do CFI.

[13] Diz o artigo 2.º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, que este diploma aprova (…) o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) (…)  e  (…) o Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT) (…) .

[14] Artigo 238.º, n.º 4, da Constituição.

[15] Vd. artigo 103.º, n.º 2, da Constituição.

[16] É o que resulta do disposto no artigo 14.º, als. a) e b), do Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais, constante da Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro, com posteriores alterações, ao afirmar que constituem receitas municipais …. o produto da cobrança do … IMI e do IMT.

Portanto, mas não unicamente por esta razão, apesar dos impostos em causa apresentarem a designação pomposa de Imposto Municipal, ambos continuam a ter uma feição manifestamente estadual. Sobre esta questão vd. José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 6.ª edição, 2010, págs. 56-60 (edição consultada; porém, há edição mais recente: 9.ª edição, 2016).

[17] Cfr. José Casalta Nabais, Direito Fiscal cit, págs. 57, e A Autonomia Financeira das Autarquias Locais, 2007, pág. 41-42.

[18] Como se diz em nosso anterior Parecer 100/2016, os benefícios fiscais ou operam automaticamente (benefícios automáticos) por resultarem directa e imediatamente da lei ou carecem de ser reconhecidos (benefícios dependentes de reconhecimento) pressupondo um ou mais actos posteriores de reconhecimento [Artigo 5.º, n.º 2, do EBF] os quais podem consistir em um acto administrativo ou em um acordo entre a administração fiscal e os interessados [Artigo 5.º, n.º 3, do EBF], regulando-se o respectivo processo pelo disposto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário [Artigo 5.º, n.º 4, do EBF].

[19] Diz-se no antecitado nosso Parecer 100/2016:

2.1.2.1. O artigo 15.º do RFALEI diz que os municípios, relativamente a impostos e outros tributos a cuja receita tenham direito, podem ter os poderes tributários para a sua liquidação e cobrança(26). Porém, tais poderes só existirão nos municípios nos termos a definir por diploma próprio - facto que ainda não ocorreu.

[(26) Artigo 17.º, n.º 4, do RFALEI. O artigo 17.º, n.ºs 2 e 3, do RFALEI prevê a possibilidade de, no quadro que vier a ser definido em diplomas específicos, ainda inexistentes, as câmaras municipais virem a deliberar proceder à cobrança dos impostos municipais, pelos seus próprios serviços ou pelos serviços da entidade intermunicipal que integram, desde que correspondente ao território da NUTS III ou então, poderem transferir a competência de cobrança dos impostos municipais para o serviço competente das entidades intermunicipais que integrem. Em qualquer dos casos, porém, a lei nunca fala da liquidação, pelo que a competência para esta residirá sempre nos serviços do Estado, enquanto não houver diploma que especificamente venha regular a competência para o seu exercício.]

Temos assim, portanto, que aos municípios não assiste qualquer poder para a prática de actos de liquidação e cobrança dos ditos impostos municipais – IMI, IMT e derramas – os quais continuam a ser liquidados e cobrados nos termos (…) [da] respectiva legislação, pelos serviços do Estado (administração tributária/”finanças”), razão pela qual as câmaras remuneram o Estado pela realização de tais tarefas(27), transferindo este, posteriormente, para cada autarquia a respectiva receita dos imposto cobrados, líquida dos referidos encargos(28).

[(27) Artigo 15.º, al. b), do RFALEI.]

[(28) Artigo 17.º, n.º 5, do RFALEI.]

[20] No caso da isenção (total) a decisão passa unicamente por, de modo binário, conceder/ não conceder o benefício/isenção.

[21] Respigando ainda o nosso citado Parecer 100/2016:

(…)os (…) [benefícios fiscais dinâmicos ou incentivos ou estímulos fiscais] visam incentivar ou estimular determinadas actividades, estabelecendo para o efeito, uma relação entre as vantagens atribuídas e as actividades estimuladas em termos de causa-efeito. Enquanto naqueles a causa do benefício é a situação ou actividade em si mesma, nestes a causa é a adopção (futura) do comportamento beneficiado ou o exercício (futuro) da actividade fomentada.(24)

[(24)JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal cit, págs. 434.]

Por estas razões e face ao quadro de óbvia indeterminabilidade e variação das potenciais situações a considerar, bem se compreende (…) [não só] que os incentivos fiscais, que não raro assumem carácter selectivo ou mesmo altamente selectivo, tenham carácter temporário, (…) como a liberdade do legislador, mormente para conceder uma margem de livre decisão à administração tributaria, tenha necessariamente de ser maior do que aquela de que dispõe em sede dos benefícios fiscais estáticos.(25)(sublinhado nosso)

[(25) JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal cit, págs. 435.]

2.1.1.5. Se atendermos agora ao facto de que também os benefícios fiscais são definidos na base de uma fattispecie, temos que se quanto a alguns deles, todos os elementos de que depende a sua atribuição são previstos na lei, outros, em especial aqueles que visam criar estímulos ou incentivos dirigidos a determinadas actividades (económicas) que o poder decisório (“político”) pretende desenvolver, incentivar ou potenciar, através modulação da sua atribuição de acordo

com a “intensidade” com que a actividade económica prevê atingir ou cumprir os parâmetros para “beneficiação”, então nesse caso a lei, prevendo o quadro geral de existência do benefício fiscal, deixa contudo, para outrem, a graduação paramétrica necessária à sua aplicação, tanto mais quanto são plúrimos e de difícil previsão legal os critérios e circunstância a atender na modulação da beneficiação fiscal.

2.1.1.6. Assim, do ponto de vista que temos vindo a analisar, outra coisa se não pode concluir a respeito da norma do n.º 9 do artigo 16.º do RFALEI senão a de que o quadro dos poderes tributários das autarquias locais quanto à existência de benefícios fiscais que neles possam caber, e em especial a isenções totais ou parciais (e, como vimos antes, a redução de taxas) carece sempre de (prévia) previsão legal. O que não quer dizer que todos os elementos necessários à determinação (em concreto) do benefício fiscal hajam de estar imperiosamente plasmados na lei, pois que esta pode deixar (ou pode não ter outra alternativa senão deixar) a outros níveis de normação – designadamente regulamentar – o poder de fixação dos parâmetros práticos para a sua concreta aplicação tendo em conta e em função dos resultados que se pretende atingir com a concessão do benefício.

Aliás, tendo presente os princípios gerais da actividade administrativa, que as câmaras municipais devem precipuamente observar, designadamente os princípios da legalidade, justiça, transparência, prossecução do interesse público e imparcialidade, devem aquelas fixar em regulamento as circunstâncias e parametrizações à luz das quais poderão ser concedidos os benefícios fiscais relativamente aos quais a lei deixa que outra entidade, no caso as camaras municipais, venham definir tais elementos, indispensáveis para que possam ser aplicados. O que não parece ser admissível é que as câmaras municipais possam conceder esses benefícios, de forma casuística e discricionária, sem que sejam publicamente conhecidos os critérios e parâmetros que podem conduzir à sua concessão.(…)

[22] Vd. José Casalta Nabais, A Autonomia Financeira cit., pág. 35.

[23] Em matéria de dever de decisão também a administração fiscal se encontra sujeita a um princípio de decisão (artigo 56.º da LGT) à luz do qual a administração tributária está obrigada a pronunciar-se sobre todos os assuntos da sua competência que lhe sejam apresentados por meio de reclamações, recursos, representações, exposições, queixas ou quaisquer outros meios previstos na lei pelos sujeitos passivos ou quem tiver interesse legítimo.

Por outro lado, a não conclusão do procedimento tributário (sendo que a concessão de certos benefícios fiscais, como é o caso, desenvolve-se através de procedimento próprio – artigo 54.º, n.º 1, al. d), da LGT, artigo 44.º, n.º1, al. d), e artigo 65.º do CPPT) dentro do prazo legalmente definido para o efeito (quatro meses – artigo 57.º, n.º 1, da LGT), faz presumir o (…) indeferimento [do pedido] para efeitos de recurso hierárquico, recurso contencioso ou impugnação judicial (artigo 57.º, n.º 5, da LGT).

[24] Vd. Diogo Freitas do Amaral, com a colaboração de Pedro Machete e Lino Torgal, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 2.ª edição, págs. 427 e 458.

[25] Artigo 13.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo.

[26] Artigo 66.º, n.º 1, e artigo 67.º, n.º 1, al. a), do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

[27] Nos termos do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 165/2014, os pedidos de regularização, alteração ou ampliação (…) devem ser apresentados no prazo de um ano a contar da data da entrada em vigor do presente decreto-lei.

Tendo este diploma entrado em vigor no 1.º dia útil do segundo mês seguinte ao da sua publicação (artigo 24.º), ou seja, em 1 de Janeiro de 2015, deixará de vigorar (por inutilidade) logo que todos os pedidos apresentados no prazo nele fixado (ou seja até 1 de Janeiro de 2016), sejam apreciados e (definitivamente) decididos.

By |2023-10-26T13:32:20+00:0012/07/2016|Pareceres Jurídicos até 2017|Comentários fechados em Declaração de reconhecimento de interesse do investimento para a região; Declaração de reconhecimento de interesse público.

Subsídio de turno; férias e subsídio de férias.

 

Tendo em atenção o exposto pelo ofício n.º …, de …, da Câmara Municipal de …, sobre o assunto referenciado em epígrafe, cumpre tecer as seguintes considerações:

 

Debruçando-nos sobre a única questão, de entre as referidas no pedido de parecer, relativamente à qual nos é solicitada reflexão, valerá salientar que resulta do disposto no artigo 146.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas – abreviadamente, LTFP –, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, aplicada à administração local pelo Decreto-lei n.º 209/2009, de 3 de setembro (cfr., n.º 3 do artigo 42.º da Lei n.º 35/2014), que a remuneração dos trabalhadores que exercem funções públicas ao abrigo de relações jurídicas de emprego público é composta pela remuneração base (com o montante fixado na tabela remuneratória única), pelos suplementos remuneratórios e pelos prémios de desempenho.

 

E, no artigo 150.º da LTFP, dispõe-se que:

“1 - A remuneração base é o montante pecuniário correspondente ao nível remuneratório da posição remuneratória onde o trabalhador se encontra na categoria de que é titular ou do cargo exercido em comissão de serviço.

2 - A remuneração base anual é paga em 14 mensalidades, correspondendo uma delas ao subsídio de Natal e outra ao subsídio de férias, nos termos da lei.”

 

Por seu turno, diz-nos o artigo 159.º da LTFP que são suplementos remuneratórios os acréscimos remuneratórios devidos pelo exercício de funções em postos de trabalho que apresentam condições mais exigentes relativamente a outros postos de trabalho caracterizados por idêntico cargo ou idênticas carreira e categoria e que os suplementos remuneratórios são devidos a quem ocupe aqueles postos de trabalho e exerça efetivamente as funções a eles inerentes, perdurando enquanto se mantiverem as condições de trabalho que determinaram a sua atribuição.

 

Mais resulta do preceito citado que os suplementos podem fundamentar-se em condições de caráter transitório (ex.: trabalho suplementar e trabalho noturno) ou em situações de caráter permanente (ex.: trabalho por turnos, secretariado de direcção e isenção de horário).

 

Ora, estabelece o n.º 1 artigo 152.º da LTFP que “a remuneração do período de férias corresponde à remuneração que o trabalhador receberia se estivesse em serviço efetivo, com exceção do subsídio de refeição.”

 

Parece-nos, assim, poder concluir-se que, em face do disposto nas normas transcritas, durante o período de férias, tendo o trabalhador direito à remuneração que receberia se estivesse em serviço efetivo, deverá esta remuneração incluir os suplementos remuneratórios decorrentes de situações de caráter permanente, de que o subsídio de turno é exemplo, em virtude de perdurarem as condições de trabalho que determinaram a sua atribuição, de igual modo se devendo concluir relativamente a todas as ausências ao serviço legalmente equiparadas a serviço efetivo e que não pressuponham a substituição da remuneração mensal por prestação pecuniária de natureza diferente, de que são exemplo as elencadas no pedido de parecer.

 

Mas, se assim nos parece poder concluir-se relativamente à remuneração a que o trabalhador tem direito durante as férias, de forma claramente distintiva regulou o legislador no tocante ao montante do subsídio de férias.

 

De facto, dispondo o n.º 2 do artigo 152.º da LTFP, que “além da remuneração mencionada no número anterior, o trabalhador tem direito a um subsídio de férias de valor igual a um mês de remuneração base mensal, que deve ser pago por inteiro no mês de junho de cada ano ou em conjunto com a remuneração mensal do mês anterior ao do gozo das férias, quando a aquisição do respetivo direito ocorrer em momento posterior”, outra conclusão não se poderá retirar – atenta a caracterização dos componentes da remuneração a que acima se alude – que não seja a de que não subsistirá fundamentação jurídica que sustente a ponderação ou a inclusão dos suplementos remuneratórios (no caso, do subsídio de turno) no cálculo do montante do subsídio em apreço.

 

 

O técnico superior

 

(José Manuel Martins de Lima)

 

By |2023-10-23T10:11:46+00:0012/07/2016|Pareceres Jurídicos até 2017|Comentários fechados em Subsídio de turno; férias e subsídio de férias.

Senhas de presença; Remuneração; Presidente do Conselho Fiscal; Exercício de funções em regime de tempo inteiro.

 

Recebemos do Presidente de Junta de Freguesia um pedido de parecer sobre as seguintes questões:

 

  • Um Presidente de Junta de Freguesia a exercer o cargo a tempo inteiro, em regime de exclusividade, pode exercer o cargo de Presidente do Conselho Fiscal de uma Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, sendo este cargo remunerado?
  • Deverá informar a Assembleia de Freguesia?
  • Deve comunicar à DGAL?

 

I

 

As incompatibilidades são um corolário do princípio constitucional da imparcialidade – artigo 266º nº 2 da CRP – e significam a impossibilidade de acumular simultaneamente dois cargos ou funções por a lei considerar em abstrato, independentemente da pessoa em concreto que os acumula, que essa acumulação é suscetível de pôr em causa a isenção e imparcialidade exigida ao cargo.

A PGR, no parecer nº 100/82, de 27/07/82, refere que « as incompatibilidades visam proteger a independência das funções » e  Vital  Moreira e Gomes Canotilho[1] referem que o sistema das incompatibilidades visa garantir não só o princípio da imparcialidade da Administração mas também o princípio da eficiência ( boa administração ).

O exercício de funções nos órgãos autárquicos é incompatível com o desempenho efetivo dos cargos ou funções elencados no artigo 221 º da lei orgânica 1/2001, de 14 de Agosto.

Muito pelo contrário, o exercício cumulativo de outras atividades públicas ou privadas deixou de ser considerado incompatível com o exercício de funções autárquicas, dado o que estabelecia o artigo 6 º da Lei nº 64/93, de 26/08.

Efetivamente, o nº1 do art. 6º da Lei nº 64/93, de 26 de Agosto, repristinado na sua redação originária pela Lei nº 12/98, de 24 de Fevereiro, estabelecia que “ Os presidentes e vereadores de câmaras municipais, mesmo em regime de permanência, a tempo inteiro ou parcial, podem exercer outras atividades, devendo comunicá-las, quando de exercício continuado, quanto à sua natureza e identificação, ao Tribunal Constitucional e à assembleia municipal, na primeira reunião desta a seguir ao início do mandato ou previamente à entrada em funções nas atividades não autárquicas ”, aplicável às freguesias, por remissão do artigo 11 º da lei n º 11/96, de 18 de abril.

A norma do referido artigo 6 º deve, presentemente, ser lida à luz do que ora se dispõe, sobre a matéria, no Estatuto dos Eleitos Locais, após as alterações nelas introduzidas pela Lei nº 52-A/2005, de 10 de Outubro.

Em reunião de coordenação jurídica realizada em 18/10/2005, entre a DGAL, as CCDR, a DRAPL Madeira e a DROAP Açores, ao abrigo do despacho n º 6695/2000, publicado no DR,  II série, n º  74, de 28/03/2000, concluiu-se o seguinte:

 

«Os números 1 e 2 do artigo 3 º da lei n º 29/87, de 30/06 (EEL), alterada pela lei n º 52-A/2005, de 10/10, revogaram tacitamente os n ºs 1 e 2 do artigo 6 º da lei n º 64/93, de 26/08, dado que contêm a mesma redação, com exceção da expressão «a tempo inteiro ou parcial» expressa no revogado n º 1».

 

É o seguinte o texto dos números 1 e 2 deste artigo 3 º:

 

«1-Os presidentes e vereadores de câmaras municipais, mesmo em regime de permanência, podem exercer outras atividades, devendo comunicá-las, quando de exercício continuado, quanto à sua natureza e identificação, ao Tribunal Constitucional e à assembleia municipal, na primeira reunião desta a seguir ao início do mandato ou previamente à entrada em funções nas atividades não autárquicas.

2- O disposto no número anterior não revoga os regimes de incompatibilidades e impedimentos previstos noutras leis para o exercício de cargos ou atividades profissionais.»

 

Posto isto, resulta claro do nº 1 deste artigo 3 º do Estatuto dos Eleitos Locais ( EEL ), aplicável às freguesias por remissão do artigo 11 º da lei n º 11/96, de 18 de abril,  que os eleitos locais, mesmo em regime de permanência, podem exercer outras atividades - públicas ou privadas - para além das que exercem como autarcas.

Permite assim a lei, neste artigo, a acumulação dos cargos de eleitos, mesmo em regime de permanência, com o exercício de outras atividades, sejam públicas ou privadas, dado que não se faz qualquer distinção quanto à sua natureza.

No entanto o sistema legal vigente exceciona duas situações sobre as quais não permite a referida acumulação:

  • Quando as funções públicas a acumular correspondam a titulares de órgãos de soberania, de cargos políticos ou de altos cargos públicos, que devam ser exercidos em regime de exclusividade;
  • Quando as funções a exercer correspondam a outros cargos ou atividades profissionais relativamente aos quais outras leis estabeleçam regimes de incompatibilidades ou impedimentos de acumulação com as referidas funções autárquicas (art. nº2 do artigo 3 º do atual EEL).

 

Assim o Presidente da Junta de Freguesia enquanto titular destes cargos pode acumular com outras atividades públicas ou privadas mas essas outras atividades é que poderão estabelecer algumas incompatibilidades.

 

Nestes termos, não havendo incompatibilidade na acumulação em causa enquanto eleito importará averiguar se no regime jurídico das Caixas de Crédito Agrícola Mútuo existe alguma incompatibilidade quanto à ocupação do cargo de Presidente do Conselho Fiscal por um eleito local.

 

Ora, analisando o referido regime (Decreto-Lei n º 24/91, de 11 de janeiro, na redação dada pelo Decreto-Lei n º 142/2009, de 16 de junho), verificamos ser tal incompatibilidade inexistente (artigo 23 º).

 

 

 

II

Não existindo incompatibilidade na acumulação dos cargos, importará agora averiguar os efeitos remuneratórios de tal acumulação.

 

Antes iremos, ainda, tecer umas breves considerações sobre o regime remuneratório dos eleitos locais em regime de permanência (tempo inteiro) das juntas de freguesia.

 

O valor base da remuneração do presidente da junta de freguesia em regime de permanência é fixado por referência ao vencimento base atribuído ao Presidente da República, de acordo com os escalões seguintes, nos termos do n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 11/96, de 18 de abril:

- Freguesias com mais de 20 000 eleitores – 25%;

- Freguesias com mais de 10 000 e menos de 20 000 eleitores – 22%;

- Freguesias com mais de 5 000 e menos de 10 000 eleitores – 19%;

- Freguesias com menos de 5 000 eleitores – 16%.

 

Os eleitos locais em regime de tempo inteiro (e de meio tempo) têm direito a dois subsídios extraordinários anuais, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 5.º e do artigo 14.º do EEL, aplicável aos eleitos das freguesias por remissão do artigo 11 º da lei n º 11/96.

 

Se o presidente de junta (ou vogal em regime de tempo inteiro) acumular o exercício do seu cargo com outras funções, continuará a exercê-las em regime de tempo inteiro (permanência), mas essa acumulação poderá ter efeitos remuneratórios na sua remuneração base, prescritos no artigo 7.º do EEL.

O artigo 7.º do EEL respeita apenas aos efeitos remuneratórios da acumulação de outras funções públicas ou privadas pelos eleitos locais em regime de tempo inteiro.

De facto, a acumulação de atividades pelos eleitos em regime de meio tempo consta do artigo 8.º do EEL, não havendo quaisquer efeitos remuneratórios para quem acumular atividades estando neste regime nem, obviamente, para quem exercer funções de autarca em regime de não permanência.

Assim, se um eleito a tempo inteiro acumular as suas funções de autarca com atividades privadas não remuneradas, continua a receber a sua remuneração a 100%.

 

É a seguinte a atual redação das alíneas a) e b) do n º 1 do artigo 7 º do EEL, com a redação da lei n.º 52-A/2005, de 10 de outubro:

 

 “Artigo 7.º

1 – [...]

  1. a) Aqueles que exerçam exclusivamente funções autárquicas, ou em acumulação com o desempenho não remunerado de funções privadas, recebem a totalidade das remunerações previstas no artigo anterior;
  2. b) Aqueles que exerçam funções remuneradas de natureza privada percebem 50% do valor de base da remuneração, sem prejuízo da totalidade das regalias sociais a que tenham direito;

…..”.

 

Com esta redação dada pela Lei n.º 52-A/2005, de 10 de outubro, ao artigo 7.º, diferenciam-se agora os efeitos remuneratórios resultantes da acumulação das funções de eleito local a tempo inteiro com outras funções privadas ou públicas.

Assim, com esta nova redação a acumulação com outras atividades privadas não remuneradas não tem efeitos remuneratórios, enquanto que a acumulação com atividades privadas remuneradas reduz em 50% a remuneração dos autarcas.

 

Haverá, assim, que determinar, para efeitos de aplicação da citada norma duas questões de facto:

  • Poderá ser considerada uma atividade profissional o exercício do cargo de Presidente do Conselho Fiscal de uma Caixa de Crédito Agrícola Mútuo?
  • As senhas de presença, com previsão de um teto fixo mensal de auferimento máximo, durante doze meses, poderão ser equiparadas a remuneração?

 

O parecer da PGR n º 77/2002 – compl. , publicado no Diário da República , II série, de 1 de julho de 2004,  considera que a expressão atividade ( função ) privada constante da alínea b) do n º 1 do artigo 7 º do EEL , tem conotação profissional, equivalendo a « forma de ganho de vida», tendo, em princípio, como contrapartida, qualquer compensação económica».

Ora, os órgãos sociais – administração e fiscalização - da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, de acordo com o seu regime jurídico, aprovado pelo decreto-lei n º 24/91, de 11/01, alterado pela última vez pelo Decreto-Lei n º 142/2009, de 16/06, são estruturados segundo as modalidades previstas para as sociedades anónimas no Código das Sociedades Comerciais (CSC), com as devidas adaptações.

Por sua vez, este CSC, dado o alargamento dos deveres e competências do Conselho Fiscal, atribuiu, através da alteração dada pelo Decreto-Lei n º 76-A/2006, expressamente aos membros do Conselho Fiscal o direito a uma remuneração, a fixar pela assembleia geral ou comissão de remunerações, tendo em conta a dimensão da sociedade, as funções desempenhadas e a situação económica da sociedade (artigos 399 º, n º 1, e 422 º-A, n º 2).

Ou seja, dado o alargamento de competências destes conselhos fiscais, maxime em determinado tipo de sociedades anónimas de certa dimensão, permitiu-se a «funcionalização» dos membros do Conselho Fiscal, sendo a sua atividade considerada uma atividade profissional, e por essa via remunerada.

Ora, não só o regime jurídico da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo remete para essas normas do CSC, como referimos, como tal é expressamente consagrado no n º 2 do seu artigo 24 º (« O exercício efetivo dos cargos dos membros dos órgãos de administração ou de fiscalização pode ser remunerado, de acordo com o que seja definido pela assembleia geral.»).

Ora, no caso presente ao ter sido determinada expressamente uma remuneração aos membros do Conselho Fiscal da Caixa de Crédito Agrícola de Águeda (propõe-se ao Presidente do Conselho Fiscal desta Caixa Agrícola uma remuneração através de pagamento de um valor fixo, por reunião a que estejam presentes – senha de presença, sendo o valor máximo mensal o indicado (875 €, 12 meses), significa que se considera que há o desempenho de uma atividade profissional que, como tal, deve ser remunerada.

Refira-se, ainda, que o Código do IRS considera como rendimentos de trabalho dependente as remunerações dos membros dos órgãos estatutários das pessoas coletivas de entidades equiparadas, com exceção dos que neles participem como revisores oficiais de contas.

 

Conclusão:

  • Não há incompatibilidade na acumulação do Cargo de Presidente de Junta de Freguesia em regime de permanência (tempo inteiro) com o cargo de Presidente do Conselho Fiscal de uma Caixa de Crédito Agrícola Mútuo;

 

  • No entanto, aqueles que exerçam funções remuneradas de natureza privada percebem 50% do valor de base da remuneração, sem prejuízo da totalidade das regalias sociais a que tenham direito, nos termos da alínea a), do n º 1 do artigo 7 º do EEL;

 

  • Um presidente do Conselho Fiscal uma Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, com as competências que tem que exercer, exerce um atividade profissional, sendo por esse facto remunerado, de acordo com o n º 2 do seu artigo 24 º da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo;
  • Nestes termos, o Presidente de Junta de Freguesia em regime de permanência, tempo inteiro, deve passar a perceber 50 % valor de base da remuneração, e as despesas de representação por inteiro (dado que estas não estão incluídas na remuneração base);
  • O presidente de Junta deve comunicar as atividades que vai acumular ao Tribunal Constitucional e à assembleia de freguesia, na primeira sessão previamente à entrada em funções nas atividades não autárquicas (n º 2 do artigo 3 º do EEL, por remissão do artigo 11 º da lei n º 11/96);
  • Deve ser também comunicada à DGAL a acumulação em causa e os seus efeitos remuneratórios, especialmente se a remuneração do Presidente de Junta provem do orçamento de Estado;

 

Maria José L. Castanheira Neves

  

(Diretora de Serviços de Apoio Jurídico e à Administração Local)

 

[1] J. J. Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993,  pag 948.

 

 

By |2023-10-23T10:15:24+00:0011/07/2016|Pareceres Jurídicos até 2017|Comentários fechados em Senhas de presença; Remuneração; Presidente do Conselho Fiscal; Exercício de funções em regime de tempo inteiro.

Amamentação e aleitação; períodos de duração.

 

Tendo em atenção o exposto por e-mail de …, da União de Freguesias de …, sobre a matéria referenciada em epígrafe, cumpre tecer as seguintes considerações:

 

Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 4.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas – abreviadamente, LTFP – aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, “é aplicável ao vínculo de emprego público, sem prejuízo do disposto na presente lei e com as necessárias adaptações, o disposto no Código do Trabalho e respetiva legislação complementar com as exceções legalmente previstas, nomeadamente em matéria de … parentalidade” [alínea d)].

 

Consequentemente, não podemos eximir-nos de chamar à colação o disposto nos artigos 47.º e 48.º do Código do Trabalho, normas que, respetivamente, contêm o regime regulador das dispensas para amamentação ou aleitação bem como dos procedimentos que devem ser adotados em tal matéria.

 

E, no que à questão concretamente formulada diz respeito, assumirá particular relevância o disposto no n.º 1 do artigo 47.º quando, sem margem para qualquer equívoco, estabelece que a mãe que amamenta o filho tem direito a dispensa de trabalho para o efeito (intercalamos nós, nos termos previstos nas restantes normas daquele dispositivo legal, nomeadamente, nos seus n.ºs 3, 4 e 5), durante o tempo que durar a amamentação.

 

Atente-se, a propósito, que, ao contrário da dispensa para amamentação, as dispensas para aleitação só podem ser concedidas até o filho perfazer 1 ano de idade (cfr., n.º 2 do preceito).

 

Aqui chegados, pertinente será referir o regime constante do n.º 1 artigo 48.º, quando prescreve que “para efeito de dispensa para amamentação, a trabalhadora comunica ao empregador, com a antecedência de 10 dias relativamente ao início da dispensa, que amamenta o filho, devendo apresentar atestado médico se a dispensa se prolongar para além do primeiro ano de vida do filho (salientámos).

 

Em face do exposto, importará concluir não existir norma que imponha um limite máximo de duração para as dispensas ao trabalho por motivo de amamentação, conquanto seja feita a respetiva prova, para além do primeiro ano de vida do filho, mediante apresentação de atestado médico.

 

 O técnico superior

 

(José Manuel Martins Lima)

 

By |2023-10-26T13:32:20+00:0030/06/2016|Pareceres Jurídicos até 2017|Comentários fechados em Amamentação e aleitação; períodos de duração.

CIM; competências dos órgãos.

 

 

Solicitou-nos a Comunidade Intermunicipal da Região de … que a esclarecêssemos relativamente a três questões relacionadas com as competências dos seus órgãos, o que faremos de seguida, nos seguintes termos:

 

1 ª Questão:

O n º 10 do artigo 35 º do Orçamento de Estado para 2016 determina que nas autarquias locais o parecer previso no n º 5 do mesmo artigo (contratos de prestação de serviços nas modalidades de tarefa e de avença) é da competência do Presidente do órgão executivo (nos municípios o Presidente da Câmara).

Questiona-nos a CIM (Comunidade Intermunicipal) da Região de … qual será o órgão com competência para emitir o referido parecer, a nível das próprias CIM.

 

Em nossa opinião, atendendo a que o trabalho em funções públicas pode ser prestado mediante vínculo de emprego público ou contrato de prestação de serviços (n º 1 do artigo 6 º da Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas, lei n º 35/2014, de 20 de junho) e tendo o Secretariado Executivo Intermunicipal competências de gestão e direção dos recursos humanos[1], competências essas que a nível municipal são desempenhadas pelo Presidente da Câmara[2], consideramos que a competência para emitir o parecer previsto no n º 10 do artigo 35 º do Orçamento de Estado para 2016 pertence, por analogia, ao Secretariado Executivo Intermunicipal.

  

2 ª Questão:

A qual dos órgãos da CIM está atribuída a atribuição de despesas de representação, atendendo a que a nível municipal as despesas de representação são fixadas pela Assembleia Municipal, sob proposta do Presidente da Câmara, nos termos do n º 2 do artigo 24 º da lei n º 49/2012, de 29 de agosto?

 

Em nossa opinião, tal competência pertence ao Conselho Intermunicipal, sob proposta do Secretariado Executivo Intermunicipal, com fundamento nas diversas competências atribuídas a estes dois órgãos pela Lei n º 77/2015, de 29 de julho, que estabelece o regime jurídico da organização dos serviços das entidades intermunicipais e o estatuto do respetivo pessoal dirigente.

Analisando a referida lei verifica-se que não foi atribuída qualquer competência à Assembleia Intermunicipal quer em matéria de organização de serviços quer no âmbito do pessoal dirigente.

Mais as competências que no âmbito do Decreto-Lei n º 305/2009, de 23 de outubro (organização de serviços municipais) são atribuídas à Assembleia Municipal (artigo 6 º Decreto-Lei n º 305/2009, de 23 de outubro ), são no que respeita aos serviços intermunicipais atribuídas aos Conselhos Intermunicipais ( artigo 4 º da  Lei n º 77/2015, de 59/07). Aliás, o que bem se compreende, pelo facto dos Conselhos Intermunicipais serem um órgão deliberativo, para além de serem também órgãos executivos.

Como se comprova, não se pode nem deve ser feita qualquer analogia entre as competências da Assembleia Municipal e as competências da Assembleia Intermunicipal, no âmbito que estamos a analisar, por não terem sido legalmente atribuídas à Assembleia Intermunicipal quaisquer competências em matéria de organização de serviços, pessoal dirigente ou em gestão de recursos humanos. Concordamos, assim, com a CIM de … no que respeita aos órgãos competentes para a aprovação de despesas de representação, ou seja tal competência pertence ao Conselho Intermunicipal, sob proposta do Secretariado Executivo Intermunicipal.

  

  1. A CIM questiona-nos, ainda, qual o órgão com competência para outorgar contratos respeitantes a procedimentos cuja autorização de despesa compita ao Conselho Intermunicipal.

 

Ora a resposta à questão formulada está expressamente prescrita no n º 1 do artigo 106 º do Código dos Contratos Públicos, tendo sido a norma em questão retificada pela Declaração de Retificação n º 18-a/2008, de 28/03/2008.

Assim, a referida norma estabelece que na outorga do contrato, a representação das entidades adjudicantes referidas nas alíneas a) a c), f) e g) do n º 1 do artigo 2 º cabe ao órgão com competência para a decisão de contratar.

Ora, sendo a CIM uma associação pública de municípios (vide o n º 1 do artigo 63 º da lei n º 75/2013, de 12 de setembro), está expressamente contida na alínea f) do citado n º 1 do artigo 2 º do Código dos Contratos Públicos, pelo que a outorga dos referidos contratos competirá ao órgão com competência para contratar.  

Assim, nos casos em que a competência para contratar pertence ao Conselho Intermunicipal, por ser este o órgão com competência para autorizar despesas, competirá ao Presidente do Conselho Intermunicipal, nos termos da alínea b) do artigo 92 º da lei 75/2013 (compete ao presidente do Conselho Intermunicipal assegurar a representação institucional da comunidade intermunicipal).

 

Quando a competência para contratar pertença ao Secretariado Executivo Intermunicipal, nos termos da alínea h) do n º 1 do artigo 96 º da lei n º 75/2013, de 12/09, também competirá a este órgão outorgar os respetivos contratos, nos termos do n º 1 do artigo 106 º do Código dos Contratos Públicos.

 

Maria José L. Castanheira Neves

 

(Diretora de Serviços de Apoio Jurídico e à Administração Local)

 

 

[1] Vide a alínea n) do n º 1  artigo 96 º da mesma lei 75/2013, de 12 de setembro.

[2] Vide a alínea a) do n º 2 do artigo 35 º da lei n º 75/2013, de 12 de setembro.

By |2023-10-26T13:32:20+00:0022/06/2016|Pareceres Jurídicos até 2017|Comentários fechados em CIM; competências dos órgãos.

Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos.

 

Solicita o Presidente da Câmara Municipal da …, por seu ofício de …, referência …, a emissão de parecer sobre a seguinte questão:

O Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de janeiro, que aprovou o regime jurídico do acesso e exercício de atividades de comércio, serviços e restauração, doravante designado abreviadamente RJACSR, procedeu à liberalização dos horários de funcionamento dos estabelecimentos comerciais, alterando o regime dos horários de funcionamento dos estabelecimentos comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/96, de 15 de maio, alterado pelos Decretos-Leis n.º 126/96, de 10 de agosto, 111/2010, de 15 de outubro e 48/2011, de 1 de abril, estabelecendo que os estabelecimentos de venda ao público, de prestação de serviços, de restauração ou de bebidas, os estabelecimentos de restauração ou de bebidas com espaço para dança ou salas destinadas a dança, ou onde habitualmente se dance, ou onde se realizem, de forma acessória, espetáculos de natureza artística, os recintos fixos de espetáculos e de divertimentos públicos não artísticos têm horário de funcionamento livre.

Nos termos do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 48/96, de 15 de maio, com a redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de janeiro, a Câmara Municipal pode restringir os períodos de funcionamento, a vigorar em todas as épocas do ano ou apenas em épocas determinadas, em casos devidamente justificados e que se prendam com razões de segurança ou de proteção da qualidade de vida dos cidadãos.

Dispõe ainda o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 48/96, de 15 de maio, na sua atual redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de janeiro, que os órgãos municipais devem adaptar os regulamentos municipais sobre horários de funcionamento em função do novo n.º 1 do artigo 1.º ou do artigo 3.º do citado diploma.

Em cumprimento da referida imposição legal e ao abrigo do n.º 1 do artigo 56.º do Regime Jurídico das Autarquias Locais, aprovado pela Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, a Câmara Municipal, em 15 de outubro de 2015, deliberou, nos termos do disposto no artigo 98.º do Código do Procedimento Administrativo (doravante designado CPA), dar início ao procedimento referente à aprovação do Regulamento Municipal dos Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos de Venda ao Público e de Prestação de Serviços.

Em 26 de novembro de 2015, conforme preceituado no n.º 1 do artigo 101.º do CPA, a Câmara Municipal deliberou submeter a consulta pública, pelo período de trinta dias, o Projeto de Regulamento Municipal dos Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos de Venda ao Público e de Prestação de Serviços, tendo para o efeito o mesmo sido publicado na 2.ª Série do Diário da República n.º …, de … de 2016.

Além disso e conforme se extraí da nota justificativa do regulamento em apreço, foi concedida a audiência regulamentar às entidades representativas dos interesses afetados.

Nesta senda, rececionámos duas petições, uma subscrita pela Associação Comercial e Industrial da … e outra por um interessado, titular da exploração de um estabelecimento de restauração, em que sumariamente, defendem que o projeto de regulamento não produz uma restrição casuística indexada a situações ou casos devidamente justificados, antes produz uma discriminação genérica e em bloco, de grupos e conjuntos de estabelecimentos, transformando a exceção na regra.

Ora é um facto que o princípio adotado pela atual legislação é o da completa liberdade de horário de funcionamento da generalidade dos estabelecimentos.

Não obstante e dado que a legislação assim o permite, a Câmara Municipal da … por concluir, da experiência registada aquando da vigência do Regulamento do Horário dos Estabelecimentos Comerciais do Município da …, que o equilíbrio entre os vários e legítimos interesses em presença era adequado e tendo em conta, designadamente, razões de segurança e de proteção da qualidade de vida dos cidadãos, entendeu oportuno e necessário limitar os períodos de funcionamento dos estabelecimentos.

Acontece que no concelho da … não existem áreas destinadas predominantemente a diversão noturna, onde se concentram estabelecimentos de restauração e bebidas, em regra, os estabelecimentos, encontram-se dispersos, na sua maioria junto de habitações ou mesmo no piso térreo de edifícios habitacionais. Face a esta especificidade, não foi possível delimitar a restrição dos períodos de funcionamento dos estabelecimentos em função de áreas geográficas ou a arruamentos em concreto.

Neste sentido, no exercício de poderes jurídico-administrativos, em prol da segurança e qualidade de vida dos munícipes e de forma a garantir a sã convivência de todos os interessados, pugnou-se por assegurar, através de normas gerais e abstratas, mecanismos de equilíbrio adequados por forma a harmonizar os interesses dos operadores económicos já instalados, e o direito ao sossego e ao repouso dos moradores, classificando-se os estabelecimentos de venda ao público e de prestação de serviços em seis grupos e fixando‑se limites para os períodos de funcionamento ao público para cada um deles.

Ora, nas petições apresentadas, os interessados perfilham o entendimento que será necessário tratar cada um dos estabelecimentos integrados nos grupos definidos, enquanto "casos devidamente justificados" ao invés de tratar cada grupo de estabelecimentos como um todo e que, em consequência, o projeto de regulamento em apreço, ao estipular as restrições por grupos, regula de forma diversa o sentido e permissão da Lei habilitante.

Por isso, atento o dissenso questiona-se se a restrição dos períodos de funcionamento dos estabelecimentos de venda ao público e de prestação de serviços da forma como está estabelecida no projeto de regulamento, através da fixação genérica para cada grupo de estabelecimentos de venda ao público e de prestação de serviços tem acolhimento face ao estabelecido na Lei habilitante.

Acresce que, na elaboração do projeto do regulamento, foram analisadas e apensas ao processo administrativo diversas reclamações de ruído, participações das forças de segurança, queixas de munícipes, sobre alguns dos estabelecimentos de bebidas localizados no concelho da …. Acontece que não possuímos, para cada grupo definido no artigo 7.º do projeto do regulamento, antecedentes que objetivamente sustentem a necessidade de restrição dos períodos de funcionamento, ou seja, não existem fundamentos, relacionados com cada grupo, que a atividade é passível de pôr em perigo a segurança e proteção da qualidade de vida dos cidadãos. Independentemente disso, a fixação dos limites dos períodos de funcionamento para cada um dos grupos foi definida tendo em consideração a proteção da segurança e qualidade de vida dos munícipes e sem descurar o equilíbrio entre os vários e legítimos interesses em presença.

Por outro lado, tendo em atenção a posição dos interessados, é sabido que o n.º 1 do artigo 4.º RJACSR estabelece a obrigatoriedade da Câmara Municipal adaptar os regulamentos sobre os horários de funcionamento em função do previsto no n.º 1 do artigo 1.º, ou seja, a plena e total liberalização dos horário de funcionamento dos estabelecimentos, ou ao disposto no artigo 3.º, a restrição dos horários de funcionamento, em casos devidamente justificados.

No âmbito dessa exigência, perfilhamos o entendimento que o regulamento tem de concretizar um dos regimes previstos, uma vez que a Lei habilitante não prevê a coexistência de ambos, ao invés, confere a faculdade de optar entre o regime livre ou a restrição, não existindo fundamento para a convivência de ambos.

Perante este entendimento, feita a opção pelo preceituado no artigo 3.º do RJACSR, e conforme referido em supra, criaram-se restrições para seis grupos de estabelecimentos e sobre cada um fixou-se os limites dos períodos de funcionamento.

Com efeito, a redação do artigo 3.º do RJACSR condiciona a possibilidade de restrição dos períodos de funcionamento a casos devidamente identificados, que justifiquem a aplicação da exceção por razões de segurança e proteção da qualidade de vida dos cidadãos. Neste sentido, permanece uma dúvida, caso a Câmara Municipal não fixasse limites para alguns dos grupos de estabelecimentos de venda ao público e de prestação de serviços, qual o regime que lhes seria aplicável?

Por último, refere a DULCE LOPES (DULCE LOPES, Repercussões do licenciamento zero na gestão (urbanística) municipal, Direito Regional e Local n.º 17 - Janeiro/Maio 2012, pp. 24), relativamente à definição dos horários dos estabelecimentos, que “( ..) já nos quer parecer que, como a definição, em concreto, de tais horários compete, única e exclusivamente, ao titular da exploração, deixa de ser possível prever alargamentos ou reduções baseados em intervenções casuísticas, por exemplo, impor restrições de horário, oficiosamente, para um certo estabelecimento, com base em queixas apresentadas por munícipes.”

Para DULCE LOPES estas situações têm de ser geridas através dos mecanismos dispostos no Regulamento Geral do Ruído, "deixando de se usar (...) a redução do horário do estabelecimento como forma ad hoc de sancionar actividades que eram desenvolvidas de forma ruidosa (ou alegadamente ruidosa) por privados."

Voltando ao Projeto de Regulamento, este no n.º 1 do artigo 13.º dispõe que "o período de funcionamento de determinado estabelecimento, ou estabelecimentos, pode ser restringido oficiosamente ou a pedido de quem tenha legitimidade processual, nos termos do Código do Procedimento Administrativo, em casos devidamente justificados e que se prendam com razões de segurança e proteção da qualidade de vida dos cidadãos, a vigorar em todas as épocas do ano ou apenas em épocas determinadas."

Neste contexto, questionamos se o regulamento pode verter uma norma de restrição dos períodos de funcionamento ou, colhendo o entendimento expresso, devemos sonegar a aludida norma e deixar que situações de debelação da incomodidade, da segurança e proteção da qualidade de vida dos cidadãos e de reposição da ordem pública, sejam resolvidas através de outros mecanismos legalmente previstos, por outras instâncias ou entidades públicas.

 

Apreciando

  1. Do pedido

Genericamente, a questão que vem de ser colocada prende-se com saber se à face da (nova) disciplina sobre o acesso e exercício de actividades de comércio, serviços e restauração, contida no Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de Janeiro, que tornou o exercício de tais actividades independente – na significação de não dependente – de qualquer permissão administrativa que vise especificamente a atividade em causa, salvo em situações excecionais expressamente previstas[1], se ainda se mantém a possibilidade (ou seja, o poder) de as autarquias locais definirem de forma genérica (geral) – e portanto, através de intervenção regulamentar – os períodos (“janelas”) temporais (diários e/ou outros) dentro dos quais pode ter lugar o funcionamento de tais estabelecimentos, como ainda parece permitir o Decreto-Lei n.º 48/96, de 15 de Maio, na sua actual redacção, e para cuja observância por parte dos estabelecimentos de venda ao público, de prestação de serviços e de restauração ou bebidas abrangidos pelo RJACSR remete o artigo 31.º do mesmo, ou se, radicalmente em contrário, as câmaras municipais deixaram de ter poder de intervenção na matéria, cedendo ao livre arbítrio dos agentes económicos a disciplina e organização em matéria de horários de funcionamento (abertura e encerramento) dos estabelecimentos, restando-lhes intervir apenas e quando a lei o determine ou caso a paz e harmonia sociais, ou seja a ordem e tranquilidade públicas, sejam reiterada e objectivamente postas em causa e terceiros clamem por tutela, mesmo que, até (se chegar a) esse ponto, a aludida liberdade de estabelecimento possa ter significado uma desmedida compressão e até postergação de valores (direitos), eventualmente direitos fundamentais, desses mesmos terceiros que veem reclamando a sua protecção.

  

  1. Análise

2.1. Enquadramento legal

A questão colocada é posta na sequência da elaboração municipal de regulamento municipal dos horários de funcionamento dos estabelecimentos de venda ao público e prestação de serviços, e como sequela da disciplina prevista no Decreto-Lei n.º 10/2015 no que respeita ao acesso e exercício de actividades de comércio, serviços e restauração, a jusante da iniciativa designada por “licenciamento zero”, a qual, visando simplificar a vida aos cidadãos e às empresas, designadamente no que toca ao regime do exercício de diversas actividades económicas, intentou reduzir encargos administrativos sobre os cidadãos e as empresas, mediante a eliminação de licenças, autorizações, validações, autenticações, certificações, actos emitidos na sequência de comunicações prévias com prazo, registos e outros actos permissivos, substituindo-os por um reforço da fiscalização sobre essas actividades[2].

Em razão destas modificações, a abertura e exploração de estabelecimentos de restauração e bebidas deixou de carecer de licenciamento prévio e passou a estar apenas dependente, em regra, de uma mera comunicação prévia de instalação dirigida ou à câmara municipal ou à Direcção Geral das Actividades Económicas[3].

E em consequência do – ou por via do – que neles ora se previa quanto ao acesso e exercício das actividades em questão, o Decreto-Lei n.º 48/96[4], diploma que disciplina o [novo] regime dos horários de funcionamento dos estabelecimentos comerciais, com excepção dos respeitantes às grandes superfícies contínuas, passou a dispor[5] que os estabelecimentos de venda ao público, de prestação de serviços, de restauração ou de bebidas, os estabelecimentos de restauração ou de bebidas com espaço para dança ou salas destinadas a dança, ou onde habitualmente se dance, ou onde se realizem, de forma acessória, espetáculos de natureza artística, os recintos fixos de espetáculos e de divertimentos públicos não artísticos têm horário de funcionamento livre[6] (sublinhado nosso). 

Contudo, ainda que assim seja, o artigo 31.º do RJACSR dispõe que os estabelecimentos de venda ao público, de prestação de serviços e de restauração ou bebidas abrangidos pelo RJACSR devem observar o disposto no Decreto-Lei n.º 48/96, de 15 de maio, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 126/96, de 10 de agosto, 111/2010, de 15 de outubro, e 48/2011, de 1 de abril, quanto ao respetivo horário de funcionamento[7] (sublinhado nosso).

Deste modo, mesmo que, por um lado, os estabelecimentos de venda ao público, de prestação de serviços, de restauração ou de bebidas, (…) [tenham] horário de funcionamento livre, e, por outro, a definição do horário de funcionamento de cada estabelecimento (…), as suas alterações e o mapa referido no número anterior não [estejam] sujeitos a qualquer formalidade ou procedimento, sem prejuízo de serem ouvidas as entidades representativas dos trabalhadores, nos termos da lei[8], certo é que a lei continua a conferir às câmaras municipais, ouvidos os sindicatos, as forças de segurança, as associações de empregadores, as associações de consumidores e a junta de freguesia onde o estabelecimento se situe, [o poder de] restringir os períodos de funcionamento, a vigorar em todas as épocas do ano ou apenas em épocas determinadas, em casos devidamente justificados e que se prendam com razões de segurança ou de proteção da qualidade de vida dos cidadãos[9] para efeito do que devem os municípios adaptar devidamente os regulamentos municipais sobre horários de funcionamento destes estabelecimentos.

 

2.2. Os poderes de polícia administrativa

A matéria em questão enquadra-se no âmbito daquilo que a doutrina denomina de polícia administrativa.

Marcello Caetano define esse instituto jurídico da polícia administrativa como o modo de actuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das actividades individuais susceptíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objecto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que as leis procuram prevenir[10].

Dito de outro modo:

La police administrative est l’action de l’administration destinée à sauvegarder l’ordre public et qui, à cette fin, réglemente les activités privées.

Cette définition conduit à se demander ce que recouvre la notion d’ordre public. Celle-ci est traditionnellement définie à partir d’une trilogie (…) correspondant à ce que la doctrine a pu nommer «l’ordre public matériel et extérieur» (Maurice Hauriou), c’est-à-dire la sécurité publique (prévention des dommages aux personnes et aux biens), la salubrité publique (protection de la santé et de l’hygiène) et la tranquillité publique (prévention des perturbations de la rue, du tapage nocturne, etc.).[11]

A polícia (administrativa) constitui, pois, um modo de exercício da actividade administrativa[12].

Tipicamente a polícia administrativa exerce-se ou manifesta-se através de prescrições. E ainda que não se possa confundir o poder regulamentar com o poder de polícia[13], certo é que é normal e desejável que as medidas de polícia se manifestem, principal e primeiramente, pela via regulamentar[14].

Ora, a definição, pelas câmara municipais, através da forma regulamentar – portanto, efectuada de modo geral e abstracto – do funcionamento dos estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços que desenvolvam a sua actividade na respectiva circunscrição territorial, recai precisamente nesse âmbito da polícia administrativa, como nele recai igualmente o poder de determinação – novamente de forma geral e abstracta - dos períodos do dia (e da noite) em que tais estabelecimento podem estar abertos aos público, dito, em funcionamento, nessa medida acomodando (restringindo ou condicionando) a sua liberdade de funcionamento (que não é, não pode ser, por natureza, uma liberdade total e irrestrita), com outros relevantes interesses da comunidade.

É que em boa verdade, não se pode dizer que o facto do acesso e exercício às atividades de comércio, serviços e restauração (…), bem como o exercício dessas atividades em regime de livre prestação, não [estarem] sujeitos a qualquer permissão administrativa que vise especificamente a atividade em causa – ou, como se dizia no Decreto-Lei n.º 48/2011 especificamente quanto a horários de funcionamento, [ser] proibida a sujeição do horário de funcionamento e do respectivo mapa a licenciamento, a autorização, a autenticação, a validação, a certificação, a actos emitidos na sequência de comunicações prévias com prazo, a registo ou a qualquer outro acto permissivo – possa querer significar – porque efectivamente não significa - a retirada do poder de polícia administrativa às autarquias locais e a concessão, aos agentes económicos, de uma total e irrestrita liberdade de fixação, ad libitum, dos períodos de funcionamento dos seus estabelecimentos, sem que haja de atender aos circunstancialismos (e consequentes limitações) que inevitavelmente o facto incontornável da vida se desenvolver em comunidade, inelutavelmente acarreta.

E é por isso que não obstante o facto desses estabelecimentos de venda ao público, de prestação de serviços, de restauração ou de bebidas, (…) [terem] horário de funcionamento livre e de a definição do [seu] horário de funcionamento (…), as suas alterações e o mapa referido no número anterior não [estarem] sujeitos a qualquer formalidade ou procedimento, sem prejuízo de serem ouvidas as entidades representativas dos trabalhadores, nos termos da lei, esta mesma lei continua a conferir às câmaras municipais o poder de elaborar regulamentos municipais sobre horários de funcionamento ou de adaptar os existentes, agora, naturalmente, em função desta nova realidade[15], mas sem deixar de poder restringir os períodos de funcionamento, a vigorar em todas as épocas do ano ou apenas em épocas determinadas, em casos devidamente justificados e que se prendam com razões de segurança ou de proteção da qualidade de vida dos cidadãos[16].

E nem se diga que esta eventual restrição apenas pode ocorrer se determinada caso a caso, quanto a um (e apenas para cada) estabelecimento, de modo reactivo (quando se verifique qualquer situação infraccional), mesmo que se trate de e estejam em causa locais ou zonas onde existam plúrimos estabelecimentos que se dediquem à mesma actividade, a qual possa merecer, pelo específicos circunstancialismos que tipicamente rodeiam o seu exercício, as mesmas restrições de horário de funcionamento, por diversas razões, as mais comuns das quais sejam as de segurança ou de proteção da qualidade de vida dos cidadãos.

Na verdade, nas referidas circunstâncias, o que está em causa é, como se afirma na lei, a (tutela da) segurança - a segurança pública, a segurança dos cidadãos e dos seus bens e a sua confiança na tranquilidade pública, assegurada pelos poderes do Estado, base fundante do Estado de Direito vigente – e a protecção da qualidade de vida – seja a garantia prosseguida pelo Estado de que as diversas vertentes da sua vida pessoal e social se encontram protegidas contra os riscos e agressões, potenciais ou comprovados, em que os tempos modernos são ricos, de forma a manter um padrão de viva e de vivência compaginável com aquilo que se considera como um direito fundamental, garantindo a sua salvaguarda, numa emanação de um designado princípio da precaução[17] (de riscos), que também aqui tem justo cabimento. E de entre os direitos fundamentais a proteger encontram-se precisamente os direitos ao repouso, ao sossego e ao descanso, desde tempos imemoriais associados à noite e ao sono reparador. Daí a possibilidade conferida às camaras municipais de estabelecer “janelas temporais” no ciclo horário diário de modo a compaginar e compatibilizar (precavidamente ou prudencialmente) a salvaguarde desses direitos, por um lado, e, por outro, o legitimo desenvolvimento de actividades económicas mas que com eles podem vir, potencialmente, a conflituar em virtude da forma típica como se desenvolvem.    

 

2.2. O direito ao descanso na jurisprudência

Considera a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que não obstante o repouso não [pressupor] silêncio completo, pois o ruído é algo de inerente à civilização moderna, integrado na sua essência[18], o repouso e o sossego que cada pessoa necessita de desfrutar no seu lar para se retemperar do desgaste físico e anímico que a vida no seu dia a dia provoca no ser humano é algo de essencial a uma vida saudável, equilibrada e física e mentalmente sadia, e que o direito ao repouso, ao sossego e ao sono são uma emanação da consagração constitucional do direito à integridade física e moral da pessoa humana e a um ambiente de vida sadio, constituindo, por isso, direitos de personalidade e com assento constitucional entre os Direitos e Deveres Fundamentais[19]

Mais considera esse venerando Tribunal não só que o direito ao sono, repouso e descanso, que faz parte do elenco dos direitos fundamentais, protegido pelos arts. 25.º, n.º 1, da CRP e 70.º, n.º 1, do CC, prevalece, nos termos do art. 335.º do CC, sobre o direito de propriedade e o direito ao exercício de uma actividade industrial ou comercial, e a sua violação consubstancia um dano não patrimonial (…)[20] mas também que os direitos ao sossego, ao repouso e ao sono traduzem-se em factores que se mostram potenciadores, em grau muito elevado, da recuperação física e psíquica da pessoa, nomeadamente nas situações da vida quotidiana em que a suspensão da actividade laboral, por motivo de férias, tem como principal escopo a prossecução de tais fins, constituindo-se esses direitos como uma emanação do direito à integridade física e moral da pessoa e a um ambiente de vida sadio, direitos esses acolhidos, como direitos de personalidade, na DUDH (art. 24.º), encontrando-se constitucionalmente consagrados, como direitos fundamentais, nos arts. 16.º e 66.º da CRP, e sendo objecto de protecção na lei ordinária no âmbito do preceituado no art. 70.º do CC, nos arts. 2.º e 22.º da Lei n.º 11/87, de 07-04 (LBA), e do DL n.º 292/2000, de 14-11 (Regulamento Geral do Ruído), actualmente substituído pelo DL n.º 9/2007, de 17-01[21].

  

Concluindo

À face de quanto fica dito afigura-se que nem a introdução do (sistema de) “licenciamento zero” nas actividades económicas de comércio, serviços e restauração, efetuada polo Decreto-lei n.º 458/2011, nem o regime jurídico de acesso e exercício de actividades de comércio, serviços e restauração, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2015, postergaram os valores, consubstanciados em direitos (fundamentais), a que o poder em questão se destina (também) a proteger e dar tutela, como, menos ainda, eliminaram, o poder de as câmara municipais poderem fixar, de forma geral e abstracta, por via regulamentar, caso os específicos particularismos (atinentes, em especial, à prevenção da salvaguarda, protecção e tutela de valores de especial relevância individual e social, como o sejam a segurança e a tranquilidade pública ou a proteção da qualidade de vida dos cidadãos) assim o justifiquem, “janelas” temporais em períodos diários, semanais, mensais ou anuais, dentro das quais pode haver lugar ao exercício das actividades económicas tipicamente susceptíveis de os pôr em crise, ou seja, se pode verificar o funcionamento dos estabelecimento que as desenvolvam, os quais fixam livremente, dentro das “janelas temporais” regulamentarmente definidas, os concretos períodos para o seu funcionamento.

  

Salvo sempre meliori judicio

  

Ricardo da Veiga Ferrão

(Jurista. Técnico Superior)

 

[1] Artigo 3.º, n.º 1, do Regime jurídico de acesso e exercício de atividades de comércio, serviços e restauração (RJACSR), aprovado e publicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de Janeiro.

[2] Artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48/2011, de 1 de Abril, na redacção original. Dizia-se no preâmbulo deste diploma que a iniciativa «Licenciamento zero», [destina-se] a reduzir encargos administrativos sobre os cidadãos e as empresas, por via da eliminação de licenças, autorizações, vistorias e condicionamentos prévios para actividades específicas, substituindo-os por acções sistemáticas de fiscalização a posteriori e mecanismos de responsabilização efectiva dos promotores.

(…)

Para dar cumprimento a estes objectivos, o presente decreto-lei cria, em primeiro lugar, um regime simplificado para a instalação e a modificação de estabelecimentos de restauração ou de bebidas, de comércio de bens, de prestação de serviços ou de armazenagem. (…)

Em segundo lugar, simplificam-se ou eliminam-se licenciamentos habitualmente conexos com aquele tipo de actividades económicas e fundamentais ao seu exercício - concentrando eventuais obrigações de mera comunicação prévia no mesmo balcão electrónico - tais como os relativos a: 1) (…); 2) horário de funcionamento, suas alterações e respectivo mapa; e 3) (…).

[3] Vd. o revogado n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 48/2011, diploma que dispunha ainda que é proibida a sujeição do horário de funcionamento e do respectivo mapa a licenciamento, a autorização, a autenticação, a validação, a certificação, a actos emitidos na sequência de comunicações prévias com prazo, a registo ou a qualquer outro acto permissivo (artigo 1.º, n.º 1 , al. f), do mesmo diploma, também já revogada). Presentemente, vd. os artigos 4.º e 7.º do RJACSR.

[4] Decreto-Lei n.º 48/96, de 15 de Maio, posteriormente alterado pelos Decreto-Lei n.º 123/96, de 10 de Agosto, Decreto-Lei n.º 111/2010, de 15 de Outubro, Decreto-Lei n.º 48/2011, de 1 de Abril e Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de Janeiro.

[5] Por via das alterações nele introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 10/2015.

[6] Artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48/96, na redacção do Decreto-Lei n.º 10/2015.

[7] Ao elencar os diplomas que alteraram o Decreto-Lei n.º 48/96, o artigo não alude ao Decreto-Lei n.º 10/2015, que nele introduziu a as mais recentes alterações, dando ideia de que estaria a remeter para a redação do diploma anterior a estas últimas alterações. Contudo, não pode deixar de se considerar estar-se perante um óbvio lapso legislativo e que, por isso, a redacção do Decreto-Lei n.º 48/96 que deve ser tida em consideração é a que resulta das mais recentes alterações operadas pelo Decreto-Lei n.º 10/2015. 

[8] Artigo 4.º-A, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 48/96, na redacção do Decreto-Lei n.º 10/2015.

[9] Artigo 3º do Decreto-Lei n.º 48/96, na redacção do Decreto-Lei n.º 10/2015.

[10] Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. II, 10.ª ed., 5.ª reimp., 1994, pag. 1150. 

[11] Tatiana Grundler, La police administrative, consultável em http://www.france-jus.ru/upload/fiches_fr/La%20police%20administrative.pdf (acesso em 5/5/2016).

[12] Marcello Caetano, Manual… cit., pag. 1150.

[13] Nesse sentido, Jean-Marie Pontier, Leçon n.º 7: La police administrative do curso L’action administrative da unjf-Université Numérique Juridique Francophone, pág. 5, consultável em http://cours.unjf.fr/file.php/102/Cours/07_item/indexI0.htm (acesso em 5/5/2016), pois que os regulamentos podem ter outro diferente objecto que não de polícia como, p. ex., medidas sobre organização dos serviços ou sobre os seus trabalhadores.  

[14] Cfr. Jean-Marie Pontier, Leçon n.º 7 … cit, pág. 5.

[15] Artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48/96.

[16] Artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 48/96.

[17] Sobre este princípio, vd. Philippe Kourilsky, Geneviève Viney, Le Principe de Précaution, rapport au Premier Ministre, La Documentation Française, 1999, consultável em http://www.ladocumentationfrancaise.fr/var/storage/rapports-publics/004000402.pdf (acesso em 11/5/2016).

[18] Sumário do acórdão de 10-12-1998, Recurso de revista n.º 1044/98 - 2.ª Secção, in Gabinete de Juízes Assessores do Supremo Tribunal de Justiça - Assessoria Cível, O direito ao descanso e ao sossego na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, acedível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-tematica/direitodescansosossego.pdf (acesso em 11/5/2016)

[19] Sumário do acórdão de 13-09-2007, Recurso de revista n.º 2198/07 - 7.ª Secção, in O direito ao descanso e ao sossego… cit..

[20] Sumário do acórdão de 01-07-2010, Recuso de revista n.º 1188/06.2TBBCL.G1.S1 - 2.ª Secção, in O direito ao descanso e ao sossego… cit..

[21] Sumário do acórdão de 17-04-2012, Recurso de revista n.º 1529/04.7TBABF.E1.S1 - 6.ª Secção, in O direito ao descanso e ao sossego… cit..

By |2023-10-26T13:32:20+00:0012/05/2016|Pareceres Jurídicos até 2017|Comentários fechados em Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos.

Dias de férias; trabalho de segunda-feira a sábado.

 

Tendo em atenção o exposto no ofício n.º …, de …, da Câmara Municipal de …, sobre a matéria referenciada em epígrafe, cumpre tecer as seguintes considerações:

 

Sem desprimor pelas considerações tecidas na informação dos serviços anexa ao pedido de parecer, não nos eximimos de, a título prévio, chamar à colação alguns aspetos que, em nosso entender, concorrerão no sentido de fundamentarem o entendimento que perfilhamos sobre a matéria controvertida.

 

Em primeiro lugar, quando, na marcação dos períodos de férias, não haja acordo entre o trabalhador e a entidade empregadora pública, é esta quem detém a disponibilidade, ainda que com limitações, de impor ao trabalhador o gozo das férias em determinado período do ano (cfr., artigo 241.º do Código do Trabalho, por força do disposto no n.º 1 do artigo 122.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas – abreviadamente, LTFP – aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho).

 

Por outro lado, é, também, a entidade empregadora pública quem detém o poder de determinar a organização e o tempo de trabalho dos trabalhadores dos serviços bem como o de decidir os regimes de horário de trabalho a adotar, designadamente, o da jornada contínua (cfr., artigos 108.º e seguintes da LTFP).

 

Por último, é, também, a entidade empregadora pública quem detém o poder de, uma vez adotado o regime de jornada contínua, o organizar de forma a salvaguardar o descanso diário bem como a semana de trabalho e o descanso semanal dos trabalhadores, com respeito pelo disposto nos artigos 123.º a 125.º da LTFP, o que, diga-se desde já, nos parece ocorrer no caso em apreço.

 

Reconduzindo-nos, agora, à questão controvertida, e sem prescindir, tanto a remissão efetuada pelo n.º 1 do artigo 4.º (“é aplicável ao vínculo de emprego público, sem prejuízo do disposto na presente lei e com as necessárias adaptações, o disposto no Código do Trabalho”), quanto a estabelecida no n.º 1 do artigo 122.º (“é aplicável aos trabalhadores com vínculo de emprego público o regime do Código do Trabalho em matéria de tempos de não trabalho, com as necessárias adaptações e sem prejuízo das especificidades constantes do presente capítulo”, diga-se, em que o infra citado artigo 126.º se insere) quer, e particularmente, a adotada pelo n.º 1 do artigo 126.º (“o trabalhador tem direito a um período de férias remuneradas em cada ano civil, nos termos previstos no Código do Trabalho e com as especificidades dos artigos seguintes”), todos da LTFP, impõem que, antes do recurso ao disposto na regulamentação do referido código, se afira se a própria LTFP não contém a resposta às questões que, eventualmente, se venham suscitando.

 

Neste particular, tendo o legislador curado de regular, no artigo 126.º da LTFP, e de forma exaustiva, o direito a férias dos trabalhadores, estabelecendo, no n.º 6 do preceito que “para efeitos de férias, são úteis os dias da semana de segunda-feira a sexta-feira, com exceção dos feriados, não podendo as férias ter início em dia de descanso semanal do trabalhador”, eximindo-se de incluir, neste dispositivo legal, qualquer referência do tipo da que o n.º 3 do artigo 238.º do Código do Trabalho consagra, naquilo que, em nosso entender, terá correspondido não a um qualquer esquecimento mas a uma vontade claramente expressa, impor-se-á concluir não ser este último normativo aplicável ao caso em apreço, sob pena de, de outra forma, se violar frontalmente o princípio ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus (onde o legislador não distingue não deve o intérprete distinguir).  

 

Aliás, e não só desde agora, sempre temos vindo a defender, cremos que fundadamente, que o conceito de dias úteis, para efeitos de determinação de dias de férias, é utilizado pelo legislador de forma objetiva, isto é, com o enquadramento de que cada semana é constituída ou integrada por cinco dias úteis, acrescidos de um dia de descanso semanal e de um dia de descanso semanal complementar, e não de forma subjetiva, ou seja, dependendo das circunstâncias específicas a que cada trabalhador se encontra obrigado a prestar trabalho.

 

Mas se é assim, no que à determinação de dias de férias diz respeito, poderá já não o ser no que toca aos efeitos que o direito de gozar esses mesmos dias de férias se possa pretender que tenha na determinação dos dias de descanso semanal.

 

De facto, dando-se por adquirido (como parece poder concluir-se) que o regime de trabalho a que se encontram sujeitos os referidos trabalhadores não colide com as normas legais que o regulam nem fere os princípios contidos nos preceitos reguladores do descanso diário nem da semana de trabalho ou do descanso semanal (cfr., artigos 123.º a 125.º da LTFP), e de que resulta terem que prestar trabalho de segunda-feira a sábado, usufruindo, apenas, de um dia de descanso semanal, estranho e discriminatório seria que o gozo de dias de férias pudesse, enviesadamente, dizemos nós, gerar dias de descanso semanal complementar de que, no regime em que prestam serviço, não usufruem.

 

É que, a aceitar-se tal leitura, e lançando mão dos exemplos contidos na informação dos serviços, o gozo do sábado subsequente aos dias de férias mais não seria do que um prolongamento indevido destas ou uma concessão indevida de um dia de descanso semanal complementar que, no regime específico a que se encontram sujeitos, não podem gozar.

 

 

O técnico superior

 

(José Manuel Martins Lima)

By |2023-10-26T13:32:20+00:0028/04/2016|Pareceres Jurídicos até 2017|Comentários fechados em Dias de férias; trabalho de segunda-feira a sábado.

Regras do Orçamento Participativo: Submissão ao Procedimento Regulamentar.

 

Solicita o Presidente da Câmara Municipal de …, por seu ofício ref. …, de … transacto, o esclarecimento da seguinte questão:

(…)

O Município de … está a preparar a implementação do Orçamento Participativo e elaborou, para o efeito, um conjunto de regras para implementação do processo e procedimentos a adotar pelos diferentes intervenientes, sejam eles eleitos ou cidadãos.

A esse conjunto de regras preparado pela equipa responsável pela implementação do projeto, foi dada a conformação de "regulamento" porque se entendeu que nele estão contidas normas procedimentais de carácter geral e de execução permanente, com eficácia externa.

Tal conformação, se feita ao abrigo dos artigos 97.o e seguintes do novo CPA, aprovado pelo DL 412015 de 07.01., prevê, em síntese, as seguintes etapas (transcreve-se a informação técnica):

(…)

Em face do exposto, pretende-se esclarecer:

  1. a) se o conjunto de normas que disciplinam o processo de elaboração do Orçamento Participativo está ou não sujeito ao procedimento constante dos artigos 97.º e seguintes do novo CPA, aprovado pelo DL 4/2015 de 07.01;
  2. b) se tendo-se optado pela consulta pública, como foi o caso, aprovada pelo Executivo Municipal, é um procedimento adequado, para pôr em prática o orçamento participativo já que no próximo orçamento do Município, a aprovar em outubro do corrente ano, o que lhe confere o carácter de urgente.

  

Apreciando

  1. Do pedido

No pedido ora em causa são colocadas duas questões.

Na primeira delas questiona-se, a propósito dos mecanismos de preparação de orçamento participativo, se as normas que hão-de disciplinar esse processo se encontram também sujeitas à disciplina atinente ao designado procedimento do regulamento administrativo previsto no CPA para a elaboração de regulamentos – o que é por dizer se a eventual normativização desse processo concede ao conjunto dessas regras a natureza de regulamento administrativo.

Na segunda questão, e do que se consegue depreender do texto onde é colocada, é posta a dúvida sobre se a consulta pública é forma adequada para a realização da audiência de interessados no contexto em causa, tendo em conta a urgência na aprovação dessas normas regulamentares face aos prazos legais para aprovação do orçamento autárquico.

 

  1. Análise

2.1. O designado orçamento participativo representa uma das várias manifestações possíveis de democracia participativa dentro de um sistema democrático essencialmente representativo.

O artigo 2.º da Constituição caracteriza a República Portuguesa como um estado de direito democrático, que visa a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.

Essa participação democrática consagra-a expressamente a Constituição através da previsão de um direito de todos os cidadãos a tomar directamente parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país[1], direito este que integra o conjunto de direitos fundamentais constitucionalmente previstos.

O orçamento participativo local é pois uma concreta forma de exercício dessa democracia participativa. Não existe porém disciplina legal da matéria, não obstante ser uma prática que começa a divulgar-se ao nível autárquico.

Porque as escolhas finais implicam um processo gradual e evolutivo de construção e selecção dos projectos ou iniciativas a apoiar, mostra-se conveniente o estabelecimento de normas ou regras que, conhecidas por todos, regulem esse processo ou procedimento de aprovação do orçamento participativo ou seja de escolha dos projectos e iniciativas que irão ser considerados no âmbito e para efeitos do financiamento disponibilizado para esse fim.

Assim crê-se que a forma normativa mais adequada para o efeito passa pela aprovação de um regulamento de onde constem os elementos e passos essenciais desse processo.

Tratando-se de um regulamento externo, a sua elaboração deve respeitar não apenas as competências definidas para o efeito no Regime Jurídico das Autarquias Locais[2], como observar o procedimento “regulamentar” previsto no CPA para elaboração e aprovação de regulamentos[3].

2.2. A matéria da segunda das questões, se bem conseguimos compreender o que nos é solicitado, prende-se com a realização da audiência dos interessados – no caso através de consulta pública - e da hipotização da sua dispensa considerando que a aprovação do regulamento em causa é urgente tendo em conta os prazos legais previstos para aprovação do orçamento municipal.

Como acabámos de ver, à aprovação dos regulamentos municipais é aplicável o que em matéria de procedimento do regulamento se dispõe no CPA.

Ora o CPA quando no âmbito desse procedimento, disciplina, no artigo 100.º, a audiência de interessados, estabelece que ela deve ter lugar sempre que se esteja perante um regulamento que contenha disposições que afetem de modo direto e imediato direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

Para o efeito, o CPA prevê diversas formas de cumprir esse desiderato. A regra geral é a de que a audiência tenha lugar nos termos definidos no n.º 1 do artigo 100.º: submissão do projeto de regulamento por prazo razoável, mas não inferior a 30 dias, a audiência dos interessados que como tal se tenham constituído no procedimento.

Significa isto que apenas quanto aos interessados que se hajam constituído como tal no procedimento - e apenas quanto a esses – existe obrigação de serem ouvidos em audiência pela entidade emissora do regulamento, sob pena de invalidade do regulamento[4]. Porém, para que assim pudesse ser, tal exigiria que no início do procedimento houvesse sido publicitada a forma como nele se poderia processar a constituição (das pessoas ou entidades) como interessados[5], o que não parece ter acontecido.

Não sendo assim possível proceder à audiência de interessados através da forma apontada, afigura-se então como correcta a opção pela sua realização através de consulta pública, nos termos do artigo 101.º do CPA.

O que, no caso, parece não se verificar é a tal urgência que permitiria dispensar a realização da audiência, não obstante o tempo apertado por via dos momentos e prazos legalmente definidos para aprovação do orçamento municipal. É que a urgência relevante neste contexto e para o efeito da dispensa de audiência não é a que resulta da pressa (auto‑)imposta, necessária para que seja atingido determinado objectivo, meta ou desiderato que se fixou, mas unicamente aquela que resulta de factos ou situações exteriores e incontrolados, não determinados ou causados por aquele a quem impõem uma actuação rápida para o seu tratamento ou resolução, de modo a evitar efeitos nefastos ou prejudiciais de natureza grave – e daí a urgência na resposta a adoptar, face à qual podem ceder algumas exigências procedimentais.

 

Concluindo

  1. A normativização das regras relativas à elaboração e aprovação do orçamento participativo confere-lhes natureza regulamentar, sujeitando-as, deste modo, às regras previstas no CPA para elaboração e aprovação dos regulamentos;

 

  1. A estreiteza de tempo disponível para aprovação do regulamento em causa e, subsequentemente, para o desenrolar dos procedimentos conducentes à aprovação do orçamento participativo, tendo em conta os momentos e prazos legalmente fixados para a aprovação do orçamento municipal do qual aquele fará parte, não pode ser considerada como razão urgente que permita a dispensa da realização da audiência de interessados pela forma legalmente prevista, no caso através de consulta pública.

  

 

Ricardo da Veiga Ferrão

 (Jurista. Técnico Superior)

 

[1] Artigo 48.º, n.º 1, da CRP.

[2] O Regime Jurídico da Autarquias Locais (RJAL) foi aprovado em anexo à Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro.

De acordo com o RJAL cabe à assembleia municipal a aprovação dos regulamentos externos autárquicos (artigo 25.º, n.º 1, al. g), do RJAL), com base em projecto elaborado e proposto para aprovação pela câmara municipal (artigo 33.º, n.º 1, al. k), do RJAL).

[3] Artigo 96.º e segs. do CPA.

[4] Artigo 143.º, n.º 1, do CPA.

[5] Artigo 98.º, n.º 1, do CPA.

By |2023-10-26T13:32:20+00:0015/04/2016|Pareceres Jurídicos até 2017|Comentários fechados em Regras do Orçamento Participativo: Submissão ao Procedimento Regulamentar.

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